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O contador de histórias
Rushdie diz que sonho e vigília podem conviver na literatura, afirma que aprendeu a se aproximar do leitor, mas lamenta ter se tornado uma figura pública
A vida é
algo complexo, não é preciso segmentá-la
em suas partes
constituintes
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Horst Tappe/Reprodução
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O escritor Salman Rushdie na sala de sua casa em 1988, ano de lançamento de "Os Versos Satânicos"
EDUARDO LAGO
Madrugada de inverno de um
ano não determinado, alguns
minutos antes
do amanhecer. Um avião da Air
India sequestrado por um grupo terrorista islâmico explode
em pleno voo sobre o canal da
Mancha.
Enquanto caem sobre uma
praia da costa inglesa, dois passageiros que sobreviveram milagrosamente ao atentado comentam despreocupadamente
a situação insólita em que se
encontram. Assim começa "Os
Versos Satânicos", um dos romances mais polêmicos de todos os tempos.
O nome de seu autor, Salman
Rushdie, ganhou notoriedade
sem precedentes entre milhões
de pessoas do Oriente e do Ocidente que jamais chegariam a
abrir o livro.
A razão? Em certos trechos
do livro, há alusões a uma religião que se assemelha ao islã e
cujo livro sagrado é retocado
por sua própria conta por um
escriba imaginário que atende
pelo nome de Salman.
O que aconteceu depois da
publicação do romance é conhecido de sobra: alguns líderes religiosos muçulmanos interpretaram literalmente o estratagema literário de Rushdie,
julgando que sua obra era uma
blasfêmia contra o islã.
Em 1989, o governo iraniano,
presidido então pelo aiatolá
Khomeini, promulgou uma fatwa (decreto religioso) contra o
autor, oferecendo uma recompensa polpuda a quem executasse a sentença de morte.
O livro foi proibido em muitos países e queimado em vários atos de repúdio público,
desencadeando violentos distúrbios e manifestações que
custaram a vida a várias pessoas em três continentes.
Seguiram-se anos de dificuldade extrema para o autor, que
se viu obrigado a viver em reclusão rigorosa, mudando
constantemente de domicílio e
rodeado noite e dia por uma escolta de policiais secretos.
Em 1993 a fatwa foi ratificada. Três pessoas ligadas à publicação do livro sofreram
atentados. O tradutor japonês
do romance foi assassinado.
O governo iraniano suspendeu oficialmente a condenação
em 1998, embora vários grupos
radicais tenham se negado a
acatar a decisão.
Hoje Rushdie recebe ocasionalmente mensagens recordando a sentença fatídica. Em
2005 o aiatolá Ali Khamenei
declarou que a condenação
continuava em vigor. Em 2007
a rainha Elizabeth 2ª o nomeou
cavaleiro da Ordem do Império
Britânico, gesto que desencadeou uma nova onda de fúria
contra Rushdie em áreas extensas do mundo islâmico.
Livro fechado
Rushdie pode despertar sentimentos conflitantes entre
seus colegas de ofício. Dois autores de grande prestígio que
escreveram sobre o islã de
perspectivas muito distintas se
pronunciaram de modo contundente sobre seu destino.
O egípcio Naguib Mahfouz,
Nobel de Literatura em 1988,
reagiu à fatwa ditada contra
Rushdie acusando Khomeini
de terrorismo intelectual, mas,
mais tarde, observou que ninguém tem o direito de ofender
as crenças dos demais.
A visão de Rushdie é diametralmente oposta: "Sem o direito de ofender", observou em
certa ocasião, "não é possível
falar em liberdade de expressão". E: "Não há nada mais fácil
do que impedir que um livro
nos ofenda. Basta fechá-lo".
Tanta fumaça é capaz de nos
fazer esquecer um dado essencial: Salman Rushdie é um dos
narradores mais talentosos de
nossos tempos.
Criativo, versátil e engenhoso, caracterizado por um rigor e
uma solidez incomuns, capaz
de mover-se entre a realidade e
a fantasia com agilidade assombrosa, assim como de hibridizar tradições e gêneros aparentemente inconciliáveis, o corpus literário de Salman Rushdie -cujo romance mais recente, "A Feiticeira de Florença",
acaba de ser lançado- surpreende pelo brilho de sua linguagem, pela audácia de suas
colocações narrativas e por sua
destreza técnica.
Pessoalmente, Rushdie
transborda vitalidade. Dotado
de um talento incomum para a
narrativa oral, sua conversa é
tão versátil, amena, ágil, torrencial e imaginativa quanto o
sem-fim de histórias que se
cruzam vertiginosamente nas
páginas de seus livros.
PERGUNTA - Imagino que a esta altura o sr. se aborreça quando lhe
perguntam sobre "Os Versos Satânicos"...
SALMAN RUSHDIE - Podemos falar
do livro do ponto de vista literário, para variar (ri). Todo mundo tem uma opinião muito contundente sobre ele, sem nunca
tê-lo lido.
PERGUNTA - Quase se poderia dizer
o mesmo sobre o sr. O mártir eclipsou o escritor.
RUSHDIE - A fatwa arrasou todo
o restante.
PERGUNTA - O que o levou a escrever um livro assim?
RUSHDIE - É um romance sobre
pessoas que emigram para o
Ocidente vindas do Sudeste
Asiático -Índia, Paquistão e
Bangladesh. Esse é um aspecto
importante: o tema da imigração e suas consequências.
Há também as múltiplas histórias que se entrecruzam no livro, centradas na figura do arcanjo Gabriel.
Vejo o livro como uma série
de instantâneos que permitem
acompanhar a carreira do arcanjo Gabriel (ri), uma espécie
de biografia que não respeita a
ordem cronológica. Pareceu-me uma ideia divertida.
Eu ainda não tinha descoberto que ideias divertidas podem
custar caro: você corre o risco
de que o acusem de ser blasfemo. Os ataques contra o livro
foram tão virulentos que ninguém se deu conta de seus aspectos humorísticos.
"Os Versos Satânicos" é essencialmente um romance cômico. Todos os procedimentos
que utilizo são cômicos, embora o efeito cumulativo final não
o seja. Isso é algo que aprendi
com Kafka. "O Castelo" é uma
sucessão de cenas cômicas, embora o efeito do conjunto não
seja cômico.
Minha maior frustração foi
ver que ninguém pensava em
"Os Versos Satânicos" como livro. As pessoas viam nele um
slogan, um panfleto, uma declaração. Diziam-se coisas sobre o livro que me deixavam estarrecido. A obra da qual falavam simplesmente não existia.
Diziam coisas que não estavam em lugar nenhum.
Eu não me cansava de repetir: "Onde está o livro sobre o
qual dizem tudo isso? Por favor, que alguém me mostre as
páginas onde aparecem as coisas que estão dizendo". Era estranhíssimo, e comigo acontecia algo semelhante.
O Rushdie do qual as pessoas
falavam não tinha nada a ver
com minha pessoa. De modo
que toda a hostilidade e a violência extrema que as pessoas
manifestavam estavam voltadas para algo que não existia.
Agora que já se passaram 20
anos desde a publicação, sinto
que se recuperou o romance. As
pessoas leem um livro real e
reagem como se reage normalmente diante de um livro: há
pessoas às quais ele agrada
muito e outras às quais não
agrada nada e, entre um extremo e outro, há todos os matizes
intermediários.
É esse o destino comum de
todos os livros.
PERGUNTA - A reação que se seguiu
a sua publicação o surpreendeu?
RUSHDIE - Totalmente. Isto é,
todos os meus livros tinham sido malvistos por pessoas de
opiniões religiosas islâmicas
ortodoxas. Elas não gostaram
de "Os Filhos da Meia-Noite",
não gostaram de "Vergonha"
-então, quando publiquei "Os
Versos Satânicos", imaginei
que tampouco gostariam dele.
O que não esperava era uma
reação tão virulenta. Se Khomeini não houvesse decretado
minha condenação, o livro teria
uma trajetória normal.
PERGUNTA - Foi muito difícil manter-se fiel a seus princípios como escritor e tentar seguir adiante depois
da fatwa?
RUSHDIE - Muito, sobretudo no
início. Houve um momento, alguns meses após o ataque, em
que achei que não seria capaz
de seguir adiante. O que me salvou foi pensar que estava longe
de ser o primeiro escritor a sofrer uma perseguição desse tipo. A história da literatura é
marcada por episódios trágicos, como o gulag.
Dostoiévski chegou a ficar
diante de um pelotão de fuzilamento. Ovídio morreu no exílio, Jean Genet escreveu grande parte de sua obra na prisão.
A lista é muito extensa. Disse a
mim mesmo que, se eles tiveram a integridade de resistir
diante das dificuldades, eu era
obrigado a fazer o mesmo.
Talvez essa lhe pareça uma
afirmação grandiloquente, mas
tenho um conceito muito elevado da literatura, e, se eu queria ser um representante digno
da arte literária, tinha a obrigação de não desmoronar.
PERGUNTA - Uma das características mais comentadas de sua obra é
sua habilidade em desenvolver-se
com a mesma facilidade nos planos
da realidade e da fantasia.
RUSHDIE - Quando eu era pequeno, devorava livros de ficção científica.
Era a idade de ouro do gênero: Ray Bradbury, Philip K.
Dick, Isaac Asimov, Stanislaw
Lem, embora muitos dos que
eu lia fossem muito ruins.
Eram os anos da corrida espacial, quando os russos lançaram
os primeiros sputniks, no final
dos anos 1950.
A ficção científica é perfeita
para o romance de ideias.
Quanto a meu interesse pela
fantasia, me parece importante
ressaltar algo fundamental que
às vezes é esquecido: a fronteira
entre realidade e imaginação
não é fixa.
O realismo é apenas uma forma a mais de descrever o mundo, e não é necessariamente a
melhor nem a mais interessante. Eu nasci num país em que a
fantasia nos envolve desde o
nascimento.
A mitologia indiana é de uma
riqueza portentosa, e não me
refiro apenas às lendas religiosas, mas a toda uma tradição
narrativa que tem sua origem
nas "Mil e Uma Noites".
Muitas de suas histórias surgiram na Índia antes de serem
traduzidas para o persa e o árabe. O realismo não passa de
uma convenção. Se é necessário, eu recorro a ele, mas não é o
único recurso -longe disso.
PERGUNTA - O sr. nasceu em Mumbai. Quando seus pais se mudaram
para lá?
RUSHDIE - Meus pais se casaram em Nova Déli em 1946. Era
uma época muito tensa. A independência da Índia era iminente. A ideia era dividir o país em
duas partes: uma hindu, a Índia
propriamente dita, e outra muçulmana, o Paquistão.
Meus pais eram muçulmanos, mas não praticantes. O
máximo que faziam era abster-se de comer carne de porco; o
islã, para nós, consistia nisso
(ri). Tinham muito claro que não queriam viver num Estado
islâmico como o Paquistão. Por
outro lado, não lhes agradava a
ideia de viver em Nova Déli,
porque o ambiente que se respirava ali era verdadeiramente
perigoso.
Havia uma tensão insuportável entre hindus e muçulmanos, e o conflito poderia explodir a qualquer momento, como
de fato aconteceu. Meu pai decidiu viver com minha mãe em
Mumbai, que tinha a reputação
de ser uma cidade muito mais
cosmopolita e tolerante, muito
menos explosiva.
PERGUNTA - Como era a Mumbai
de sua infância?
RUSHDIE - Era a cidade mais
moderna e cosmopolita da Índia, o grande porto ocidental do
país, por onde entrava diretamente a influência do resto do
mundo. As outras grandes cidades da Índia eram muito mais
uniformes. Em Nova Déli, todo
mundo era indiano. Em Calcutá, todos eram bengalis, e em
Chennai, todos eram sulistas.
Minha infância em Mumbai
marcou muito meu modo de
enxergar o mundo.
PERGUNTA - Que idade tinha quando o enviaram para estudar na Inglaterra?
RUSHDIE - Treze anos e meio.
Fui aluno interno de Rugby,
uma escola de muito prestígio.
Aos 18 anos, me matriculei no
King's College da Universidade
de Cambridge. Estudei história, contrariando a vontade de
meu pai, que queria que eu estudasse economia.
Minha verdadeira paixão era
a literatura, mas nunca a estudei formalmente. Desde a adolescência fantasiava com a ideia
de ser escritor, mas a ideia de
estudar literatura não tinha nada a ver com isso.
Para mim, ler não poderia ser
um trabalho escolar, mas apenas uma forma de prazer.
Quando entrava numa livraria,
saía carregado de livros e me
encerrava para devorá-los, como se fossem guloseimas.
PERGUNTA - O que leu durante os
anos que passou na universidade?
RUSHDIE - Eu me recordo de
que tinha uma namorada que
estava escrevendo sua tese de
doutorado sobre "Finnegan's
Wake", a endiabrada obra final
de James Joyce [1882-1941].
Era algo como "James Joyce
e o "Nouveau Roman" Francês".
Graças àquela relação, acabei
lendo autores experimentais,
como Michel Butor e Alain
Robbe-Grillet. Tive que ler
"Finnegan's Wake" duas vezes.
Foi o preço que tive que pagar
por estar apaixonado (ri).
Enfim, todos os romances do
século 18, como "Tristram
Shandy", de Lawrence Sterne, e
"Tom Jones", de Henry Fielding, me causaram grande impacto. Também li muita literatura norte-americana. Mais ou
menos nessa época descobri [o
romancista norte-americano
Thomas] Pynchon.
PERGUNTA - Outro autor difícil...
RUSHDIE - Agora isso já passou,
mas, quando eu o descobri, na
juventude, sentia veneração
absoluta por ele. Seu romance
"V." me parecia simplesmente
maravilhoso. As ideias de
Pynchon são muito interessantes. Existe nele um sistema
dual no qual, por um lado, há o
conceito de paranoia e, por outro, o de entropia.
Em Pynchon o mundo tem
um significado, só que esse significado é inacessível porque
existem certas forças que se encarregam de mantê-lo oculto.
Apenas um círculo seleto de
pessoas possui o segredo do significado do mundo, embora pelo menos se saiba que o possui.
Por outro lado, há a ideia da
morte do universo, que é algo
que envelhece lentamente...
Para Pynchon, a vida é como
uma festa que vai se apagando
pouco a pouco e cujo sentido final nos escapa, de modo que liberdade e ausência de significado são equivalentes.
PERGUNTA - Em 1981 o sr. publicou
"Os Filhos da Meia-Noite", considerada sua obra mais importante.
RUSHDIE - Comecei a escrevê-la
sem saber muito bem onde ia
parar. Quando penso na confusão em que se meteu o jovem
que eu era na época, me assusto. É preciso ser muito jovem e
muito estúpido para aventurar-se a escrever um livro tão
arriscado, sobretudo levando
em conta que meu primeiro romance não tinha se saído exatamente bem.
No começo, só queria escrever um romance sobre a infância. Então me ocorreu a ideia
das 1.001 crianças com poderes
mágicos, e tive que aceitar as
consequências dessa decisão.
Esses poderes derivavam do
fato de que seu nascimento
coincidia com o da Índia como
nação independente.
Compreendi que tinha que
escrever um livro de escala
muito maior, por ter acrescentado uma dimensão histórica à
narrativa.
PERGUNTA - Foi difícil escrever
"Vergonha" depois de um sucesso
tão retumbante?
RUSHDIE - O destino desse livro
foi curioso. Ele passou despercebido, esmagado entre o sucesso de "Os Filhos da Meia-Noite" e o escândalo desencadeado com a publicação de "Os
Versos Satânicos".
Foi preciso que muitos anos
se passassem para que as pessoas prestassem atenção a ele.
Hoje, de todos os meus livros,
é certamente esse que recebe
mais atenção em cursos universitários, devido à atualidade
dos temas que aborda: o poder
militar, o fanatismo religioso, o
choque de civilizações.
De certa maneira, foi um livro premonitório, pois esses temas são muito mais urgentes e
relevantes hoje do que quando
eu o escrevi.
PERGUNTA - Como os anos de reclusão, após a fatwa, afetaram seu
processo criativo?
RUSHDIE - O primeiro que escrevi foi um livro para crianças,
"Haroun e o Mar de Histórias".
É um livro estranho, uma espécie de cápsula do tempo que
flutua entre o silêncio e a linguagem. A imagem embrionária é muito poderosa: sequestram uma princesa com a intenção de costurar sua boca.
A imagem procede de um relato muito breve que eu havia
escrito anos antes e que não sabia como usar. Eu tinha outras
histórias também e decidi
construir com elas um livro que
meu filho, que tinha 11 anos na
época, pudesse ler.
Eu me senti como alguém
que coloca uma mensagem numa garrafa, ciente de que ninguém a lerá por muito tempo.
Eu queria que, após meu filho
ter desfrutado o livro, ele voltasse a lê-lo depois de adulto,
porque então descobriria um
livro totalmente diferente.
PERGUNTA - Já "O Último Suspiro
do Mouro" é um projeto muito diferente desse...
RUSHDIE - Deu medo escrevê-lo, porque era o primeiro livro
para adultos que eu publicava
depois de "Os Versos Satânicos" e me empenhei muito nele. A Mumbai de "O Último
Suspiro do Mouro" é uma cidade tenebrosa, que perdeu as
qualidades de que falei antes.
A tolerância, a capacidade de
abrir-se para os demais, havia
se perdido. O livro pode ser visto como a continuação de "Os
Filhos da Meia-Noite".
É a mesma cidade, só que vista pelos olhos de um adulto,
não de um menino de dez anos.
Esse livro marca o começo daquela que se converteu em minha maior preocupação: mostrar elementos comuns a culturas diferentes.
"Os Filhos da Meia-Noite" e
"Vergonha" dão conta do que
ocorre no subcontinente indiano. "Haroun e o Mar de Histórias" também é assim.
Com "O Último Suspiro do
Mouro", tentei transmitir outra mensagem: não podemos
viver isolados, cada um em sua
parcela do tempo ou do espaço.
O que acontece conosco já
aconteceu antes com outros.
Já pensei muitas vezes que o
fator que desencadeou a chegada do Ocidente às Índias meridionais, a razão que motivou a
chegada de Vasco da Gama ao
Oriente, que é um momento
crucial da história, não se deveu
a uma ânsia de conquista ou a
um afã de dominação.
A razão pela qual Oriente e
Ocidente acabaram por se encontrar foi a sede de conseguir
algo tão precioso quanto as especiarias. Quando me dei conta
disso, me pareceu fascinante.
Pensei que, se toda a história
do Oriente e do Ocidente se baseia no desejo pela pimenta (ri),
então eu tinha que colocar pimenta no centro do livro, de
modo que toda a novela teria
que crescer a partir de um grão
de pimenta.
E foi assim que ela surgiu.
PERGUNTA - Sobre seu romance
mais recente, "A Feiticeira de Florença", os críticos vêm dizendo que ele
supõe o retorno de Rushdie a suas
origens, como se tivesse se restaurado o equilíbrio anterior a tudo o que
aconteceu após a fatwa.
RUSHDIE - Falávamos há pouco
das histórias que conseguem
alcançar a meta da verdade servindo-se de meios fantásticos
-histórias em que a narração
pura se constitui em objetivo
por si só. Foi isso o que eu me
propus a fazer com esse livro:
recriar a nu o prazer de narrar.
O livro supõe um despojamento do que é supérfluo, para
mergulhar até a essência pura e
rutilante da arte de contar histórias, simplesmente.
Tomei muito cuidado para
evitar que o livro fosse longo
demais. O mundo que se descreve em "A Feiticeira de Florença" é de riqueza e complexidade tão grandes que, se eu o tivesse escrito como se fosse um
romance histórico convencional, talvez tivesse precisado de
1.200 páginas.
PERGUNTA - Há também uma celebração da palavra original, um canto
à linguagem enquanto tal.
RUSHDIE - Se há algo que aprendi ao longo de meus anos como
escritor é me sentir cada vez
mais próximo dos leitores.
Tento me colocar no lugar deles, procuro compreender como se aproximam do texto.
"A Feiticeira de Florença" é
um romance ambientado numa época em que as referências
literárias não são nada menos
do que Ariosto, Cervantes e
Shakespeare. Assim, disse a
mim mesmo que poderia me
autorizar a imprimir à linguagem uma riqueza que faz falta à
linguagem do século 21.
Eu me propus a escrever o tipo de livro que os personagens
de meu romance teriam gostado de ler. Se você observar bem,
verá que o modo de narrar a
história não é muito diferente
da forma de ficção narrativa
que se cultivava na Índia e na
Europa daquele tempo.
Não há porque optar entre
ser realista ou visionário. Não é
preciso escolher entre o sonho
e a vigília; a vida é algo mais
complexo e mais completo, não
é preciso segmentá-la em suas
partes constituintes.
E a literatura daquela época
-não nos esqueçamos de que
estamos falando dos contemporâneos de Shakespeare e
Cervantes- corresponde a um
momento de plenitude histórica máxima. Tudo explodiu ao
mesmo tempo.
PERGUNTA - É possível falar de um
adeus à política?
RUSHDIE - No sentido de que me
cansei de que as pessoas me vejam como figura pública.
Claro que há política no romance; o livro trata, em parte,
do poder. Há personagens como Maquiavel ou o imperador
Akbar, duas figuras históricas
fascinantes, uma que representa o Ocidente e outra, o Oriente.
Interessava-me reabilitar
Maquiavel, que tem sido alvo
de muitos mal-entendidos.
Mas, sim, há uma tentativa
de me afastar dos assuntos que
aparecem diariamente nos jornais. É como se me tivessem
dado a possibilidade de me
apresentar ao mundo pela primeira vez e minha resposta tivesse sido: Salman Rushdie é
um contador de histórias.
Todo o resto não vem ao caso.
A íntegra deste texto foi publicada no "El País".
Tradução de Clara Allain.
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