São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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O mito do capital

Ponto central da crise econômica, moeda é convenção social tomada como valor absoluto


Dinheiro é um mito; não é uma mentira; é história de origem esquecida que organiza a vida social

JOÃO SAYAD
ESPECIAL PARA A FOLHA

Claude Lévi-Strauss encontrou apenas cadáveres dos nhem-nhens, pintados de preto e amarelo, ornados com cocares de pena e espalhados em torno dos restos de uma fogueira.
Morreram todos.
Mais tarde, descobriu o ocorrido. No outono, os nhem-nhens montam fogueira muito alta. Se a fogueira queimar de alto a baixo, é sinal de ano farto e próspero. Se desmoronar, mau presságio. A fogueira desmoronou. O pajé não conseguiu controlar o desespero da tribo, que se suicidou com veneno de urutu.
Não havia ameaça real -seca, invasão do território de caça ou doença. Tragédia produzida no mundo mítico. Um absurdo.
O evento terrível assombrou o etnólogo. Uma comunidade bárbara e primitiva?
Este artigo fala da crise financeira. Milhões perdem o emprego. Produziremos menos soja, celulares, remédios. A democracia será ameaçada pela radicalização.
Nenhum problema real visível -excesso de produção, falta de demanda ou impasse político intransponível. Crise produzida no mundo do dinheiro.
Dinheiro é um mito. Não é uma mentira. É história de origem esquecida que organiza a vida social -fala da criação do mundo ou de heróis que transmitem os valores da sociedade. O mito é um discurso.
Dinheiro é o mito que organiza a atividade econômica, a escolha entre diferentes alternativas, custos, receitas, lucros. Tudo o que existe natural e pacificamente gera mais dinheiro do que gasta. O resto tem existência atribulada -requer subsídios, é político, efêmero, artificial, não sustentável: geleiras, florestas, orquestras sinfônicas, rios, literatura.
Chama-se mito porque é signo de uma segunda língua, um signo de signo1.
A primeira língua, no caso do dinheiro, diz que um cafezinho vale meio pão com manteiga. A segunda diz quanto valem todas as coisas: um cafezinho, R$ 1; pão com manteiga, R$ 2.

Mágica
Dinheiro é um número puro batizado com nome nacional -real, dólar. Um metro é medida de distância. Um litro, um milésimo do metro cúbico. Um dólar é um dólar. A tautologia é uma das figuras de retórica do mito2 -"mágica vergonhosa, que faz o movimento verbal da razão, mas a abandona imediatamente".
Os clássicos e seus descendentes querem que o dinheiro seja apenas significante cujo valor depende do significado -o que o dinheiro pode comprar. Dinheiro seria apenas um expediente que organiza imensa economia de trocas. Como um passe escolar ou um bilhete de cinema.
Se preços fossem fixados levando em conta o poder de compra do dinheiro medido pelo índice geral de preços, como querem os clássicos, não existiria dinheiro. Os preços de A e de B seriam determinados pela média de todos os preços.
Mas a média seria indeterminada, os preços não seriam medidos em dinheiro. E o dinheiro não existiria3. Dinheiro existe se e apenas se for aceito sem questionamento pelo trabalhador que aceita trabalhar por salário nominal fixo. Ou se puder ser trocado por outro dinheiro, o dólar, cujo valor não é questionado nem por americanos nem por chineses.
Para "traders" e capitalistas, dinheiro é significante, e não significado (significante é a palavra b-o-i e significado, o boi no pasto propriamente dito).
Trabalhadores e capitalistas desejam o significante puro, negatividade desprovida de objeto, que é tudo, pode ser transformado em qualquer coisa. E nada -um pedaço de papel.
Parece escasso. Mas a expressão material do valor não é escassa. Um significado encontra muitos significantes4.

Multiplicação
Como dinheiro vale tudo e não custa nada para ser produzido, a tentação de falsificar é grande. Políticos são os eternos suspeitos de imprimir dinheiro demais -para [o economista norte-americano Milton] Friedman, [o economista brasileiro Eugênio] Gudin, os monetaristas, os neoliberais e os editoriais da imprensa.
Mas dinheiro também é multiplicado pelo setor financeiro por meio da alavancagem, da securitização e dos derivativos. A tentação de multiplicar dinheiro é irresistível tanto para banqueiros quanto para políticos. Como sair da crise?
Enquanto falta crédito, precisamos do remédio keynesiano -o governo gasta mais e substitui a queda de consumo dos americanos que se imaginavam muito ricos. Se continuassem a acreditar, continuariam ricos. O que é imaginário e o que é real?
A política keynesiana -seguro-desemprego, "social security", gastos com saúde, previdência social- afronta a ética capitalista: ganharás o dinheiro com o suor de teu rosto.
É realista, mas cínica, pois revela que não há escassez num mundo que trabalha apenas para ganhar dinheiro. A solução é salvar os bancos.
Embora um senador republicano acuse [o presidente dos EUA, Barack] Obama de salvar os bancos com dinheiro imaginário. Onde conseguiria dinheiro real? A melhor solução é regular, banir os paraísos fiscais, limitar a alavancagem.
Apostar que a crise seja apenas uma catástrofe, um evento singular. Ou um caso de polícia.
Se for apenas isso, logo voltaremos a crescer com outras inovações financeiras criadas pelo setor que congrega a maioria dos talentos da economia.
Evitar que a fogueira desmorone a qualquer preço. Respeitar o mito. É um absurdo. De onde estamos não vemos outro mito que possa nos salvar.


Notas
1. Conforme Barthes, Roland, "Le Mythe Aujourd'hui" [O Mito Hoje], publicado em "Mythologies", (Paris, Éditions du Seuil, 1970).
2. Ver Barthes, pág. 226.
3. p= a.( preço de A) +b (preço de B) onde a e b é a participação de A e de B no nível geral de preços, a+b=1 Se os preços de A e de B são fixados em função de p, o nível médio de preços passa a ser p= ap+bp ou p=(a+b)p e p=p. p pode assumir qualquer valor, o dinheiro pode ter qualquer valor.
4. Ver Barthes, op. cit.

JOÃO SAYAD é secretário da Cultura do Estado de São Paulo. Foi secretário de Finanças e Desenvolvimento da prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy), secretário da Fazenda do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro do Planejamento (governo Sarney).


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