São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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Ponto de Fuga

O caçador de humanos



Graças a satélites, torna-se possível devassar tudo o que ocorre em cada canto; mas Ridley Scott mostra que, diante da astúcia humana, a alta tecnologia fracassa


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das mais belas constantes no cinema de Ridley Scott é sua vontade de compreender os conflitos contemporâneos mais complexos. Ele enfrenta, com profundidade, atritos culturais e religiosos delicados: foi assim com "Cruzada", cujo titulo original é "O Reino dos Céus". Procura chaves para o fenômeno histórico mais surpreendente de nosso tempo: a ressurgência intolerante e radical do misticismo como fonte de violência.
Seu novo filme, "Rede de Mentiras", deixa forte impressão de confinamento em meio a uma saturação de multidões, ao formigueiro humano. Opõe à densa efervescência o olhar tecnológico que capta tudo alto. Essa tecnologia é esplêndida e fascinante. Graças a satélites situados a milhares de quilômetros, torna-se possível devassar com minúcia tudo o que ocorre em cada canto; as comunicações visuais e sonoras atingem um altíssimo grau de precisão.
Tudo é muito sedutor, como um videogame. Mas Scott mostra que a realidade é outra coisa e que, diante da astúcia humana, a alta tecnologia fracassa. Seu humanismo cresce graças à fusão de sentimentos pela mescla de culturas. Fragmentos de ossos de um amigo árabe, morto numa explosão, penetram no corpo do protagonista, que é americano: metáfora física e surpreendente da mesma humanidade à qual ambos pertencem. Há certa negligência da narração ao seguir o roteiro, que é hábil. Mas, justamente, o diretor desfaz a esperteza da trama.
Em vez de tensioná-la, exalta cada episódio, conferindo a eles uma unidade quase autônoma. O avanço em direção ao objetivo final se faz por etapas intensas, talvez menos importantes para o progresso da narrativa que para uma série de provas iniciáticas. "Rede de Mentiras" é um filme de aprendizado.

Turbante
A boa cumplicidade cria os amigos; dessa maneira, os meninos no almoço indicam, sub-reptícios, as comidas ruins feitas pela mãe, má cozinheira, ao convidado. Tais relações impõem-se em escala mais ampla e perigosa quando se criam laços entre o chefe dos serviços jordanianos de informação e o espião americano. Por esse meio, Ridley Scott expõe a incapacidade dominante no Ocidente, caracterizado aqui pelos EUA, de compreender o outro em sua alteridade, de respeitá-lo e, menos ainda, de aderir a ele. O final, em "Rede de Mentiras", tem o papel de um desafio: amor, amizade, felicidade podem existir fora dos trilhos ocidentais.

Nip/Tuck
Quantos precisam morrer para que uma balzaquiana refaça os seios, a cara, as coxas e o traseiro? Segundo "Queime Depois de Ler", filme dos irmãos Coen, muitos. O filme começa com um mergulho do alto para baixo, aproximação vertiginosa de um prédio, e termina, ao contrário, do baixo para o alto. Como "Rede de Mentiras", há uma oposição entre a visão genérica tomada nas altitudes e a vida corriqueira dos seres humanos.

Mancada
Em "Queime Depois de Ler", nem a CIA, presente também em "Rede de Mentiras", nem o mundo "real" oferecem nenhuma chave para a compreensão do que quer que seja nas ações das mulheres e dos homens. Os equívocos estão repletos de humor negro vigoroso e cínico. Enunciam três condições para que tudo dê errado: o acaso, a imbecilidade e a paranóia. Todos os sinais são compreendidos de maneira equivocada por todo mundo, salvo pelo chefão da CIA, que acerta porque não se interessa em entender coisa nenhuma.

jorgecoli@uol.com.br


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