São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2009

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Lincoln da América

Presidente que governou os EUA durante a Guerra Civil Americana, ocorrida entre 1861 e 1865, ele sintetiza hoje a ideia de identidade nacional no país


Lincoln falava da União como algo pelo qual seria válido se sacrificar

A imagem de semideus se enquadra mal a Lincoln, o mais incomum dos homens comuns


WILFRED MCCLAY

A Guerra Civil Americana e o enigmático homem cuja eleição à Presidência, em 1860, a precipitou atraem interesse inexaurível entre os norte-americanos.
Milhares de volumes sobre ambos os assuntos foram publicados nos últimos 150 anos, cobrindo todos os aspectos e pontos de vista concebíveis, dos menores detalhes das operações militares a esforços empenhados, e ocasionalmente absurdos, de estudar a psique de Abraham Lincoln [1809-65].
E o fluxo de material escrito não parece estar diminuindo.
Os motivos mais profundos para esse interesse persistente e mesmo obsessivo, tanto da parte do mundo acadêmico quanto do público, não parecem óbvios de imediato.
Existem poucos, se algum, fatos novos decisivos ainda por descobrir, embora continue a haver grupos de entusiastas de diferentes teorias sobre o assassinato de Lincoln que não resistem a especular sobre o que aconteceu, ou não, naqueles dias fatídicos de 1865.
Mas isso não explica o interesse apaixonado pelo homem, assim como a popularidade das peças de Shakespeare parece desconexa das cansativas tentativas de identificar seu "verdadeiro" autor.
Não, o que atrai na guerra civil é que o assunto se estende a algo de mais profundo, a uma veia de poderosos significados e sentimentos soterrados que corre sob a superfície da vida cotidiana dos EUA.
Há um sentimento de reverência instintiva que se estende à pessoa do 16º presidente.
Pois, quando se trata da guerra civil e do líder que a conduziu vitoriosamente, de alguma forma os norte-americanos se sentem muito próximos do verdadeiro cerne da identidade do país.
Essa imagem de semideus se enquadra mal ao Lincoln mais humano que pensamos conhecer -desajeitado, melancólico, piadista, manipulador, infeliz no casamento, vulgar, ferozmente ambicioso e superlativamente eloquente-, o mais incomum dos homens comuns. De fato, como demonstrou o historiador Merrill Peterson, houve muitos lincolns ao longo dos anos, alguns dos quais arquetípicos -o Salvador da União, o Grande Emancipador, o Homem do Povo, o Homem Que Venceu pelo Talento-, mas outros muito ligados a determinadas circunstâncias.
Em 1928, Stephen Vincent Benét o descreveu não como o muito bem-sucedido advogado empresarial que foi, mas sim como "um homem desajeitado, nodoso, duro como um trilho de ferrovia".
Também descreveu suas mãos como grandes demais para as luvas de pelica brancas, seu humor como exagerado e seco, seu rosto enrugado como uma imagem tão caseira quanto a de um campo arado.
Nos anos 1950, essa imagem de Lincoln como menino do campo foi substituída pela do líder sábio e prudente que pilotou o navio da União entre os excessos dos ideólogos: os abolicionistas à esquerda e os escravocratas ferrenhos à direita.
Nos anos 1960, Lincoln foi descrito inicialmente como um pioneiro dos direitos humanos.
Mas terminou criticado, até mesmo insultado, como racista e proponente de meias-medidas temerosas e como precursor do liberalismo pragmático que a nova esquerda tanto amava insultar.

Crente e cético
Hoje, ele é reverenciado por sua combinação de fé e modéstia epistemológica, como um homem crente, mas cético, que procurava fazer a vontade de Deus sem jamais alardear conhecê-la.
Mas, para contemplar plenamente o estadista, e portanto aprender alguma coisa sobre a natureza de sua liderança, é preciso vê-lo sob as condições nebulosas e indeterminadas que enfrentava enquanto os acontecimentos se desenrolavam. "Não alego ter controlado os acontecimentos", Lincoln certa vez declarou durante sua presidência. "Confesso abertamente que os acontecimentos me controlaram."
Poucos grandes líderes foram mais desdenhados, desprezados ou subestimados. A opinião desfavorável que o Sul tinha sobre ele era de esperar, claro, mas muita gente compartilhava dela ao norte da linha Mason-Dixon [que dividia os Estados do Norte dos Estados escravistas do Sul].
Como define David Donald, muitos dos colegas de Lincoln o viam como "um simplório, um babuíno, um piadista sem profundidade, um adepto do humor sujo"; nas palavras do abolicionista Wendell Phillips, era "um caipirão político" e estava "na primeira linha dos homens de segunda linha".
Quando pronunciou o discurso de Gettysburg [veja link ao final do texto], um dos maiores discursos da história humana, foi completamente obscurecido pelo discurso de duas horas que o famoso orador Edward Everett fez logo antes do seu. Não houve muito, ou nenhum, aplauso para Lincoln quando ele concluiu seu discurso de dois minutos e se sentou.
Precisamos ter em mente o quanto parecia provável, para Lincoln e outros, que ele perderia a eleição de 1864, e assim experimentaria uma ignominiosa derrota e testemunharia a desintegração da causa da União pela qual tanto havia lutado.

Depressivo
Não fosse o milagre das vitórias decisivas conquistadas em campanha pelos generais Grant e Sherman, seria provável que Lincoln saísse perdedor das urnas, porque o povo norte-americano estava esgotado com o frustrante conflito.
Se acrescentarmos a essa perspectiva desanimadora o peso da introspecção crítica constante a que Lincoln se submetia, seu temperamento depressivo e sua luta constante e solitária contra um sentimento de fracasso paralisante, a energia e a persistência do líder se tornam deslumbrantes.
Além desses problemas imediatos, havia as preocupações jamais expressas, mas bastante difundidas, quanto à fragilidade da União. Um temor de anarquia era de fato bastante comum no começo da independência e nos anos anteriores à guerra civil, nos EUA.
Isso deve nos lembrar da fluidez e da relativa fraqueza da identidade nacional na República dos primeiros decênios, relativamente descentralizada.
Lincoln assumiu uma posição resoluta em defesa do ideal transcendente da União como essencial para o sucesso da experiência norte-americana de governo republicano.
De fato, à medida que o conflito se alongava, ele passou a falar com mais e mais frequência não apenas da União, mas da "nação", e, quando falava da União, a apresentava não como meio para obter um fim, mas como um fim em si, algo pelo qual seria válido se sacrificar.

Bismarck americano
Lincoln compreendia bem algo que nem os confederados nem os abolicionistas podiam admitir: que o futuro da liberdade constitucional -e a possibilidade até mesmo das mais dignas reformas sociais- dependiam fundamentalmente da perpetuação de uma nação forte e coesa.
Tanto no modo como foi travada como em seus resultados, a guerra civil foi um verdadeiro momento de decisão para a identidade nacional dos EUA.
Foi por isso que o crítico literário Edmund Wilson definiu Lincoln como o Bismarck norte-americano e, assim, inseriu a guerra civil no contexto dos demais movimentos de unificação e construção de nações que surgiram nas décadas intermediárias do século 19.
Ao fazê-lo, Wilson também expôs o melancólico, mas inevitável, ponto segundo o qual a guerra se provou o agente mais efetivo de coesão nacional na história moderna.
Apesar de toda a liderança moral que se costuma atribuir a Lincoln, foi sua estratégia bismarckiana, de lutar a "sangue e ferro" pela causa da unidade, que fez dele o criador do nacionalismo norte-americano, mais até que o salvador da União.
Deveríamos ter em mente, igualmente, que, sob o controle dos acontecimentos, Lincoln teve de fazer coisas como presidente que não estava bem preparado para realizar, por experiência ou temperamento. Ele não apenas se opusera à agressão da guerra de 1848 contra o México como tinha fama de ser adversário do militarismo, por detestar a violência.
Como explicar, assim, o fato de ter se tornado um líder de guerra tão efetivo -o mais bem-sucedido dos presidentes dos períodos de guerra-, o único presidente dos EUA cujo período de governo foi inteiramente definido pelas condições da guerra e o homem que empregou e autorizou as ações de guerreiros destrutivos como Grant e Sherman?
Esse é certamente um dos muitos mistérios que restam sobre o homem Lincoln.
Ele também se saía muito bem em entender as dimensões políticas mais amplas da guerra, em tomar o controle dos eventos e alterar as tendências de opinião pública no Norte com um senso muito acurado de momento.
Lincoln compreendeu a importância de isolar e conter o Sul, de manter os Estados fronteiriços fora da Confederação e de impedir que as potências europeias enxeridas se imiscuíssem na disputa.
Gradual e competentemente, redefiniu a guerra como uma luta total, ilimitada, para derrubar o sistema político do Sul, e pressionou seus líderes militares a adotarem uma estratégia de rendição incondicional que se provou associada aos mutáveis objetivos da guerra.

Contemporizador
Isso nos leva à questão das meias-medidas de Lincoln, cujo contexto mais amplo é preciso recordar. Ele conquistou proeminência como político ao rejeitar tanto a escravidão quanto o abolicionismo.
A estratégia preferencial de Lincoln teria envolvido conter a difusão da escravatura e depois eliminá-la gradualmente, em lugar de aboli-la em um grande e abrangente gesto.
Para nós é difícil aceitar a franca descrença de Lincoln em igualdade racial e seu apoio a esquemas de colonização na África. Que essas posições fossem comuns e até ligeiramente progressistas em sua época não vale muito hoje em dia.
Mas o que deveríamos perceber é o fato de que, em meio ao turbilhão da guerra, não hesitou em superar suas limitações e em perceber que a União só poderia ser preservada caso tivesse um objetivo maior que a sobrevivência.
A arte de governar não é abstrata, mas sim contextual, e depende pesadamente das circunstâncias que encontra. É irresistível imaginar que espécie de líder Lincoln teria sido caso não surgisse uma tentativa de secessão depois que foi eleito ou se tivesse sobrevivido para liderar o país no pós-guerra.
O fato de que é quase impossível responder inteligentemente a essas questões, porém, nos diz muito. Lincoln foi acima de tudo um presidente de guerra. Gostemos ou não, essa condição histórica o definiu.
Ele não foi eleito para esse fim.
E poderia bem ter descoberto, como Winston Churchill [1874-1965] e George Bush pai viriam a aprender mais tarde, que os eleitores preferem tipos muito diferentes de líder para a paz e para a guerra.
Jamais saberemos. De qualquer forma, esse destino não lhe estava reservado.


A íntegra deste texto saiu na "Humanities". Tradução de Paulo Migliacci.

NA INTERNET - Leia uma transcrição do discurso de Lincoln em Gettysburg em
www.folha.com.br/090491


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