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+ música
"Zappa", de Barry Miles, defende que o músico, morto em 1993, foi uma
das figuras centrais da cultura norte-americana do final do século
20 ao
fundir jazz, rock e atonalismo e ro mper as fronteiras entre os gêneros
O Duchamp do rock
CAMILLE PAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Frank Zappa é uma das figuras mais difíceis de classificar na música popular
norte-americana. Devoto
apaixonado do "rhythm'n'blues",
ele combinou rock, jazz e música
atonal. Sua persona era uma mistura de beat excêntrico e indignado e
de satirista à maneira da revista
"Mad". "Zappa" [Grove Press, 320
págs., US$ 25], biografia escrita por
Barry Miles, argumenta que o músico foi um artista tão importante
quanto [o pintor francês Gustave]
Courbet [1819-1877] ou [Marcel]
Duchamp [1887-1968]. A despeito
de ocasionais declarações exageradas e tendenciosas, o livro estabelece, de fato, que Zappa, por meio de
suas experiências na fronteira entre
muitos gêneros, merece ser considerado uma das figuras centrais da
cultura norte-americana do final
do século 20.
Zappa nasceu em Baltimore, em
1940, filho de uma família pobre de
imigrantes italianos. Seu pai, nascido na Sicília e homem muito severo, arranjou emprego no Departamento da Defesa e se transferiu
com a mulher e os quatro filhos para diversos locais do país até que a
família foi parar na Califórnia. Aos
15 anos, Zappa já havia estudado
em seis diferentes escolas de segundo grau e, de acordo com Miles, enfrentou dificuldades para formar
amizades íntimas pelo resto de sua
vida.
O jovem Frank era um aluno medíocre e entediado que deixou sua
marca como palhaço da classe.
Gostava de misturar produtos químicos explosivos, e uma brincadeira perigosa em festa na casa de pais
de amigos causou sua suspensão na
escola.
Buzinas e sinos
Na adolescência, seu principal interesse era a
música "doo-wop" [tipo de rock e
rhythm'n'blues vocal muito popular nos anos 50 e 60; normalmente
conta com um vocalista enquanto
um trio ou quarteto canta a harmonia da música], especialmente na
forma de interpretação escolhida
pelas bandas formadas por jovens
de origem mexicana, cujo vistoso
estilo "pachuco" (delinqüente juvenil) ele veio a adotar. Tocava bateria e, depois, guitarra em bandas
amadoras.
Zappa se interessava pelo som em
si, não necessariamente pela música -como as buzinas de carros e os
sinos registrados nos discos de Spike Jones. Um artigo em uma revista
condenando uma composição dissonante para percussão o levou a
"Ionisation", de Edgard Varèse, e
isso mudou sua vida. Ficou fascinado pela mistura de instrumentos
tradicionais e eletrônicos que o
compositor propunha bem como
pelos sons de rua gravados que
constavam de suas peças. Depois
de descobrir o trabalho de Stravinski [compositor russo, 1882-1971],
Zappa começou a sonhar com uma
carreira como compositor sério.
Ele abandonou a faculdade local
depois de apenas um semestre e
tentou produzir filmes de baixo orçamento. Casou-se cedo e logo se
divorciou. Enquanto Miles registra
o progresso acidentado de Zappa
em direção aos seus primeiros discos, descobrimos o fascinante panorama da contracultura californiana do começo dos anos 60, onde
a música folk estava se misturando
com o rock pesado.
O elenco inclui os Byrds e os
Doors bem como Grace Slick, Eric
Clapton, Eric Burdon e Mick Jagger, que apareciam de vez em
quando para tocar em "jam sessions" nos bangalôs e casas das colinas que cercam Los Angeles. A
descrição que Miles faz do bizarro
panorama, com invasores de imóveis abandonados, pessoas sem
moradia fixa e hordas de meninas
que se tornaram fãs dos músicos
ainda antes do sucesso, captura de
maneira vívida a magia daquele
momento de criação.
"Freak Out!" (1966) foi o primeiro disco de Frank Zappa com a
banda Mothers of Invention. Trata-se de um marco na história do rock
-um dos primeiros álbuns conceituais completamente integrados. Com seu caleidoscópio de humores e suas piadas de vaudeville,
"Freak Out!" delineava um quadro
épico de um país frívolo, viciado
em mídia e sob vigilância autoritária. "Quem é a polícia mental?",
perguntava uma das canções.
"Trouble Every Day" [Problemas
Todos os Dias] tinha por tema os
distúrbios raciais em Watts (1965).
E, em meio a tudo isso, um certo
tom de sacanagem brincalhona dominava o disco, como no clássico
trocadilho "Suzy Requeijão... O que
deu em você?" ["Suzy Creamcheese... What's got into you?"], usado
por Zappa em uma das canções.
O Mothers of Invention passou
por muitas mudanças de pessoal ao
longo dos anos. Miles não tenta disfarçar o histórico horrendo e às vezes brutal de Zappa no tratamento
a seus músicos. Ele negava a contribuição deles para o sucesso da banda e, mais tarde, deixou de lhes pagar royalties.
Zappa era um guitarrista brilhante -definia seus solos como "esculturas no ar"-, mas aspirava a
ser encarado seriamente como
compositor. Seu trabalho de vanguarda era marcado por complexas
mudanças de tempo, muito difíceis
de executar.
Muitos músicos clássicos são testemunhas da capacidade de Zappa
para encontrar seus pontos fortes e
distendê-los até o limite. A Orquestra Sinfônica de Londres executou
composições suas; em 1992, uma
interpretação mais extensa de seu
trabalho pelo Ensemble Modern,
em um teatro de ópera de Frankfurt, foi aplaudida de pé por 20 minutos.
Miles atribui o problema de credibilidade de Zappa ao seu hábito
"autodestrutivo" de batizar suas
obras mais sérias com títulos escatológicos ou sexuais. Zappa era incorrigível no que tange a nomes,
diz ele. Sua filha se chama Moon
Unit, e o filho recebeu o nome
Dweezil, em homenagem a um dos
dedos do pé de sua mãe. Mas Miles
critica demais os instintos absurdistas de Zappa.
Os títulos eram hilariantes, do álbum "Burnt Weeny Sandwich"
[Sanduíche de Salsicha Queimada]
a canções como "Help, I'm a Rock"
[Ajude-me, Sou uma Pedra], "Prelude to the Afternoon of a Sexually
Aroused Gas Mask" [Prelúdio para
a Tarde de uma Máscara de Gás Sexualmente Excitada], "Don't Eat
the Yellow Snow" [Não Coma a Neve Amarela], "Don't You Ever
Wash That Thing?" [Você Nunca
Lava Esse Treco?] e "The Meek
Shall Inherit Nothing" [Os Humildes Nada Herdarão].
Miles, que era amigo de Zappa,
muitas vezes parece ambivalente
a seu respeito. Existe uma brecha
entre o Zappa "juvenil e pudico"
que ele descreve e o homem que
vemos nas sensacionais fotos do livro, um homem de magnetismo
inegável e de intelecto penetrante.
Miles rotula Zappa de "niilista
frio", incapaz de sentir emoção a
respeito de alguém. Além de seu
"cinismo e misantropia", ele detecta culpa católica e "problemas
profundos em relação às mulheres". Zappa "estava preso nos anos
50" -mas a audaz feminista Germaine Greer era uma de suas fãs.
Qualquer que seja o significado do
sadomasoquismo e das imagens
fetichistas em suas canções (tema
que embaraça Miles), o quadro
que o livro pinta sobre a vida familiar do compositor é perturbador.
Quando não estava em turnê (atividade que adorava -Miles o classifica como "rato de estrada"),
Zappa passava de dez a 18 horas
trancado no cavernoso estúdio do
porão de sua mansão tudor, em
Hollywood Hills. Gostava de montar e desmontar objetos e foi um
dos inovadores nos dias pioneiros
da produção digital de discos.
Entrevistas agressivas
Viciado em café forte e cigarros
(era inimigo ferrenho das drogas),
ele dormia durante o dia e pouco
via a família. Sua segunda mulher,
Gail, dizia que "amor não é com o
Frank". Quando tinha 13 anos,
Moon Unit deixou um bilhete para
o pai no estúdio para "se apresentar" e falar de suas idéias. O resultado foi o sucesso "Valley Girl", um
fenômeno quando do lançamento,
em 1982. Porque acreditava que a
educação formal fosse perda de
tempo, Zappa tirou os filhos da escola aos 15 anos e se recusou a lhes
pagar universidades.
Entrevistas agressivas eram uma
das artes que dominava. Zappa
costumava dizer que "jornalismo
de rock envolve gente que não sabe
escrever entrevistando gente que
não sabe falar para gente que não
sabe ler". Enquanto a indústria fonográfica ganhava aspecto mais
corporativo, ele se esforçava por
manter a independência artística e
às vezes lançava trabalhos estupidamente anticomerciais, como um
álbum duplo estrelado por um morador de rua psicótico.
Aliado de Larry Flint [editor da
revista pornográfica "Hustler"],
Zappa era defensor constante da liberdade de expressão e, em 1985, se
envolveu em guerra aberta contra
o "Parents" Music Resource Center", organização formada por mulheres de políticos de Washington e
liderada por Tipper Gore [mulher
de Al Gore, vice-presidente dos
EUA no governo Clinton e candidato derrotado do Partido Democrata à Presidência, em 2000, contra George W. Bush].
Em vigoroso depoimento diante
de um comitê do Senado, Zappa
deplorou o pedido do grupo por
um sistema de classificação etária
para os discos. Por ter criado os filhos sem regras, jamais reconheceu
que os pais pudessem ter preocupações legítimas quanto à sexualização excessiva da comunicação de
massa.
A reputação de Zappa era tão elevada na Europa que [o escritor
tcheco que foi presidente da antiga
Tchecoslováquia entre 1989 e 1992
e, da República Tcheca, de 1993 a
2003] Vaclav Havel o convidou para ser representante cultural e comercial da Tchecoslováquia em
1990 -arranjo rapidamente indeferido pelo primeiro governo Bush.
Alguns meses mais tarde, Zappa
soube que tinha câncer terminal de
próstata. Morreu aos 52 anos, em
1993. Os filhos colocaram pimenta
"cayenne" e sua máquina de café
expresso em seu caixão.
O músico continua a ter uma base leal de fãs em todo o mundo. Seu
legado é o pioneiro casamento entre a arte e a tecnologia. Quando
descobriu o Synclavier [estação de
trabalho musical que combina a
tecnologia do computador com
sintetizador e sampler], enfim conseguiu aquilo que, segundo Miles,
desejara o tempo todo -a capacidade de fazer música sem falíveis
músicos humanos. Mas o Synclavier se tornou obsoleto, e a música
que Zappa compôs para essa máquina, o ponto mais alto de sua carreira como compositor, dificilmente voltará a ser executada na
forma como ele a concebeu.
Este texto foi publicado originalmente no
"New York Times Book Review".
Tradução de Paulo Migiliacci.
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