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Ponto de fuga
A educação dos preconceitos
O filme "Dúvida" baseia-se na incerteza de saber se houve uma relação física entre um padre e um aluno; frase tremenda da madre superiora, vivida por Meryl Streep: "Ele é o que eu penso que ele é"
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Muitos críticos desdenharam "Dúvida"
porque seria "teatro
filmado" e não verdadeiro cinema. John Patrick Shanley, o diretor do filme, fez carreira como roteirista e como autor de
peças teatrais, o que reforçaria
a condenação.
Antes disso, dirigiu apenas
um longa-metragem, comédia
fantástica, conto filosófico discreto: "Joe Contra o Vulcão". A
acusação, porém, é preconceituosa. Parte de definições sumárias, sem se dar conta de
que, se funciona na tela, não é
teatro.
Shanley tomou o partido de
uma narração fluente. Nada de
experimental ou de estranho.
Como se dirigisse "Os Sinos de
Santa Maria", no caso de alguém se lembrar desse delicioso filme de Leo McCarey, estreado em 1945.
Nele, a freira Ingrid Bergman se opunha a Bing Crosby,
padre de um colégio religioso.
"Dúvida" quer contar uma história sem complicações, para
exaltar as qualidades dos atores. Do jeito que se fazia em outros tempos.
Está nos antípodas de um Almodóvar, que criou, com suas
costumeiras surpresas bizarras, "Má Educação" (2004). O
núcleo dos dois filmes é o mesmo: laços de atração tecidos
entre o padre de um colégio e
um aluno.
Apesar de seu espírito transgressor, sua cinematografia extravagante, Almodóvar limitou-se a uma fábula moralista e
conservadora. Não insinua nenhuma interrogação. Condena,
apenas. Seu padre é culpado e
abjeto.
Ao contrário, "Dúvida" denuncia o totalitarismo das certezas. Aponta para a única arma contra as tiranias, os fundamentalismos, os preconceitos
os mais arraigados e seguros de
si, que necessitam forjar tantos
acusados para reafirmarem
suas próprias verdades.
Essa arma vem desde o início
exposta no título.
Catecismo
"Dúvida" baseia-se na incerteza de saber se houve uma relação física entre o padre e o
aluno. O filme, porém, logo ultrapassa a discussão sobre a
culpabilidade objetiva, que é
superficial e jurídica. Interroga, de maneira complexa e fina,
além dos fatos, a natureza dessa
relação execrada. A questão é
sua possibilidade de não ser encarada como, forçosamente,
um mal.
O diálogo entre a superiora e
a mãe, carregado de intensidade intrincada, é espantoso em
tempos maniqueístas como os
que atravessamos.
Bruxa
Frase tremenda da madre superiora, vivida por Meryl
Streep: "Ele é o que eu penso
que ele é".
Pasárgada
História amarga, antiyuppie.
O termo é, aqui, anacrônico, já
que "Foi Apenas um Sonho" se
passa nos anos 1950, mas os
yuppies existiram antes de serem nomeados.
O filme é de Sam Mendes.
Tem algo em comum com o estilo de "Dúvida": a vontade de,
justamente, evitar qualquer estilo e fazer com que os atores,
soberbos, sobressaiam.
Pelo tema, faz pensar em
"Meu Tio da América", de Alain
Resnais (1980). O tio de Resnais é o parente distante e abstrato que permite dizer: quando não aguentar mais, vou lá
com ele, recomeçar tudo.
Ilusões que ajudam a viver.
Quando desmoronam, a tragédia espreita. Leonardo DiCaprio e Kate Winslet encarnam
uma crise interior que denuncia o ideal norte-americano de
vida. Põem o paraíso em Paris,
uma Paris que poderia libertá-los da mediocridade.
No entanto ela é inalcançável, porque o casal não consegue se desatolar do subúrbio.
Talvez "Foi Apenas um Sonho" traga, junto com "Dúvida", um microscópico vírus indicando nova era e renovação
dos tristes valores que imperam neste início de século. Ou
talvez tenham apenas levado a
uma alucinação otimista.
jorgecoli@uol.com.br
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