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Os sofrimentos do eleitor
O psicanalista discute
como as fantasias de agressão estudadas por Freud contribuíram
para definir a eleição municipal em São Paulo
RENATO MEZAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Assentada a poeira do embate, podemos refletir com
alguma distância sobre os
argumentos aduzidos para
explicar o resultado das eleições
municipais em São Paulo. E de início chama a atenção a quase unanimidade que se formou: mais do que
uma vitória de José Serra, teríamos
assistido a uma derrota da prefeita
[Marta Suplicy], provocada -assim se diz- por suas características pessoais, em particular a "arrogância".
Não teria sido a sua administração, aprovada como ótima ou boa
por praticamente metade do eleitorado, mas a sua imagem, o fator decisivo para tal resultado.
O que é, exatamente, a imagem
de alguém? É a maneira pela qual os
outros o percebem. Na formação
de minha imagem, têm relevância
minhas atitudes, minhas declarações, meu comportamento; mas, se
se tratasse apenas disso, não haveria distância entre o que sou e como
pareço ser aos olhos dos outros.
Obviamente, existe aqui um fator
proveniente desses outros, ou seja,
da maneira pela qual o que digo e
faço os afeta.
E, no caso de um político, essa
maneira tem muito a ver com os aspectos inconscientes que influem
na escolha de um governante.
Fator emocional
Sim, porque o voto não é apenas o exercício
de um direito por cidadãos adultos
e responsáveis, que deliberam racionalmente sobre diversas propostas para o bem da pólis. Na adesão a este ou àquele candidato, pesam decisivamente fatores emocionais: escolher um governante significa atribuir a alguém poder e autoridade sobre nós e, do ponto de vista da psicanálise, atribuir a esse alguém posição análoga à de um pai.
Por mais que nessa decisão intervenham ponderações acerca da
conveniência ou viabilidade das
propostas de cada candidato sobre
os assuntos públicos, esses fatores
são acompanhados por poderosas
forças afetivas, que co-determinam
a preferência do eleitor.
Freud estudou, num breve artigo
intitulado "A Novela Familiar do
Neurótico", a fantasia muito comum em crianças de serem filhos
não dos seus pais, mas de outros,
mais importantes (reis, nobres, heróis etc.). O motivo para essa fantasia é a sensação da criança de não
ser correspondida em seu afeto pelos pais, de ser por eles menosprezada, em particular por terem tido
a infeliz idéia de gerar outros filhos,
com os quais a criança precisa dividir amor e atenção. Sentimentos de
rivalidade e fantasias de agressão,
especialmente dirigidos ao pai, podem então engendrar a "novela familiar": não sou filho deste homem, mas de outro, e posso portanto desafiá-lo e atacá-lo.
Tal fantasia desempenha um papel importante no caminho da
emancipação da criança diante da
autoridade paterna, prestando-se
além disso -diz Freud- a múltiplas funções na vida psíquica, porque pode se colocar a serviço das
mais variadas tendências.
Não me parece demasiado simplista utilizar essa idéia para compreender, ao menos em parte, o
que está em jogo no ato de votar.
Votar é escolher a quem obedeceremos (ainda que dentro dos limites da lei), a quem entregaremos o
poder de decidir sobre os inúmeros
aspectos de nossas vidas que dependem do Estado. Nesse sentido,
o ato de votar parece realizar de
modo indireto a fantasia de poder
escolher nosso pai, selecionando
um entre vários pretendentes a essa
função.
"Aspirações" e "anseios": termos
ambíguos, que cobrem desde idéias
perfeitamente racionais sobre como queremos que seja a pólis até
obscuros desejos inconscientes,
que por assim dizer "tomam carona" na porção adulta da mente do
eleitor. Por exemplo, "segurança"
quer dizer estar garantido em medida razoável contra a violência e,
nesse sentido, tem uma significação pública e política; mas também
alude à sensação interna de estar
protegido, de não ser exposto à dor,
ao medo, ao frio e à fome -em suma, de não se sentir desamparado.
O desamparo é um velho conhecido nosso -todos fomos bebês e,
em certas regiões de nossa psique,
continuamos a sê-lo por toda a vida. A busca de alguém supostamente capaz de nos proteger dessa
vivência desconcertante e ameaçadora está presente em inúmeras situações individuais e coletivas.
É evidente que o desejo de ser
amparado pode se prestar à exploração demagógica ou populista,
mas não é necessário que seja sempre assim. Tudo indica que um dos
elementos mais importantes para a
estruturação da imagem de um político na mente de seus possíveis
eleitores é a confiança que ele -ou
ela- é capaz de despertar quanto à
sua capacidade para ocupar o lugar
imaginário "do que ampara" e, se
isso pode acontecer em razão de
suas propostas e de sua afinação
com as sensibilidades do eleitorado, também depende de suas atitudes e do seu discurso.
Não se trata de fazer promessas,
de resto pouco críveis para um público cada vez menos ingênuo, mas
de criar a impressão de ser ao mesmo tempo competente e sensível às
necessidades do outro. Competente, pensaram os paulistanos, a prefeita sem dúvida é; mas o traço da
arrogância parece ter comprometido a avaliação do outro quesito. E
isso apesar da percepção de que defendeu os interesses da parcela
mais pobre da população, criando
programas que a beneficiaram de
modo evidente.
"Alguém que ampara"
Como explicar essa contradição? Muitos sublinharam que a escolha do
tema da saúde (CEU saúde, por
exemplo) como um dos focos do
debate foi um erro de grandes proporções. E não apenas porque ressaltava uma área em que a administração em julgamento teve dificuldades, mas, penso, porque tocava
no nervo sensível do desamparo.
Hospitais, remédios, assistência
médica significam "cuidar da dor",
"minorar o sofrimento", e isso
num momento de particular fragilidade da pessoa.
O bom desempenho de José Serra
quando ministro da Saúde, explorado de forma inteligente em sua
campanha e contraposto às dificuldades que o PT enfrentou para reconstruir o sistema municipal de
saúde após a catástrofe do PAS,
contribuiu decisivamente para ligá-lo à imago de "alguém que ampara", capaz de cuidar dos desempregados (seguro-desemprego),
dos idosos e das crianças (vacinação eficiente), dos doentes (genéricos e outras medidas), ou seja, dos
desamparados de modo geral: seria, como dizia seu slogan, "o prefeito da gente".
A "arrogância" da prefeita entra,
a meu ver, nesse contexto. Como
traço de personalidade, ela está ligada à dimensão narcísica, ou seja,
à apreciação que cada qual faz de si
mesmo, de seu lugar no mundo e
do papel dos outros.
É evidente que, quanto mais narcisista um indivíduo, mais esses outros desempenharão um papel de
coadjuvantes nos roteiros fantasmáticos do sujeito. A arrogância é a
face visível dessa configuração:
mesmo quando a pessoa está fazendo "o bem" para outrem, isso
parecerá estar a serviço de sua própria grandeza, e não tanto a serviço
do bem-estar dos demais.
Segundo [o psicanalista britânico] Wilfred Bion [1897-1979], a arrogância pode ser uma reação à
sensação de não ser compreendido
pelo outro e também à fantasia de
que esse outro não pode conter, em
sua própria mente, aquelas partes
da nossa que, por as sentirmos como excessivamente dolorosas ou
aterradoras, precisamos projetar
para dentro do nosso próximo. A
arrogância se manifesta assim em
situações de comunicação, como
um apelo desesperado a que o outro nos "contenha", mas também
paradoxalmente como um ataque a
essa mesma capacidade de continência, gerando um círculo vicioso
de incompreensões recíprocas.
Não se trata, evidentemente, de interpretar de modo selvagem a pessoa
da prefeita nem, aliás, a do seu adversário. Mas parece exato afirmar
que, muitas vezes, ela produziu a impressão de alguém demasiado preocupado consigo mesmo, e isso apesar -friso, apesar- de ter iniciado
programas de vasto alcance social.
Outros fatores foram invocados para
explicar por que não foi reeleita, da
sua separação às obras viárias e às taxas que criou; haverá outros, de ordem propriamente estratégica, ligados à condução de sua campanha.
Também seria preciso, numa análise
mais completa, levar em conta os
motivos pelos quais o discurso de
seu adversário foi mais eficaz, já que
não se tratou apenas de uma derrota
de Marta, mas igualmente de uma
vitória de Serra.
O que me parece evidente é que
muitas de suas falas e atitudes foram
de molde a suscitar a impressão de
alguém particularmente satisfeito
consigo mesmo, para quem a não-aprovação de seus concidadãos tinha o ar de uma surpresa incompreensível: por que eram tão incapazes de ver quão excelente ela tinha sido como administradora?
Tomo alguns exemplos de entrevistas concedidas à "Veja São Paulo"
e publicadas em 27/10/2004: "Quem
foi o melhor prefeito de São Paulo?"
"Eu." (Serra: Prestes Maia);
"Um luxo?" "Banho de banheira
com sais." (Serra: comprar DVDs);
"Um hobby?" "Tenho talento para
pintar." (Serra: ver filmes);
"Uma qualidade?" "Determinação." (Serra: minha capacidade para
me colocar no lugar dos outros).
Mesmo levando em conta que respostas a uma entrevista não traduzem necessariamente a verdade íntima de uma pessoa, salta aos olhos a
maior habilidade de José Serra para
se apresentar como alguém aberto
ao outro e capaz de reconhecer seus
aspectos bons, enquanto as respostas da prefeita sistematicamente
acendem os holofotes sobre si mesma. Ingenuidade? Inabilidade? Não
cabe aqui ir além da constatação: a
imagem que tais respostas favorecem não é, certamente, de molde a
ocupar o posto vacante do pai da primeira infância.
"A mulher de César não deve somente ser honesta; ela precisa também parecer honesta", diziam os romanos. Pouco importa se o vencedor é tão, mais ou menos narcisista e
autocentrado quanto aquela a quem
derrotou; a versão importa mais do
que o fato, e talvez o descaso com o
que a psicanálise nos ensina tenha sido um dos motivos que fizeram
Marta Suplicy perder essa eleição.
Casa de ferreiro...
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