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PREDADORES PSÍQUICOS
NA ÁUSTRIA, EM PERNAMBUCO OU EM SP, ABUSADORES SEXUAIS PARTILHAM DA MESMA IDENTIFICAÇÃO MALIGNA COM A MÃE E DA INDIFERENÇA PELO OUTRO
Robert Jaeger - 16.mar.09/Associated Press
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O austríaco Josef Fritzl esconde o rosto no tribunal onde foi condenado à prisão perpétua
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Os casos de pedofilia e incesto recentemente noticiados pela imprensa
-a menina engravidada pelo padrasto em Alagoinha (PE), o austríaco que
manteve presa sua filha por
mais de 20 anos e com ela engendrou sete filhos/netos, a rede criminosa baseada em Catanduva (SP)- provocaram repulsa e horror em todos os que
deles tomaram conhecimento.
Como é possível que alguém
pratique tais atos, perguntam-se as pessoas, e quais as consequências deles para as vítimas?
Mesmo que pedófilo e incestuoso não sejam sinônimos -o
primeiro se interessa sexualmente por crianças, o segundo
toma como objeto uma pessoa
da mesma família ou clã (criança ou não), portanto proibido
pela lei ou pelo costume-, não
é raro que as duas condições
coincidam num mesmo indivíduo, como no caso de Alagoinha, e em tantos outros que
diariamente chegam às instituições de tutela da infância.
Os motivos pelos quais um
adulto -geralmente homem-
aborda uma criança com o objetivo de se aproveitar dela são
de diversas ordens.
Balas e pipocas
Em primeiro lugar, ela é mais
fácil de atrair do que um parceiro adulto: balas, pipocas e a
promessa de deixar jogar videogames bastaram para levar
ao quarto do borracheiro de
Catanduva os garotos que ele
cobiçava.
Quem assim procede tem
medo de que o adulto recuse
seu convite; pode-se supor que
seja acometido de ansiedade
em relação ao seu desempenho
ou que suas fantasias de castração sejam particularmente intensas.
Em segundo lugar, o "predador psíquico" -termo que tomo emprestado ao antropólogo
Boris Cyrulnik- tem características que o singularizam entre as várias classes de perversos. A principal delas é uma
identificação maligna com a
mãe, diferente da que desemboca numa posição homossexual "normal" ou da que -caso
venha a fazer parte da porção
sublimada da libido- resulta
num interesse pedagógico, numa atitude maternal e devotada para com os amigos etc.
O que norteia o impulso sexual do pedófilo é a combinação dessa identificação com um
ódio imenso pela criança que
ele mesmo foi -"meu objeto
deve sofrer ainda mais do que
eu sofri"- e com um completo
desinteresse pelos sentimentos
do outro, que leva o indivíduo a
não se incomodar com as consequências que seus atos possam acarretar para a criança.
Quer esta tenha sido "apenas" bolinada, induzida a praticar felação ou estuprada, tais
consequências são de extrema
gravidade.
O abusador sexual busca
muitas vezes uma revanche
contra violências de que ele
próprio foi vítima na infância (é
a justificativa do austríaco Josef Fritzl para o que fez com a
filha) e se aproveita do fato de
que as crianças são efetivamente dotadas de sexualidade para
as seduzir.
Mas atenção: a sexualidade
infantil não se confunde com a
adulta, e certamente não faz
parte dela o intento de servir de
meio para prazeres dos quais
não tem noção.
Esse ponto é crucial. Todos
sabemos que as crianças se interessam pelo que acontece no
quarto dos pais e, no contexto
do complexo de Édipo, desejam
inconscientemente ocupar o
lugar de um dos cônjuges.
"Pessoas grandes"
Sua imaturidade, porém, e o
fato de desconhecerem muito
do que se refere à vida sexual
das "pessoas grandes" as fazem
inventar o que Freud chamava
de "teorias sexuais infantis".
Brincadeiras de médico, de
"gato mia" e outras semelhantes expressam a curiosidade
natural sobre o corpo, sobre a
diferença entre meninos e meninas, sobre como se fazem bebês -mas são parte do que Sándor Ferenczi [1873-1933] denominou "linguagem da ternura".
Já o adulto -perverso ou
normal- opera na "linguagem
da paixão", ou seja, num registro que confere sentido bem diverso à excitação, às fantasias e
aos atos eróticos.
A "confusão de línguas" da
qual fala o psicanalista húngaro
nasce de que o adulto não controla seus impulsos e excede os
limites que a cultura impõe na
esfera sexual.
Como afirma com razão Renata Cromberg, não se podem
confundir "carinhos de pai"
-beijos, abraços, afagos normais e desejáveis na relação
pai-filha- com "carinhos de
homem": os mesmos gestos,
porém realizados com o intuito
de proporcionar prazer sexual
para si, e nunca para a criança.
Quando isso acontece, esta se
vê enredada numa armadilha
fatal: sente-se culpada por suas
fantasias incestuosas (que, repito, fazem parte do desenvolvimento normal) e chocada pela maneira como elas acabaram
por se realizar.
A perplexidade se soma à
vergonha e ao trauma de se ver
traída por alguém em quem
confiava; os efeitos na mente
infantil são devastadores, e a
eles se somam muitas vezes
vestígios corporais, da irritabilidade ou ferimentos nos genitais à gravidez.
A situação é frequentemente
complicada pelo medo de contar o que ocorreu ou, pior ainda,
pela incredulidade com que o
relato é recebido.
Mães se recusam a acreditar
que o homem que amam possa
ter cometido "aquilo" ou são
coniventes (alguém duvida de
que a mulher de Fritzl sabia
-ou pelo menos suspeitava-
do que estava acontecendo naquele porão?); autoridades (como a responsável pela Delegacia da Mulher de Catanduva)
não dão seguimento à investigação; e o silêncio contribui para agravar a confusão e a dor.
Diante da incompreensão
dos adultos, a criança vítima de
abuso sexual aciona mecanismos de defesa violentíssimos,
que acabam por aumentar ainda mais o seu sofrimento: identificação com o agressor, entrada numa posição masoquista,
cisão da parte da sua mente que
abriga as lembranças do fato e
outros mais.
Pode se tornar abúlica ou
muito agressiva, perder a capacidade de sonhar ou reviver
a cena em pesadelos, ser to-
mada por sentimentos de perseguição, pela culpa de ter
"induzido" o ato ou pela imagem obsedante do agressor.
Este, porém, pouco se importa com tais consequências: como sua personalidade é de tipo
narcisista, a desumanização do
outro não lhe provoca emoção
nenhuma.
Contudo, por trás da fachada
triunfante, nota-se que esse
narcisismo é muito frágil: recobre precariamente um grande
vazio e uma angústia atroz
quanto à própria identidade.
Compreende-se que o perverso -e particularmente o pedófilo/incestuoso- busque na
sexualidade um lenitivo para a
incerteza sobre quem é e sobre
o que pode ("a pedofilia é a perversão dos fracos e impotentes", diz Freud) e um meio de
desviar sobre um ser indefeso o
ódio e a hostilidade contra seus
objetos internos.
O entendimento sobre como
funciona a personalidade do
agressor, porém, não diminui a
gravidade dos atos que pratica
nem a dor imensa que inflige à
sua vítima.
O tema do abuso sexual é
complexo, e é evidente que estas breves observações não o
podem esgotar. A informação
adequada é essencial para
quem lida com os desastres que
ele provoca.
Por isso, gostaria de concluir
este artigo recomendando a
juízes, médicos, promotores,
assistentes sociais, psicólogos
-e também aos familiares das
vítimas- a leitura de quatro livros nos quais me baseei para o
redigir: "Cena Incestuosa", de
Renata Cromberg; "Perversão", de Flávio Carvalho Ferraz; "Psicopatia", de Sidnei Kiyoshi Shine; e "Narcisismo e
Vínculos", de Lucía Barbero
Fuks, este uma coletânea na
qual figuram vários trabalhos
sobre o assunto [todos publicados pela ed. Casa do Psicólogo].
Lembremos o dito de Freud:
"Primum non nocere" -antes
de mais nada, não prejudicar
quem está ferido!
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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