São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Comemoração dos 250 anos de nascimento de Mozart, na próxima sexta, sobrevaloriza a importância do compositor austríaco, que não revolucionou as bases da música de seu tempo, como fizeram Bach e Beethoven

O rei da Muzak

NORMAN LEBRECHT

Estão limpando a vapor as ruas de Viena antes do aniversário dos 250 anos de seu nascimento, no dia 27, quando haverá excursões de peregrinos pelos santuários do compositor. Salzburgo está distribuindo folhetos de seu festival de verão de 2006, que apresentará todas as óperas do cânone Köchel, dos fragmentos da infância até "A Flauta Mágica", 22 ao todo. Pierre Boulez, o papa do modernismo musical, quebrará 80 anos de grave abstinência para reger um concerto principalmente de Mozart, uma virgem-celebridade no altar do comércio musical.
Onde quer que você vá neste ano, não escapará de Mozart. O aniversário de seu nascimento está sendo comemorado com sisuda eficiência como um ímã de turistas para sua terra natal e um chamariz para a venda de sua volumosa produção. As obras completas, 626, estão sendo comercializadas em dois superestojos de discos em oferta especial.
Mozart é o papel de parede da música clássica de megaloja, o compositor que mais agrada e menos ofende. Alegre, melódico, sem dissonâncias: de que não gostar? Sua música não apenas é encantadora como cheia de boas vibrações.
O Mozart Effect, um centro de recursos norte-americano que atribui "poderes transformacionais" ao menino-prodígio austríaco, reúne evidências empíricas para mostrar que a música de Mozart, mas não outras, melhora o aprendizado, a memória, o cultivo de uvas e o treinamento infantil para usar o banheiro e deveria ser martelada nos cursos para mães grávidas juntamente com os exercícios de respiração.
Uma "base molecular" identificada na sonata para dois pianos de Mozart teria estimulado uma atividade cerebral excepcional em ratos de laboratório. Como é possível discutir tais "provas"? Afinal, a ciência confirma o que queremos acreditar -que a arte é boa para nós e que Mozart, em sua breve ingenuidade, representa um ideal paradisíaco de beleza orgânica, não poluído pela sujeira industrial e a perda da fé. Bonito, se fosse verdade.

Competente, mas esnobe
A imagem da caixa de chocolates de Mozart como um pequeno milagre pode receber imediatamente cascudos na cabeça. Filho de um cínico músico da corte, Mozart foi ensinado desde o início a atrair musicalmente as graças dos ricos e poderosos. Em turnês desde os cinco anos, o menino subia no colo de rainhas e tocava límpidos consolos para monarcas impiedosos. Reconhecendo que sua música era melhor que a da maioria, ele se comprazia em humilhar rivais na corte e os insultava cruamente nas cartas que mandava para casa.
Uma obsessão coprofílica pelas funções corporais, precisamente mostrada na peça de Peter Shaffer e no filme de Milos Forman, "Amadeus", era um claro sinal de desenvolvimento emocional interrompido. Seu casamento foi instável, e sua incapacidade de controlar as grandes somas que recebia dos ricos patronos vienenses era um sintoma do comportamento infantil que apressou sua morte precoce e seu enterro miserável. Mozart pode ter sido um gênio musical, mas não foi um Einstein. Os segredos do universo, procure em outro lugar.

Preenchendo os vazios
O maior teste da importância de qualquer compositor é a medida em que ele remodelou a arte. Mozart, é seguro dizer, deixou de levar a música um passo adiante. Diferentemente de Bach e Haendel, que herdaram um legado agonizante e o revitalizaram a ponto de torná-lo irreconhecível, ou de Haydn, que inventou a forma da sonata, sem a qual a música jamais teria adquirido sua dimensão clássica, Mozart simplesmente preencheu os espaços entre as pautas com acordes que, ele sabia, agradariam a uma platéia indulgente. Ele foi um provedor de audição fácil, um progenitor da muzak [som ambiente de escritórios e elevadores].
Alguns estudiosos reivindicaram propensões revolucionárias para Mozart, mas isso é um otimismo absurdo. Suas óperas de criados inteligentes e amos estúpidos foram concebidas por Lorenzo da Ponte, um padre renegado, baseadas em peças de Beaumarchais e Ariosto; e, se Mozart certa vez ousou responder ao altíssimo imperador José 2º, sabia muito bem de onde vinha a manteiga de seu brioche matinal.
Faltava-lhe o furor de justiça que levou Beethoven ao isolamento ou qualquer ímpeto para mudar o mundo. Mozart compôs uma pequena música noturna para o Antigo Regime. Ele não foi tanto reacionário quanto retrógrado, um compositor que se contentou em preservar a música em estado de servidão, desde que o mantivesse bem abastecido de roupas com babados e plumas elegantes.
Há poucos motivos para celebrar uma vida tão medíocre, e realmente pouco se fez para marcar o centenário de seu nascimento, em 1856, ou o de sua morte, em 1891. O carro alegórico das comemorações a Mozart foi inventado pelos nazistas em 1941 e promovido pelas rivalidades do pós-guerra em 1956, quando a Deutsche Grammophon emergiu das ruínas para superar os animados selos britânicos EMI e Decca com um primeiro ciclo de gravações das óperas de Da Ponte.
O bicentenário da morte de Mozart, em 1991, transformou Salzburgo num pântano de mau gosto e cobiça. A estréia mundial de uma ópera kitsch, "Mozart em Nova York", me fez olhar para o relógio a cada cinco intermináveis minutos. A indústria fonográfica, ainda vibrante, espalhou Mozart por todos os tapumes vazios, e um novo fenômeno, a Classic FM, lançada em 1992 na onda Mozart, garantiu que nunca mais estaríamos longe do próximo acorde de marzipã.

Temporada em Guantánamo
Que tanto benefício Mozart causou é discutível. Com toda a pseudociência do Mozart Effect, ainda não vi uma vida ser elevada por "Cosi Fan Tutte" ou um criminoso recuperado pelos "plins" de um concerto para flauta e harpa. Enquanto dez dias de Bach na BBC Radio 3 podem inundar os ouvidos do mundo e abrir as mentes para paisagens ilimitadas, o ano de Mozart parece uma temporada na baía de Guantánamo, sem o sol. Não haverá refúgio dos acordes claramente resolvidos nem escapatória daquele agradável sorriso musical.
Não procure na mídia de massa contexto ou controle de qualidade. Tanto a BBC como canais independentes rejeitaram qualquer perspectiva crítica sobre Mozart neste ano, preferindo documentários adocicados que regurgitam clichês. Nessa orgia de mediocridade, o centenário concorrente de Dmitri Shostakovich -um compositor de verdadeira coragem e importância histórica- está sendo relegado às margens, celebrado por poucos.
Mozart é uma ameaça ao progresso musical, uma relíquia de rituais que já perdiam relevância em seu próprio tempo e são insignificantes para o nosso. Além de uma beleza superficial e da certeza estrutural, Mozart não tem nada a dar à mente ou ao espírito no século 21. Deixem-no descansar. Ignorem a investida comercial. Toquem a sinfonia "Leningrado". Escutem música que interessa.


Este texto foi publicado originalmente na revista "La Scena Musicale".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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