São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2009

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O contador de histórias

Rushdie diz que sonho e vigília podem conviver na literatura, afirma que aprendeu a se aproximar do leitor, mas lamenta ter se tornado uma figura pública


A vida é algo complexo, não é preciso segmentá-la em suas partes constituintes

Horst Tappe/Reprodução
O escritor Salman Rushdie na sala de sua casa em 1988, ano de lançamento de "Os Versos Satânicos"

EDUARDO LAGO

Madrugada de inverno de um ano não determinado, alguns minutos antes do amanhecer. Um avião da Air India sequestrado por um grupo terrorista islâmico explode em pleno voo sobre o canal da Mancha.
Enquanto caem sobre uma praia da costa inglesa, dois passageiros que sobreviveram milagrosamente ao atentado comentam despreocupadamente a situação insólita em que se encontram. Assim começa "Os Versos Satânicos", um dos romances mais polêmicos de todos os tempos.
O nome de seu autor, Salman Rushdie, ganhou notoriedade sem precedentes entre milhões de pessoas do Oriente e do Ocidente que jamais chegariam a abrir o livro.
A razão? Em certos trechos do livro, há alusões a uma religião que se assemelha ao islã e cujo livro sagrado é retocado por sua própria conta por um escriba imaginário que atende pelo nome de Salman.
O que aconteceu depois da publicação do romance é conhecido de sobra: alguns líderes religiosos muçulmanos interpretaram literalmente o estratagema literário de Rushdie, julgando que sua obra era uma blasfêmia contra o islã.
Em 1989, o governo iraniano, presidido então pelo aiatolá Khomeini, promulgou uma fatwa (decreto religioso) contra o autor, oferecendo uma recompensa polpuda a quem executasse a sentença de morte.
O livro foi proibido em muitos países e queimado em vários atos de repúdio público, desencadeando violentos distúrbios e manifestações que custaram a vida a várias pessoas em três continentes.
Seguiram-se anos de dificuldade extrema para o autor, que se viu obrigado a viver em reclusão rigorosa, mudando constantemente de domicílio e rodeado noite e dia por uma escolta de policiais secretos.
Em 1993 a fatwa foi ratificada. Três pessoas ligadas à publicação do livro sofreram atentados. O tradutor japonês do romance foi assassinado.
O governo iraniano suspendeu oficialmente a condenação em 1998, embora vários grupos radicais tenham se negado a acatar a decisão.
Hoje Rushdie recebe ocasionalmente mensagens recordando a sentença fatídica. Em 2005 o aiatolá Ali Khamenei declarou que a condenação continuava em vigor. Em 2007 a rainha Elizabeth 2ª o nomeou cavaleiro da Ordem do Império Britânico, gesto que desencadeou uma nova onda de fúria contra Rushdie em áreas extensas do mundo islâmico.

Livro fechado
Rushdie pode despertar sentimentos conflitantes entre seus colegas de ofício. Dois autores de grande prestígio que escreveram sobre o islã de perspectivas muito distintas se pronunciaram de modo contundente sobre seu destino.
O egípcio Naguib Mahfouz, Nobel de Literatura em 1988, reagiu à fatwa ditada contra Rushdie acusando Khomeini de terrorismo intelectual, mas, mais tarde, observou que ninguém tem o direito de ofender as crenças dos demais.
A visão de Rushdie é diametralmente oposta: "Sem o direito de ofender", observou em certa ocasião, "não é possível falar em liberdade de expressão". E: "Não há nada mais fácil do que impedir que um livro nos ofenda. Basta fechá-lo".
Tanta fumaça é capaz de nos fazer esquecer um dado essencial: Salman Rushdie é um dos narradores mais talentosos de nossos tempos.
Criativo, versátil e engenhoso, caracterizado por um rigor e uma solidez incomuns, capaz de mover-se entre a realidade e a fantasia com agilidade assombrosa, assim como de hibridizar tradições e gêneros aparentemente inconciliáveis, o corpus literário de Salman Rushdie -cujo romance mais recente, "A Feiticeira de Florença", acaba de ser lançado- surpreende pelo brilho de sua linguagem, pela audácia de suas colocações narrativas e por sua destreza técnica.
Pessoalmente, Rushdie transborda vitalidade. Dotado de um talento incomum para a narrativa oral, sua conversa é tão versátil, amena, ágil, torrencial e imaginativa quanto o sem-fim de histórias que se cruzam vertiginosamente nas páginas de seus livros.

 

PERGUNTA - Imagino que a esta altura o sr. se aborreça quando lhe perguntam sobre "Os Versos Satânicos"...
SALMAN RUSHDIE
- Podemos falar do livro do ponto de vista literário, para variar (ri). Todo mundo tem uma opinião muito contundente sobre ele, sem nunca tê-lo lido.

PERGUNTA - Quase se poderia dizer o mesmo sobre o sr. O mártir eclipsou o escritor.
RUSHDIE
- A fatwa arrasou todo o restante.

PERGUNTA - O que o levou a escrever um livro assim?
RUSHDIE
- É um romance sobre pessoas que emigram para o Ocidente vindas do Sudeste Asiático -Índia, Paquistão e Bangladesh. Esse é um aspecto importante: o tema da imigração e suas consequências.
Há também as múltiplas histórias que se entrecruzam no livro, centradas na figura do arcanjo Gabriel. Vejo o livro como uma série de instantâneos que permitem acompanhar a carreira do arcanjo Gabriel (ri), uma espécie de biografia que não respeita a ordem cronológica. Pareceu-me uma ideia divertida.
Eu ainda não tinha descoberto que ideias divertidas podem custar caro: você corre o risco de que o acusem de ser blasfemo. Os ataques contra o livro foram tão virulentos que ninguém se deu conta de seus aspectos humorísticos.
"Os Versos Satânicos" é essencialmente um romance cômico. Todos os procedimentos que utilizo são cômicos, embora o efeito cumulativo final não o seja. Isso é algo que aprendi com Kafka. "O Castelo" é uma sucessão de cenas cômicas, embora o efeito do conjunto não seja cômico.
Minha maior frustração foi ver que ninguém pensava em "Os Versos Satânicos" como livro. As pessoas viam nele um slogan, um panfleto, uma declaração. Diziam-se coisas sobre o livro que me deixavam estarrecido. A obra da qual falavam simplesmente não existia.
Diziam coisas que não estavam em lugar nenhum.
Eu não me cansava de repetir: "Onde está o livro sobre o qual dizem tudo isso? Por favor, que alguém me mostre as páginas onde aparecem as coisas que estão dizendo". Era estranhíssimo, e comigo acontecia algo semelhante. O Rushdie do qual as pessoas falavam não tinha nada a ver com minha pessoa. De modo que toda a hostilidade e a violência extrema que as pessoas manifestavam estavam voltadas para algo que não existia.
Agora que já se passaram 20 anos desde a publicação, sinto que se recuperou o romance. As pessoas leem um livro real e reagem como se reage normalmente diante de um livro: há pessoas às quais ele agrada muito e outras às quais não agrada nada e, entre um extremo e outro, há todos os matizes intermediários.
É esse o destino comum de todos os livros.

PERGUNTA - A reação que se seguiu a sua publicação o surpreendeu?
RUSHDIE
- Totalmente. Isto é, todos os meus livros tinham sido malvistos por pessoas de opiniões religiosas islâmicas ortodoxas. Elas não gostaram de "Os Filhos da Meia-Noite", não gostaram de "Vergonha" -então, quando publiquei "Os Versos Satânicos", imaginei que tampouco gostariam dele.
O que não esperava era uma reação tão virulenta. Se Khomeini não houvesse decretado minha condenação, o livro teria uma trajetória normal.

PERGUNTA - Foi muito difícil manter-se fiel a seus princípios como escritor e tentar seguir adiante depois da fatwa?
RUSHDIE
- Muito, sobretudo no início. Houve um momento, alguns meses após o ataque, em que achei que não seria capaz de seguir adiante. O que me salvou foi pensar que estava longe de ser o primeiro escritor a sofrer uma perseguição desse tipo. A história da literatura é marcada por episódios trágicos, como o gulag.
Dostoiévski chegou a ficar diante de um pelotão de fuzilamento. Ovídio morreu no exílio, Jean Genet escreveu grande parte de sua obra na prisão. A lista é muito extensa. Disse a mim mesmo que, se eles tiveram a integridade de resistir diante das dificuldades, eu era obrigado a fazer o mesmo.
Talvez essa lhe pareça uma afirmação grandiloquente, mas tenho um conceito muito elevado da literatura, e, se eu queria ser um representante digno da arte literária, tinha a obrigação de não desmoronar.

PERGUNTA - Uma das características mais comentadas de sua obra é sua habilidade em desenvolver-se com a mesma facilidade nos planos da realidade e da fantasia.
RUSHDIE
- Quando eu era pequeno, devorava livros de ficção científica. Era a idade de ouro do gênero: Ray Bradbury, Philip K.
Dick, Isaac Asimov, Stanislaw Lem, embora muitos dos que eu lia fossem muito ruins.
Eram os anos da corrida espacial, quando os russos lançaram os primeiros sputniks, no final dos anos 1950.
A ficção científica é perfeita para o romance de ideias.
Quanto a meu interesse pela fantasia, me parece importante ressaltar algo fundamental que às vezes é esquecido: a fronteira entre realidade e imaginação não é fixa.
O realismo é apenas uma forma a mais de descrever o mundo, e não é necessariamente a melhor nem a mais interessante. Eu nasci num país em que a fantasia nos envolve desde o nascimento.
A mitologia indiana é de uma riqueza portentosa, e não me refiro apenas às lendas religiosas, mas a toda uma tradição narrativa que tem sua origem nas "Mil e Uma Noites".
Muitas de suas histórias surgiram na Índia antes de serem traduzidas para o persa e o árabe. O realismo não passa de uma convenção. Se é necessário, eu recorro a ele, mas não é o único recurso -longe disso.

PERGUNTA - O sr. nasceu em Mumbai. Quando seus pais se mudaram para lá?
RUSHDIE
- Meus pais se casaram em Nova Déli em 1946. Era uma época muito tensa. A independência da Índia era iminente. A ideia era dividir o país em duas partes: uma hindu, a Índia propriamente dita, e outra muçulmana, o Paquistão.
Meus pais eram muçulmanos, mas não praticantes. O máximo que faziam era abster-se de comer carne de porco; o islã, para nós, consistia nisso (ri). Tinham muito claro que não queriam viver num Estado islâmico como o Paquistão. Por outro lado, não lhes agradava a ideia de viver em Nova Déli, porque o ambiente que se respirava ali era verdadeiramente perigoso.
Havia uma tensão insuportável entre hindus e muçulmanos, e o conflito poderia explodir a qualquer momento, como de fato aconteceu. Meu pai decidiu viver com minha mãe em Mumbai, que tinha a reputação de ser uma cidade muito mais cosmopolita e tolerante, muito menos explosiva.

PERGUNTA - Como era a Mumbai de sua infância?
RUSHDIE
- Era a cidade mais moderna e cosmopolita da Índia, o grande porto ocidental do país, por onde entrava diretamente a influência do resto do mundo. As outras grandes cidades da Índia eram muito mais uniformes. Em Nova Déli, todo mundo era indiano. Em Calcutá, todos eram bengalis, e em Chennai, todos eram sulistas. Minha infância em Mumbai marcou muito meu modo de enxergar o mundo.

PERGUNTA - Que idade tinha quando o enviaram para estudar na Inglaterra?
RUSHDIE
- Treze anos e meio.
Fui aluno interno de Rugby, uma escola de muito prestígio.
Aos 18 anos, me matriculei no King's College da Universidade de Cambridge. Estudei história, contrariando a vontade de meu pai, que queria que eu estudasse economia.
Minha verdadeira paixão era a literatura, mas nunca a estudei formalmente. Desde a adolescência fantasiava com a ideia de ser escritor, mas a ideia de estudar literatura não tinha nada a ver com isso.
Para mim, ler não poderia ser um trabalho escolar, mas apenas uma forma de prazer.
Quando entrava numa livraria, saía carregado de livros e me encerrava para devorá-los, como se fossem guloseimas.

PERGUNTA - O que leu durante os anos que passou na universidade?
RUSHDIE
- Eu me recordo de que tinha uma namorada que estava escrevendo sua tese de doutorado sobre "Finnegan's Wake", a endiabrada obra final de James Joyce [1882-1941].
Era algo como "James Joyce e o "Nouveau Roman" Francês".
Graças àquela relação, acabei lendo autores experimentais, como Michel Butor e Alain Robbe-Grillet. Tive que ler "Finnegan's Wake" duas vezes.
Foi o preço que tive que pagar por estar apaixonado (ri).
Enfim, todos os romances do século 18, como "Tristram Shandy", de Lawrence Sterne, e "Tom Jones", de Henry Fielding, me causaram grande impacto. Também li muita literatura norte-americana. Mais ou menos nessa época descobri [o romancista norte-americano Thomas] Pynchon.

PERGUNTA - Outro autor difícil...
RUSHDIE
- Agora isso já passou, mas, quando eu o descobri, na juventude, sentia veneração absoluta por ele. Seu romance "V." me parecia simplesmente maravilhoso. As ideias de Pynchon são muito interessantes. Existe nele um sistema dual no qual, por um lado, há o conceito de paranoia e, por outro, o de entropia.
Em Pynchon o mundo tem um significado, só que esse significado é inacessível porque existem certas forças que se encarregam de mantê-lo oculto.
Apenas um círculo seleto de pessoas possui o segredo do significado do mundo, embora pelo menos se saiba que o possui.
Por outro lado, há a ideia da morte do universo, que é algo que envelhece lentamente...
Para Pynchon, a vida é como uma festa que vai se apagando pouco a pouco e cujo sentido final nos escapa, de modo que liberdade e ausência de significado são equivalentes.

PERGUNTA - Em 1981 o sr. publicou "Os Filhos da Meia-Noite", considerada sua obra mais importante.
RUSHDIE
- Comecei a escrevê-la sem saber muito bem onde ia parar. Quando penso na confusão em que se meteu o jovem que eu era na época, me assusto. É preciso ser muito jovem e muito estúpido para aventurar-se a escrever um livro tão arriscado, sobretudo levando em conta que meu primeiro romance não tinha se saído exatamente bem. No começo, só queria escrever um romance sobre a infância. Então me ocorreu a ideia das 1.001 crianças com poderes mágicos, e tive que aceitar as consequências dessa decisão.
Esses poderes derivavam do fato de que seu nascimento coincidia com o da Índia como nação independente.
Compreendi que tinha que escrever um livro de escala muito maior, por ter acrescentado uma dimensão histórica à narrativa.

PERGUNTA - Foi difícil escrever "Vergonha" depois de um sucesso tão retumbante?
RUSHDIE
- O destino desse livro foi curioso. Ele passou despercebido, esmagado entre o sucesso de "Os Filhos da Meia-Noite" e o escândalo desencadeado com a publicação de "Os Versos Satânicos".
Foi preciso que muitos anos se passassem para que as pessoas prestassem atenção a ele. Hoje, de todos os meus livros, é certamente esse que recebe mais atenção em cursos universitários, devido à atualidade dos temas que aborda: o poder militar, o fanatismo religioso, o choque de civilizações.
De certa maneira, foi um livro premonitório, pois esses temas são muito mais urgentes e relevantes hoje do que quando eu o escrevi.

PERGUNTA - Como os anos de reclusão, após a fatwa, afetaram seu processo criativo?
RUSHDIE
- O primeiro que escrevi foi um livro para crianças, "Haroun e o Mar de Histórias".
É um livro estranho, uma espécie de cápsula do tempo que flutua entre o silêncio e a linguagem. A imagem embrionária é muito poderosa: sequestram uma princesa com a intenção de costurar sua boca.
A imagem procede de um relato muito breve que eu havia escrito anos antes e que não sabia como usar. Eu tinha outras histórias também e decidi construir com elas um livro que meu filho, que tinha 11 anos na época, pudesse ler.
Eu me senti como alguém que coloca uma mensagem numa garrafa, ciente de que ninguém a lerá por muito tempo. Eu queria que, após meu filho ter desfrutado o livro, ele voltasse a lê-lo depois de adulto, porque então descobriria um livro totalmente diferente.

PERGUNTA - Já "O Último Suspiro do Mouro" é um projeto muito diferente desse...
RUSHDIE
- Deu medo escrevê-lo, porque era o primeiro livro para adultos que eu publicava depois de "Os Versos Satânicos" e me empenhei muito nele. A Mumbai de "O Último Suspiro do Mouro" é uma cidade tenebrosa, que perdeu as qualidades de que falei antes.
A tolerância, a capacidade de abrir-se para os demais, havia se perdido. O livro pode ser visto como a continuação de "Os Filhos da Meia-Noite".
É a mesma cidade, só que vista pelos olhos de um adulto, não de um menino de dez anos.
Esse livro marca o começo daquela que se converteu em minha maior preocupação: mostrar elementos comuns a culturas diferentes.
"Os Filhos da Meia-Noite" e "Vergonha" dão conta do que ocorre no subcontinente indiano. "Haroun e o Mar de Histórias" também é assim. Com "O Último Suspiro do Mouro", tentei transmitir outra mensagem: não podemos viver isolados, cada um em sua parcela do tempo ou do espaço.
O que acontece conosco já aconteceu antes com outros.
Já pensei muitas vezes que o fator que desencadeou a chegada do Ocidente às Índias meridionais, a razão que motivou a chegada de Vasco da Gama ao Oriente, que é um momento crucial da história, não se deveu a uma ânsia de conquista ou a um afã de dominação.
A razão pela qual Oriente e Ocidente acabaram por se encontrar foi a sede de conseguir algo tão precioso quanto as especiarias. Quando me dei conta disso, me pareceu fascinante.
Pensei que, se toda a história do Oriente e do Ocidente se baseia no desejo pela pimenta (ri), então eu tinha que colocar pimenta no centro do livro, de modo que toda a novela teria que crescer a partir de um grão de pimenta.
E foi assim que ela surgiu.

PERGUNTA - Sobre seu romance mais recente, "A Feiticeira de Florença", os críticos vêm dizendo que ele supõe o retorno de Rushdie a suas origens, como se tivesse se restaurado o equilíbrio anterior a tudo o que aconteceu após a fatwa.
RUSHDIE
- Falávamos há pouco das histórias que conseguem alcançar a meta da verdade servindo-se de meios fantásticos -histórias em que a narração pura se constitui em objetivo por si só. Foi isso o que eu me propus a fazer com esse livro: recriar a nu o prazer de narrar.
O livro supõe um despojamento do que é supérfluo, para mergulhar até a essência pura e rutilante da arte de contar histórias, simplesmente.
Tomei muito cuidado para evitar que o livro fosse longo demais. O mundo que se descreve em "A Feiticeira de Florença" é de riqueza e complexidade tão grandes que, se eu o tivesse escrito como se fosse um romance histórico convencional, talvez tivesse precisado de 1.200 páginas.

PERGUNTA - Há também uma celebração da palavra original, um canto à linguagem enquanto tal.
RUSHDIE
- Se há algo que aprendi ao longo de meus anos como escritor é me sentir cada vez mais próximo dos leitores.
Tento me colocar no lugar deles, procuro compreender como se aproximam do texto.
"A Feiticeira de Florença" é um romance ambientado numa época em que as referências literárias não são nada menos do que Ariosto, Cervantes e Shakespeare. Assim, disse a mim mesmo que poderia me autorizar a imprimir à linguagem uma riqueza que faz falta à linguagem do século 21.
Eu me propus a escrever o tipo de livro que os personagens de meu romance teriam gostado de ler. Se você observar bem, verá que o modo de narrar a história não é muito diferente da forma de ficção narrativa que se cultivava na Índia e na Europa daquele tempo.
Não há porque optar entre ser realista ou visionário. Não é preciso escolher entre o sonho e a vigília; a vida é algo mais complexo e mais completo, não é preciso segmentá-la em suas partes constituintes.
E a literatura daquela época -não nos esqueçamos de que estamos falando dos contemporâneos de Shakespeare e Cervantes- corresponde a um momento de plenitude histórica máxima. Tudo explodiu ao mesmo tempo.

PERGUNTA - É possível falar de um adeus à política?
RUSHDIE
- No sentido de que me cansei de que as pessoas me vejam como figura pública. Claro que há política no romance; o livro trata, em parte, do poder. Há personagens como Maquiavel ou o imperador Akbar, duas figuras históricas fascinantes, uma que representa o Ocidente e outra, o Oriente.
Interessava-me reabilitar Maquiavel, que tem sido alvo de muitos mal-entendidos.
Mas, sim, há uma tentativa de me afastar dos assuntos que aparecem diariamente nos jornais. É como se me tivessem dado a possibilidade de me apresentar ao mundo pela primeira vez e minha resposta tivesse sido: Salman Rushdie é um contador de histórias.
Todo o resto não vem ao caso.


A íntegra deste texto foi publicada no "El País".
Tradução de Clara Allain.


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