São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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+ música

"Zappa", de Barry Miles, defende que o músico, morto em 1993, foi uma das figuras centrais da cultura norte-americana do final do século 20 ao fundir jazz, rock e atonalismo e ro mper as fronteiras entre os gêneros

O Duchamp do rock

CAMILLE PAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Frank Zappa é uma das figuras mais difíceis de classificar na música popular norte-americana. Devoto apaixonado do "rhythm'n'blues", ele combinou rock, jazz e música atonal. Sua persona era uma mistura de beat excêntrico e indignado e de satirista à maneira da revista "Mad". "Zappa" [Grove Press, 320 págs., US$ 25], biografia escrita por Barry Miles, argumenta que o músico foi um artista tão importante quanto [o pintor francês Gustave] Courbet [1819-1877] ou [Marcel] Duchamp [1887-1968]. A despeito de ocasionais declarações exageradas e tendenciosas, o livro estabelece, de fato, que Zappa, por meio de suas experiências na fronteira entre muitos gêneros, merece ser considerado uma das figuras centrais da cultura norte-americana do final do século 20. Zappa nasceu em Baltimore, em 1940, filho de uma família pobre de imigrantes italianos. Seu pai, nascido na Sicília e homem muito severo, arranjou emprego no Departamento da Defesa e se transferiu com a mulher e os quatro filhos para diversos locais do país até que a família foi parar na Califórnia. Aos 15 anos, Zappa já havia estudado em seis diferentes escolas de segundo grau e, de acordo com Miles, enfrentou dificuldades para formar amizades íntimas pelo resto de sua vida. O jovem Frank era um aluno medíocre e entediado que deixou sua marca como palhaço da classe. Gostava de misturar produtos químicos explosivos, e uma brincadeira perigosa em festa na casa de pais de amigos causou sua suspensão na escola.

Buzinas e sinos
Na adolescência, seu principal interesse era a música "doo-wop" [tipo de rock e rhythm'n'blues vocal muito popular nos anos 50 e 60; normalmente conta com um vocalista enquanto um trio ou quarteto canta a harmonia da música], especialmente na forma de interpretação escolhida pelas bandas formadas por jovens de origem mexicana, cujo vistoso estilo "pachuco" (delinqüente juvenil) ele veio a adotar. Tocava bateria e, depois, guitarra em bandas amadoras.
Zappa se interessava pelo som em si, não necessariamente pela música -como as buzinas de carros e os sinos registrados nos discos de Spike Jones. Um artigo em uma revista condenando uma composição dissonante para percussão o levou a "Ionisation", de Edgard Varèse, e isso mudou sua vida. Ficou fascinado pela mistura de instrumentos tradicionais e eletrônicos que o compositor propunha bem como pelos sons de rua gravados que constavam de suas peças. Depois de descobrir o trabalho de Stravinski [compositor russo, 1882-1971], Zappa começou a sonhar com uma carreira como compositor sério.
Ele abandonou a faculdade local depois de apenas um semestre e tentou produzir filmes de baixo orçamento. Casou-se cedo e logo se divorciou. Enquanto Miles registra o progresso acidentado de Zappa em direção aos seus primeiros discos, descobrimos o fascinante panorama da contracultura californiana do começo dos anos 60, onde a música folk estava se misturando com o rock pesado.
O elenco inclui os Byrds e os Doors bem como Grace Slick, Eric Clapton, Eric Burdon e Mick Jagger, que apareciam de vez em quando para tocar em "jam sessions" nos bangalôs e casas das colinas que cercam Los Angeles. A descrição que Miles faz do bizarro panorama, com invasores de imóveis abandonados, pessoas sem moradia fixa e hordas de meninas que se tornaram fãs dos músicos ainda antes do sucesso, captura de maneira vívida a magia daquele momento de criação.
"Freak Out!" (1966) foi o primeiro disco de Frank Zappa com a banda Mothers of Invention. Trata-se de um marco na história do rock -um dos primeiros álbuns conceituais completamente integrados. Com seu caleidoscópio de humores e suas piadas de vaudeville, "Freak Out!" delineava um quadro épico de um país frívolo, viciado em mídia e sob vigilância autoritária. "Quem é a polícia mental?", perguntava uma das canções. "Trouble Every Day" [Problemas Todos os Dias] tinha por tema os distúrbios raciais em Watts (1965). E, em meio a tudo isso, um certo tom de sacanagem brincalhona dominava o disco, como no clássico trocadilho "Suzy Requeijão... O que deu em você?" ["Suzy Creamcheese... What's got into you?"], usado por Zappa em uma das canções.
O Mothers of Invention passou por muitas mudanças de pessoal ao longo dos anos. Miles não tenta disfarçar o histórico horrendo e às vezes brutal de Zappa no tratamento a seus músicos. Ele negava a contribuição deles para o sucesso da banda e, mais tarde, deixou de lhes pagar royalties.
Zappa era um guitarrista brilhante -definia seus solos como "esculturas no ar"-, mas aspirava a ser encarado seriamente como compositor. Seu trabalho de vanguarda era marcado por complexas mudanças de tempo, muito difíceis de executar.
Muitos músicos clássicos são testemunhas da capacidade de Zappa para encontrar seus pontos fortes e distendê-los até o limite. A Orquestra Sinfônica de Londres executou composições suas; em 1992, uma interpretação mais extensa de seu trabalho pelo Ensemble Modern, em um teatro de ópera de Frankfurt, foi aplaudida de pé por 20 minutos.
Miles atribui o problema de credibilidade de Zappa ao seu hábito "autodestrutivo" de batizar suas obras mais sérias com títulos escatológicos ou sexuais. Zappa era incorrigível no que tange a nomes, diz ele. Sua filha se chama Moon Unit, e o filho recebeu o nome Dweezil, em homenagem a um dos dedos do pé de sua mãe. Mas Miles critica demais os instintos absurdistas de Zappa.
Os títulos eram hilariantes, do álbum "Burnt Weeny Sandwich" [Sanduíche de Salsicha Queimada] a canções como "Help, I'm a Rock" [Ajude-me, Sou uma Pedra], "Prelude to the Afternoon of a Sexually Aroused Gas Mask" [Prelúdio para a Tarde de uma Máscara de Gás Sexualmente Excitada], "Don't Eat the Yellow Snow" [Não Coma a Neve Amarela], "Don't You Ever Wash That Thing?" [Você Nunca Lava Esse Treco?] e "The Meek Shall Inherit Nothing" [Os Humildes Nada Herdarão].
Miles, que era amigo de Zappa, muitas vezes parece ambivalente a seu respeito. Existe uma brecha entre o Zappa "juvenil e pudico" que ele descreve e o homem que vemos nas sensacionais fotos do livro, um homem de magnetismo inegável e de intelecto penetrante. Miles rotula Zappa de "niilista frio", incapaz de sentir emoção a respeito de alguém. Além de seu "cinismo e misantropia", ele detecta culpa católica e "problemas profundos em relação às mulheres". Zappa "estava preso nos anos 50" -mas a audaz feminista Germaine Greer era uma de suas fãs. Qualquer que seja o significado do sadomasoquismo e das imagens fetichistas em suas canções (tema que embaraça Miles), o quadro que o livro pinta sobre a vida familiar do compositor é perturbador. Quando não estava em turnê (atividade que adorava -Miles o classifica como "rato de estrada"), Zappa passava de dez a 18 horas trancado no cavernoso estúdio do porão de sua mansão tudor, em Hollywood Hills. Gostava de montar e desmontar objetos e foi um dos inovadores nos dias pioneiros da produção digital de discos.

Entrevistas agressivas
Viciado em café forte e cigarros (era inimigo ferrenho das drogas), ele dormia durante o dia e pouco via a família. Sua segunda mulher, Gail, dizia que "amor não é com o Frank". Quando tinha 13 anos, Moon Unit deixou um bilhete para o pai no estúdio para "se apresentar" e falar de suas idéias. O resultado foi o sucesso "Valley Girl", um fenômeno quando do lançamento, em 1982. Porque acreditava que a educação formal fosse perda de tempo, Zappa tirou os filhos da escola aos 15 anos e se recusou a lhes pagar universidades.
Entrevistas agressivas eram uma das artes que dominava. Zappa costumava dizer que "jornalismo de rock envolve gente que não sabe escrever entrevistando gente que não sabe falar para gente que não sabe ler". Enquanto a indústria fonográfica ganhava aspecto mais corporativo, ele se esforçava por manter a independência artística e às vezes lançava trabalhos estupidamente anticomerciais, como um álbum duplo estrelado por um morador de rua psicótico.
Aliado de Larry Flint [editor da revista pornográfica "Hustler"], Zappa era defensor constante da liberdade de expressão e, em 1985, se envolveu em guerra aberta contra o "Parents" Music Resource Center", organização formada por mulheres de políticos de Washington e liderada por Tipper Gore [mulher de Al Gore, vice-presidente dos EUA no governo Clinton e candidato derrotado do Partido Democrata à Presidência, em 2000, contra George W. Bush].
Em vigoroso depoimento diante de um comitê do Senado, Zappa deplorou o pedido do grupo por um sistema de classificação etária para os discos. Por ter criado os filhos sem regras, jamais reconheceu que os pais pudessem ter preocupações legítimas quanto à sexualização excessiva da comunicação de massa.
A reputação de Zappa era tão elevada na Europa que [o escritor tcheco que foi presidente da antiga Tchecoslováquia entre 1989 e 1992 e, da República Tcheca, de 1993 a 2003] Vaclav Havel o convidou para ser representante cultural e comercial da Tchecoslováquia em 1990 -arranjo rapidamente indeferido pelo primeiro governo Bush. Alguns meses mais tarde, Zappa soube que tinha câncer terminal de próstata. Morreu aos 52 anos, em 1993. Os filhos colocaram pimenta "cayenne" e sua máquina de café expresso em seu caixão.
O músico continua a ter uma base leal de fãs em todo o mundo. Seu legado é o pioneiro casamento entre a arte e a tecnologia. Quando descobriu o Synclavier [estação de trabalho musical que combina a tecnologia do computador com sintetizador e sampler], enfim conseguiu aquilo que, segundo Miles, desejara o tempo todo -a capacidade de fazer música sem falíveis músicos humanos. Mas o Synclavier se tornou obsoleto, e a música que Zappa compôs para essa máquina, o ponto mais alto de sua carreira como compositor, dificilmente voltará a ser executada na forma como ele a concebeu.


Este texto foi publicado originalmente no "New York Times Book Review". Tradução de Paulo Migiliacci.


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