São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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Os sofrimentos do eleitor

O psicanalista discute como as fantasias de agressão estudadas por Freud contribuíram para definir a eleição municipal em São Paulo

RENATO MEZAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assentada a poeira do embate, podemos refletir com alguma distância sobre os argumentos aduzidos para explicar o resultado das eleições municipais em São Paulo. E de início chama a atenção a quase unanimidade que se formou: mais do que uma vitória de José Serra, teríamos assistido a uma derrota da prefeita [Marta Suplicy], provocada -assim se diz- por suas características pessoais, em particular a "arrogância". Não teria sido a sua administração, aprovada como ótima ou boa por praticamente metade do eleitorado, mas a sua imagem, o fator decisivo para tal resultado. O que é, exatamente, a imagem de alguém? É a maneira pela qual os outros o percebem. Na formação de minha imagem, têm relevância minhas atitudes, minhas declarações, meu comportamento; mas, se se tratasse apenas disso, não haveria distância entre o que sou e como pareço ser aos olhos dos outros. Obviamente, existe aqui um fator proveniente desses outros, ou seja, da maneira pela qual o que digo e faço os afeta. E, no caso de um político, essa maneira tem muito a ver com os aspectos inconscientes que influem na escolha de um governante.

Fator emocional
Sim, porque o voto não é apenas o exercício de um direito por cidadãos adultos e responsáveis, que deliberam racionalmente sobre diversas propostas para o bem da pólis. Na adesão a este ou àquele candidato, pesam decisivamente fatores emocionais: escolher um governante significa atribuir a alguém poder e autoridade sobre nós e, do ponto de vista da psicanálise, atribuir a esse alguém posição análoga à de um pai. Por mais que nessa decisão intervenham ponderações acerca da conveniência ou viabilidade das propostas de cada candidato sobre os assuntos públicos, esses fatores são acompanhados por poderosas forças afetivas, que co-determinam a preferência do eleitor. Freud estudou, num breve artigo intitulado "A Novela Familiar do Neurótico", a fantasia muito comum em crianças de serem filhos não dos seus pais, mas de outros, mais importantes (reis, nobres, heróis etc.). O motivo para essa fantasia é a sensação da criança de não ser correspondida em seu afeto pelos pais, de ser por eles menosprezada, em particular por terem tido a infeliz idéia de gerar outros filhos, com os quais a criança precisa dividir amor e atenção. Sentimentos de rivalidade e fantasias de agressão, especialmente dirigidos ao pai, podem então engendrar a "novela familiar": não sou filho deste homem, mas de outro, e posso portanto desafiá-lo e atacá-lo. Tal fantasia desempenha um papel importante no caminho da emancipação da criança diante da autoridade paterna, prestando-se além disso -diz Freud- a múltiplas funções na vida psíquica, porque pode se colocar a serviço das mais variadas tendências. Não me parece demasiado simplista utilizar essa idéia para compreender, ao menos em parte, o que está em jogo no ato de votar. Votar é escolher a quem obedeceremos (ainda que dentro dos limites da lei), a quem entregaremos o poder de decidir sobre os inúmeros aspectos de nossas vidas que dependem do Estado. Nesse sentido, o ato de votar parece realizar de modo indireto a fantasia de poder escolher nosso pai, selecionando um entre vários pretendentes a essa função. "Aspirações" e "anseios": termos ambíguos, que cobrem desde idéias perfeitamente racionais sobre como queremos que seja a pólis até obscuros desejos inconscientes, que por assim dizer "tomam carona" na porção adulta da mente do eleitor. Por exemplo, "segurança" quer dizer estar garantido em medida razoável contra a violência e, nesse sentido, tem uma significação pública e política; mas também alude à sensação interna de estar protegido, de não ser exposto à dor, ao medo, ao frio e à fome -em suma, de não se sentir desamparado. O desamparo é um velho conhecido nosso -todos fomos bebês e, em certas regiões de nossa psique, continuamos a sê-lo por toda a vida. A busca de alguém supostamente capaz de nos proteger dessa vivência desconcertante e ameaçadora está presente em inúmeras situações individuais e coletivas. É evidente que o desejo de ser amparado pode se prestar à exploração demagógica ou populista, mas não é necessário que seja sempre assim. Tudo indica que um dos elementos mais importantes para a estruturação da imagem de um político na mente de seus possíveis eleitores é a confiança que ele -ou ela- é capaz de despertar quanto à sua capacidade para ocupar o lugar imaginário "do que ampara" e, se isso pode acontecer em razão de suas propostas e de sua afinação com as sensibilidades do eleitorado, também depende de suas atitudes e do seu discurso. Não se trata de fazer promessas, de resto pouco críveis para um público cada vez menos ingênuo, mas de criar a impressão de ser ao mesmo tempo competente e sensível às necessidades do outro. Competente, pensaram os paulistanos, a prefeita sem dúvida é; mas o traço da arrogância parece ter comprometido a avaliação do outro quesito. E isso apesar da percepção de que defendeu os interesses da parcela mais pobre da população, criando programas que a beneficiaram de modo evidente.

"Alguém que ampara"
Como explicar essa contradição? Muitos sublinharam que a escolha do tema da saúde (CEU saúde, por exemplo) como um dos focos do debate foi um erro de grandes proporções. E não apenas porque ressaltava uma área em que a administração em julgamento teve dificuldades, mas, penso, porque tocava no nervo sensível do desamparo. Hospitais, remédios, assistência médica significam "cuidar da dor", "minorar o sofrimento", e isso num momento de particular fragilidade da pessoa.
O bom desempenho de José Serra quando ministro da Saúde, explorado de forma inteligente em sua campanha e contraposto às dificuldades que o PT enfrentou para reconstruir o sistema municipal de saúde após a catástrofe do PAS, contribuiu decisivamente para ligá-lo à imago de "alguém que ampara", capaz de cuidar dos desempregados (seguro-desemprego), dos idosos e das crianças (vacinação eficiente), dos doentes (genéricos e outras medidas), ou seja, dos desamparados de modo geral: seria, como dizia seu slogan, "o prefeito da gente".
A "arrogância" da prefeita entra, a meu ver, nesse contexto. Como traço de personalidade, ela está ligada à dimensão narcísica, ou seja, à apreciação que cada qual faz de si mesmo, de seu lugar no mundo e do papel dos outros.
É evidente que, quanto mais narcisista um indivíduo, mais esses outros desempenharão um papel de coadjuvantes nos roteiros fantasmáticos do sujeito. A arrogância é a face visível dessa configuração: mesmo quando a pessoa está fazendo "o bem" para outrem, isso parecerá estar a serviço de sua própria grandeza, e não tanto a serviço do bem-estar dos demais.
Segundo [o psicanalista britânico] Wilfred Bion [1897-1979], a arrogância pode ser uma reação à sensação de não ser compreendido pelo outro e também à fantasia de que esse outro não pode conter, em sua própria mente, aquelas partes da nossa que, por as sentirmos como excessivamente dolorosas ou aterradoras, precisamos projetar para dentro do nosso próximo. A arrogância se manifesta assim em situações de comunicação, como um apelo desesperado a que o outro nos "contenha", mas também paradoxalmente como um ataque a essa mesma capacidade de continência, gerando um círculo vicioso de incompreensões recíprocas.
Não se trata, evidentemente, de interpretar de modo selvagem a pessoa da prefeita nem, aliás, a do seu adversário. Mas parece exato afirmar que, muitas vezes, ela produziu a impressão de alguém demasiado preocupado consigo mesmo, e isso apesar -friso, apesar- de ter iniciado programas de vasto alcance social. Outros fatores foram invocados para explicar por que não foi reeleita, da sua separação às obras viárias e às taxas que criou; haverá outros, de ordem propriamente estratégica, ligados à condução de sua campanha. Também seria preciso, numa análise mais completa, levar em conta os motivos pelos quais o discurso de seu adversário foi mais eficaz, já que não se tratou apenas de uma derrota de Marta, mas igualmente de uma vitória de Serra.
O que me parece evidente é que muitas de suas falas e atitudes foram de molde a suscitar a impressão de alguém particularmente satisfeito consigo mesmo, para quem a não-aprovação de seus concidadãos tinha o ar de uma surpresa incompreensível: por que eram tão incapazes de ver quão excelente ela tinha sido como administradora?
Tomo alguns exemplos de entrevistas concedidas à "Veja São Paulo" e publicadas em 27/10/2004: "Quem foi o melhor prefeito de São Paulo?" "Eu." (Serra: Prestes Maia);
"Um luxo?" "Banho de banheira com sais." (Serra: comprar DVDs);
"Um hobby?" "Tenho talento para pintar." (Serra: ver filmes);
"Uma qualidade?" "Determinação." (Serra: minha capacidade para me colocar no lugar dos outros).
Mesmo levando em conta que respostas a uma entrevista não traduzem necessariamente a verdade íntima de uma pessoa, salta aos olhos a maior habilidade de José Serra para se apresentar como alguém aberto ao outro e capaz de reconhecer seus aspectos bons, enquanto as respostas da prefeita sistematicamente acendem os holofotes sobre si mesma. Ingenuidade? Inabilidade? Não cabe aqui ir além da constatação: a imagem que tais respostas favorecem não é, certamente, de molde a ocupar o posto vacante do pai da primeira infância.
"A mulher de César não deve somente ser honesta; ela precisa também parecer honesta", diziam os romanos. Pouco importa se o vencedor é tão, mais ou menos narcisista e autocentrado quanto aquela a quem derrotou; a versão importa mais do que o fato, e talvez o descaso com o que a psicanálise nos ensina tenha sido um dos motivos que fizeram Marta Suplicy perder essa eleição. Casa de ferreiro...


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