São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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"O Rio de Janeiro Setecentista" traça um painel da história, geografia e arquitetura da cidade entre 1711 e 1810

Luzes na urbe tropical


Para o autor, o Rio desfrutava então de um "ambiente cosmopolita e ilustrado"


Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

A historiografia brasileira dedicada ao período colonial de tempos em tempos -por vezes com intervalos maiores do que o bom diálogo entre as diversas áreas do saber recomendaria- é enriquecida com valiosas pesquisas procedentes dos domínios da arquitetura. Os casos lamentavelmente não são muitos, mas os poucos existentes compensam pela qualidade do contributo que trazem. Lembremos, a título de exemplo, as argutas análises legadas por Nestor Goulart Reis, no seu consagrado "Evolução Urbana do Brasil" (1967), ou as esclarecedoras tipologias desenvolvidas por Paulo Santos, no seu também muito conhecido "Formação de Cidades no Brasil Colonial" (1968). "O Rio de Janeiro Setecentista", do historiador e arquiteto (ou arquiteto e historiador) Nireu Cavalcanti vem sem dúvida engrossar esse rol de contributos. O livro, um pormenorizado estudo sobre a construção da cidade do Rio de Janeiro e sobre o modus vivendi de seus habitantes, da invasão de Duguay-Trouin (1711) aos anos iniciais do período joanino (1810), não somente traz à baila uma documentação referente ao cotidiano carioca setecentista ainda pouco explorada como também, e sobretudo, descreve uma cidade que, de modo geral, é bem mais viva e dinâmica, bem mais "urbana" do que aquela que nos acostumamos a encontrar em livros sobre o tema. Cavalcanti optou por apresentar os resultados da sua extensa pesquisa dividindo-a em três partes. A primeira delas, intitulada "As Cinco Muralhas", analisa os constrangimentos de ordens diversas -as "muralhas" do título que, ao longo de um século e meio, deram ao Rio de Janeiro os contornos encontrados pela esquadra de Duguay-Trouin em 1711. Explica-nos o pesquisador que, durante tal período, contribuíram de maneira decisiva para moldar a aparência da urbe e o modo de vida de sua população as seguintes variantes: a geografia e o clima, o constante medo das invasões -as estrangeiras, por mar, ou a dos índios hostis, por terra-, a disputa pela partilha das terras urbanas entre a poderosa Companhia de Jesus e o poder público, os múltiplos ditames decorrentes da relação metrópole-colônia e, ainda, a marcada divisão da sociedade local entre "pessoas honradas" e "pessoas de pouca importância".

Vida cultural
Uma vez descritas, com riqueza de detalhes, essas variantes de longa duração, Cavalcanti, na segunda parte do livro, "O Rio de Janeiro e Sua Gente", apresenta ao leitor quem eram e como viviam os cariocas. Aqui se aloja, talvez, a parte mais inovadora do trabalho, em que a boa conjugação entre o empenho analítico e a consulta de uma documentação ainda pouco explorada resulta numa perspectiva da vida cultural do Rio de Janeiro setecentista que, no mínimo, dará margem a boas discussões. Cavalcanti, de saída, empreende um extenso mapeamento dos vários profissionais de ensino e cultura que atuavam no período: livreiros, mestres-escolas, cirurgiões, atores, empresários do teatro, músicos etc. Em seguida, identifica os locais em que se manifestava a sociabilidade local: associações comerciais, irmandades, academias literárias, ligas profissionais etc. O Rio que surge daí é uma cidade relativamente culta e dotada, antes mesmo do desembarque de d. João 6º em 1808, de uma assinalável rede de circulação de idéias. Cavalcanti vai ao ponto de dizer que a urbe desfrutava, no final do setecentos, de um "ambiente cosmopolita e ilustrado", assertiva -a ter em conta os relatos de coetâneos visitantes estrangeiros e colonos- bastante excessiva, mesmo em se tratando do ocaso do século 18. A última parte do livro, "Uma Cidade Mutante", voltada para a descrição do Rio de Janeiro encontrado por d. João 6º e para a identificação de alguns dos mais destacados profissionais que o construíam (Inácio Ferreira Pinto, Manoel da Cunha Silva, Mestre Valentim e outros), começa com uma análise do patrimônio imobiliário da cidade em 1810.

Mercado imobiliário
Lançando mão, sobretudo, "dos registros das rendas geradas e das taxações cobradas pela Décima Urbana", Cavalcanti delineia os contornos do tecido urbano, classifica os diversos tipos de construção, identifica os proprietários (particulares e institucionais) e traça um breve perfil do mercado imobiliário local. Encerram essa terceira e última parte dois capítulos dedicados, respectivamente, aos homens que "punham a cidade em pé" (projetistas, artífices e construtores) e às suas obras (as "efêmeras" e as "perenes"). Há de destacar, ainda, a proposta de conclusão da obra, que convida o leitor a um passeio, através de desenhos, pela rua Direita de 1810.
Ao término da leitura deste "O Rio de Janeiro Setecentista", pode-se discordar, aqui e ali, de uma análise ou interpretação propostas pelo pesquisador, podem-se colocar restrições aos balizamentos temporais adotados no livro (1711-1810), pode-se mesmo concluir que talvez o autor tenha superestimado o alcance de certos processos culturais no Rio setecentista, minimizando o papel desempenhado pela transmigração da corte na construção do triângulo: produtor cultural, artigos de cultura, público consumidor desses artigos. É difícil, porém, não reconhecer que há tempos a história do Rio colonial não recebia um tratamento tão cuidadoso e de tanta qualidade.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (ed. José Olympio).


O Rio de Janeiro Setecentista
452 págs., R$ 52,00
de Nireu Cavalcanti. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).



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