São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AS APOSTAS CONTRA HAMLET


O CRÍTICO FRANK KERMODE, O BIÓGRAFO ANTHONY HOLDEN, O BEST-SELLER KEN FOLLETT E MAIS TRÊS ESPECIALISTAS DISCUTEM UMA CENA-CHAVE DA PRINCIPAL TRAGÉDIA DE WILLIAM SHAKESPEARE


da Redação

A convite do "Times Literary Supplement", um dos mais antigos e prestigiados suplementos culturais do mundo, seis especialistas de áreas como crítica literária, economia e esgrima discutem o sentido do duelo travado entre Hamlet e Laerte, na cena 2 do ato 5º da tragédia do inglês William Shakespeare (1564-1616). Frank Kermode, Anthony Holden, Robin Marris, Ken Follett, Linden Stafford e Daniel Marciano discutem as chances de Hamlet e até que ponto ele está sendo manipulado pelo rei Cláudio.

Frank Kermode - À procura de problemas sobre os quais falar numa palestra, topei com o duelo ao final de "Hamlet". Ao transmitir a Hamlet o desafio lançado por Cláudio, Osric lhe diz que o rei Cláudio "apostou em 12 contra 9" (em termos de "golpes") a favor de Laerte (1). Mas ninguém parece ter calculado as chances. Você, Tony, talvez consiga fazê-lo, depois de passar tantas noites suadas jogando pôquer em Las Vegas. É um problema e tanto, estou avisando. Mas você vai saber resolvê-lo.
Anthony Holden - Você tem razão. É uma questão complexa, entre outras coisas porque o texto é ambíguo. Mas lá vai: pelos meus cálculos, as chances de Laerte derrotar Hamlet são péssimas para o apostador. São de um contra quatro (ou quatro para um, na linguagem dos corretores de apostas -ou seja, você arrisca quatro coroas para ganhar uma). Não é uma aposta muito interessante, mesmo que Laerte seja tão bom quanto se comenta e mesmo que Hamlet, como ele mesmo afirma, não tenha praticado nenhum exercício recentemente.
Mas acho que isso é apenas nosso rapaz jogando "jogos mentais", ao estilo do que fazem os treinadores de futebol. Pois o livro também nos diz que ele vem "treinando constantemente" desde que Laerte foi à França (ou seja, desde o início da peça, enquanto o próprio Hamlet esteve em Elsinore recentemente, apesar de sua alegação contraditória de que teria se abstido de qualquer forma de exercício). Pode ser apenas um vacilo de Shakespeare. Se Hamlet vencer, contrariando as chances, talvez precisemos de um inquérito oficial...
Como eu fiz o cálculo? Osric diz que o rei apostou que, em 12 golpes, Hamlet não excederia três acertos: ele "apostou em 12 contra 9". Doze por nove é igual a quatro por três, o que, aparentemente, significaria 4-3. Mas o rei parece estar trapaceando desde já. "Exceder" três acertos certamente significa acertar 4 em 12 possíveis. Quatro acertos em 12 é igual a pelo menos um em três ou um em quatro, em termos de apostas. Logo, as chances são de um quarto: quatro a um a favor de Laerte, ou 4-1 contra Hamlet.
Mas será que Osric, na realidade, não é homem acostumado a fazer apostas? Será que ele entendeu errado as instruções que recebeu, ou seja, a aposta do rei? Se fizermos uma modificação sedutora no texto, dizendo "o rei apostou que, em 12 golpes, Hamlet não excederá em mais do que três acertos", isso muda tudo, e as chances (desde o ponto de vista de Cláudio) melhoram, passando para 4-3 (ou, como ele diz, para 12-9).
Ainda assim, é uma má aposta, de modo que ele talvez precisasse envenenar os floretes.
Se o erro não foi de Osric, teria sido de um tipógrafo? Uma reconstrução de memória? Ou simplesmente fólio versus in quarto ruim?
Estou usando a edição "Las Vegas", é claro, na qual Arden ["The Arden Edition of the Works of William Shakespeare", organizada por Harold Jenkins] omite a palavra "aposta", ou seja, Horácio diz apenas "perderás, meu senhor". Hamlet, como sabemos, responde: "Vencerei nas chances". Será que Jenkins, da Arden, que foi responsável pela eliminação lógica de "aposta", sabia do que falava -ou seja, será que gostava de fazer suas próprias apostas?
Kermode - Mas o que dizer dos seis cavalos da Barbária e das seis espadas? E da frase do rei: "Não o temo, já vi a ambos?". Ademais, Evert Sprinchorn, tão rudemente desprezado por Jenkins, mostra, por meio de coeficientes binomiais (que, confesso, eu não compreendo), a resposta à pergunta "considerando-se um duelo entre jogadores igualmente hábeis, A e B, que deve continuar até que ou A tenha ganho oito partidas ou B tenha ganho cinco, quais são as chances contra A?" (ou seja, as chances contra A representam as chances que Laerte aceita na disputa desigual na qual é visto como superior a Hamlet).
A resposta, segundo Sprinchorn, é que a probabilidade de A vencer é de 794 em 4.096. Expresso como chances, isso quer dizer aproximadamente 4-1 contra Laerte. Essa é uma resposta que teria satisfeito a Fermat [1601-65] e a Pascal [1623-62], que foram os primeiros a começar a estudar as probabilidades.
Holden - Essas conclusões parecem indicar que Laerte venceria, apesar do "handicap" imposto por Cláudio -ou seja, desconfio (embora eu não compreenda Sprinchorn melhor do que vocês) de que estamos navegando no âmbito da probabilidade, mais do que das simples chances em aposta. E é profundamente gratificante que você, por meios tão eruditos, tenha chegado à mesma conclusão que eu formulei de início. Isso dito, acho melhor submeter tudo isso a um economista que conheço.
Robin Marris - O rei diz que o índice máximo de acertos de Hamlet é de 1 em 4 (3 em 12). Mas ele poderia fazer pior. Assim, Hamlet é cotado em, digamos, 5-1 contra ele. O outro é cotado em 1-5 a seu favor.
Ken Follett - Não é uma aposta de dinheiro. Cláudio apostou seis cavalos da Barbária, e Laerte apostou seis floretes e punhais franceses. Não há chances, no sentido em que o termo é utilizado pelos corretores de apostas. Os números se referem a outra coisa.
Todo mundo presume que Hamlet seja o pior espadachim dos dois. Portanto, Laerte precisa começar com um "handicap" (uma desvantagem). O que está em discussão é o tamanho desse "handicap".
Quando Horácio diz "perderás essa aposta", Hamlet responde: "Vencerei nas chances". É claro que Hamlet não fez nenhuma aposta. Ele espera ganhar o duelo, em vista do "handicap".
O "handicap" acordado é de três acertos. Se Laerte acertar um mínimo de três golpes mais que Hamlet, Laerte vencerá o duelo. Se superar Hamlet por um número menor de acertos, perderá, mesmo assim.
Depois disso, a história fica confusa. Cláudio apostou que, em 12 golpes, Laerte não superará Hamlet em mais de três acertos. Mas o que é um golpe? Logicamente falando, um golpe terminaria com um acerto. Em uma dúzia de golpes, haveria o total de 12 acertos. Mas, nesse caso, seria impossível vencer por três. Os únicos resultados possíveis são: 12-0 (Laerte ganha por 12 pontos), 11-1 (Laerte ganha por dez pontos), 10-2 (Laerte ganha por oito pontos), 9-3 (seis pontos), 8-4 (quatro pontos), 7-5 (dois pontos) e 6-6 (empate). A aritmética não será diferente se cada golpe consistir em dois acertos, dando um máximo de 24. Ainda não será possível vencer por um número ímpar.
Entretanto, na luta propriamente dita, no que parece constituir o terceiro golpe, cada um fere o outro, de modo que deve ser possível ter mais de um acerto por golpe. Pensando bem, isso pode ter sido comum, à medida que os dois combatentes poderiam, com freqüência, encostar um no outro de maneira mais ou menos simultânea. Por outro lado, mais do que dois acertos por golpe é algo improvável. Assim, é possível que cada golpe inclua ou um ou dois acertos e que Cláudio calcule que o número máximo de acertos é 24 e, o mínimo, 12.
Nesse caso, haverá seis maneiras possíveis de vencer por três acertos: 13-10 (qualquer resultado maior do que isso daria um total de mais de 24 acertos), 12-9, 11-8, 10-7, 9-6, 8-5 (qualquer coisa menor daria um total menor que 12 acertos).
Laerte também vencerá, por quatro pontos ou mais, se acertar mais do que 13 e se Hamlet acertar quatro ou menos. Hamlet vencerá se o resultado for 13-11, 12-10 e assim por diante, até 7-5. Mas Osric ignora essas possibilidades, focando apenas a vitória permissível menor, pelo bem da clareza.
Mas por que Osric diz que Cláudio aposta em 12 contra 9, quando essa contagem é apenas uma entre seis maneiras de vencer por três pontos? Talvez seja apenas uma maneira de ilustrar o que quer dizer.
Seria possível um duelo terminar num empate, sem pontuação (o que explicaria o verso de Osric, "nada, para as duas partes")? Nessa leitura, é no quarto embate que os sujeitos se ferem um ao outro.
É possível que Cláudio esteja apostando que, em nenhum momento da luta, Laerte vá superar a pontuação de Hamlet em três acertos (com 4-1, por exemplo, ou 6-3)? "Ele apostou em 12 contra 9" -mas Cláudio está apostando contra Laerte e a favor de Hamlet, então será que o rei está fazendo uma aposta escondida?
Ou será que Shakespeare errou?
Cláudio faz, sim, uma espécie de aposta secundária, apostando uma "union" que Hamlet ganhará se for dele "um dos dois primeiros toques,/ Ou se ele der o troco no terceiro assalto". O que isso significa?
Kermode - Uma "union" pode significar uma pérola. Mas ele pretende dissolvê-la no vinho para envenenar Hamlet. Shakespeare simplesmente incluiu o maior número possível de termos de apostas, todos os de que conseguia se lembrar. Apesar de todos seus conhecimentos, Follett deve estar enganado com relação aos acertos simultâneos. E, de qualquer maneira, o embate de dois acertos não poderia, evidentemente, ser considerado parte de um duelo formal.
Holden - Você tem razão, mas o engenho de Follett também sugere que devamos descobrir o que se quer dizer com "um golpe".
Daniel Marciano - Um golpe parece ser o que os franceses chamam de "uma frase de armas", à medida que a esgrima é uma conversa. Por exemplo, um ataque seguido por uma defesa e resposta e, possivelmente, uma contra-resposta, até que os esgrimistas voltem a ficar fora de alcance. Uma "frase de armas", numa contenda de esgrima moderna, pode acabar com nenhum dos dois adversários acertando ou sendo acertado. Não falemos sobre um acerto duplo, da maneira como acontece nas disputas modernas; antigamente, era chamado, de maneira agradável, "le coup des deux veuves". "Une veuve" é uma viúva. Na linguagem de Shakespeare, um golpe deve chegar ao fim quando um dos esgrimistas é atingido.
Linden Stafford - Não posso falar pelos editores de "Hamlet", Ann Thompson e Neil Taylor, que ainda não me entregaram seus comentários sobre o duelo. A nota muito longa de Harold Jenkins, ao mesmo tempo em que aceita que o texto possui falhas e contradições internas, sugere uma "intenção dividida" da parte de Shakespeare quanto ao número de acertos e o método de pontuação.
É evidente que nunca houve nenhuma aposta real, já que o objetivo do duelo era matar Hamlet, e, se não houvesse um acerto com a espada envenenada, o objetivo teria sido conseguido com o cálice de vinho envenenado. A questão toda dos cavalos da Barbária e dos floretes franceses é mera distração, de modo a convencer Hamlet de que Cláudio organizou um duelo com intenção realmente amistosa.
Como Shakespeare obviamente se deu o trabalho de preparar a cena do duelo e a maneira como o rei iria ludibriar Hamlet, o mais provável é que ele tenha pego alguns termos como "golpe", "embate" e "acerto" e tenha "esquentado" a "aposta" inteiramente falsa com a fala de Osric sobre "seis cavalos da Barbária, contra os quais, pelo que entendo, ele apostou seis floretes e punhais franceses", para impedir que Hamlet desconfiasse de sua morte iminente.
Após o primeiro anúncio de Osric -"meu senhor, Sua Majestade me ordenou que lhe dissesse que ele fez uma grande aposta em seu favor"-, não apenas muitos versos, mas muitas palavras doces, são gastas por Osric até chegar ao ponto importante: "Ele apostou em 12 contra 9. E a prova teria imediato início, se Vossa Mercê condescendesse em responder".
Não importa muito o que o mensageiro da corte realmente diz, desde que soe suficientemente complicado para impedir Hamlet de adivinhar que não existe aposta alguma. Sempre achei que Hamlet parece ter acreditado na história facilmente demais, além de sentir uma dor no coração diante de uma espécie de ganho, o tipo de dor que talvez afetasse uma mulher. Mas esse é Hamlet.

Nota da Redação
1.Este e os outros trechos de "Hamlet" citados no texto foram retirados da tradução da tragédia feita por Péricles Eugênio da Silva Ramos, publicada em 1955 pela Livraria José Olympio.


Frank Kermode é crítico inglês e um dos principais especialistas na obra de Shakespeare.
Anthony Holden é escritor inglês e autor da biografia "William Shakespeare - The Man Behind the Genius" (ed. Little Brown). Foi jogador profissional de pôquer, atividade que retratou em "Big Deal - One Year as a Professional Poker Player" (ed. Abacus).
Robin Marris é professor de economia na Universidade de Londres e autor de "Ending Poverty" (Acabando com a Pobreza, Thames & Hudson).
Ken Follett é escritor galês, autor de inúmeros best-sellers, como "O Buraco da Agulha" (ed. Record).
Daniel Marciano é especialista em esgrima teatral.
Linden Stafford está preparando a nova edição Arden de "Hamlet".
Tradução de Clara Allain.


Texto Anterior: O gênio do nevoeiro
Próximo Texto: Kermode lança estudo sobre Shakespeare
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.