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Ponto de Fuga
O caçador de humanos
Graças a satélites, torna-se possível devassar tudo o que ocorre em cada canto; mas Ridley Scott mostra que, diante da astúcia humana,
a alta tecnologia fracassa
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Uma das mais belas constantes no cinema de Ridley Scott é sua vontade
de compreender os conflitos
contemporâneos mais complexos. Ele enfrenta, com profundidade, atritos culturais e religiosos delicados: foi assim com
"Cruzada", cujo titulo original
é "O Reino dos Céus".
Procura chaves para o fenômeno histórico mais surpreendente de nosso tempo: a ressurgência intolerante e radical
do misticismo como fonte de
violência.
Seu novo filme, "Rede de
Mentiras", deixa forte impressão de confinamento em meio
a uma saturação de multidões,
ao formigueiro humano. Opõe
à densa efervescência o olhar
tecnológico que capta tudo alto. Essa tecnologia é esplêndida e fascinante.
Graças a satélites situados a
milhares de quilômetros, torna-se possível devassar com
minúcia tudo o que ocorre em
cada canto; as comunicações
visuais e sonoras atingem um
altíssimo grau de precisão.
Tudo é muito sedutor, como
um videogame. Mas Scott mostra que a realidade é outra coisa
e que, diante da astúcia humana, a alta tecnologia fracassa.
Seu humanismo cresce graças à fusão de sentimentos pela
mescla de culturas. Fragmentos de ossos de um amigo árabe, morto numa explosão, penetram no corpo do protagonista, que é americano: metáfora física e surpreendente da
mesma humanidade à qual ambos pertencem.
Há certa negligência da narração ao seguir o roteiro, que é
hábil. Mas, justamente, o diretor desfaz a esperteza da trama.
Em vez de tensioná-la, exalta
cada episódio, conferindo a
eles uma unidade quase autônoma. O avanço em direção ao
objetivo final se faz por etapas
intensas, talvez menos importantes para o progresso da narrativa que para uma série de
provas iniciáticas.
"Rede de Mentiras" é um filme de aprendizado.
Turbante
A boa cumplicidade cria os
amigos; dessa maneira, os meninos no almoço indicam, sub-reptícios, as comidas ruins feitas pela mãe, má cozinheira, ao
convidado. Tais relações impõem-se em escala mais ampla
e perigosa quando se criam laços entre o chefe dos serviços
jordanianos de informação e o
espião americano.
Por esse meio, Ridley Scott
expõe a incapacidade dominante no Ocidente, caracterizado aqui pelos EUA, de compreender o outro em sua alteridade, de respeitá-lo e, menos
ainda, de aderir a ele.
O final, em "Rede de Mentiras", tem o papel de um desafio:
amor, amizade, felicidade podem existir fora dos trilhos ocidentais.
Nip/Tuck
Quantos precisam morrer
para que uma balzaquiana refaça os seios, a cara, as coxas e o
traseiro? Segundo "Queime
Depois de Ler", filme dos irmãos Coen, muitos.
O filme começa com um mergulho do alto para baixo, aproximação vertiginosa de um prédio, e termina, ao contrário, do
baixo para o alto. Como "Rede
de Mentiras", há uma oposição
entre a visão genérica tomada
nas altitudes e a vida corriqueira dos seres humanos.
Mancada
Em "Queime Depois de Ler",
nem a CIA, presente também
em "Rede de Mentiras", nem o
mundo "real" oferecem nenhuma chave para a compreensão
do que quer que seja nas ações
das mulheres e dos homens.
Os equívocos estão repletos
de humor negro vigoroso e cínico. Enunciam três condições
para que tudo dê errado: o acaso, a imbecilidade e a paranóia.
Todos os sinais são compreendidos de maneira equivocada por todo mundo, salvo pelo chefão da CIA, que acerta
porque não se interessa em entender coisa nenhuma.
jorgecoli@uol.com.br
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