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O mito do capital
Ponto central da crise econômica, moeda é convenção social tomada
como valor absoluto
Dinheiro é um mito; não é uma mentira; é história
de origem esquecida que organiza a vida social
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JOÃO SAYAD
ESPECIAL PARA A FOLHA
Claude Lévi-Strauss
encontrou apenas
cadáveres dos nhem-nhens, pintados de
preto e amarelo, ornados com cocares de pena e
espalhados em torno dos restos
de uma fogueira.
Morreram todos.
Mais tarde, descobriu o ocorrido. No outono, os nhem-nhens montam fogueira muito
alta. Se a fogueira queimar de
alto a baixo, é sinal de ano farto
e próspero. Se desmoronar,
mau presságio. A fogueira desmoronou. O pajé não conseguiu controlar o desespero da
tribo, que se suicidou com veneno de urutu.
Não havia ameaça real -seca, invasão do território de caça
ou doença. Tragédia produzida
no mundo mítico. Um absurdo.
O evento terrível assombrou o
etnólogo. Uma comunidade
bárbara e primitiva?
Este artigo fala da crise financeira. Milhões perdem o
emprego. Produziremos menos soja, celulares, remédios. A
democracia será ameaçada pela radicalização.
Nenhum problema real visível -excesso de produção, falta
de demanda ou impasse político intransponível. Crise produzida no mundo do dinheiro.
Dinheiro é um mito. Não é
uma mentira. É história de origem esquecida que organiza a
vida social -fala da criação do
mundo ou de heróis que transmitem os valores da sociedade.
O mito é um discurso.
Dinheiro é o mito que organiza a atividade econômica, a
escolha entre diferentes alternativas, custos, receitas, lucros.
Tudo o que existe natural e
pacificamente gera mais dinheiro do que gasta. O resto
tem existência atribulada -requer subsídios, é político, efêmero, artificial, não sustentável: geleiras, florestas, orquestras sinfônicas, rios, literatura.
Chama-se mito porque é signo de uma segunda língua, um
signo de signo1.
A primeira língua, no caso do
dinheiro, diz que um cafezinho
vale meio pão com manteiga. A
segunda diz quanto valem todas as coisas: um cafezinho,
R$ 1; pão com manteiga, R$ 2.
Mágica
Dinheiro é um número puro
batizado com nome nacional
-real, dólar. Um metro é medida de distância. Um litro, um
milésimo do metro cúbico. Um
dólar é um dólar. A tautologia é
uma das figuras de retórica do
mito2 -"mágica vergonhosa,
que faz o movimento verbal da
razão, mas a abandona imediatamente".
Os clássicos e seus descendentes querem que o dinheiro
seja apenas significante cujo
valor depende do significado
-o que o dinheiro pode comprar. Dinheiro seria apenas um
expediente que organiza imensa economia de trocas. Como
um passe escolar ou um bilhete
de cinema.
Se preços fossem fixados levando em conta o poder de
compra do dinheiro medido
pelo índice geral de preços, como querem os clássicos, não
existiria dinheiro. Os preços de
A e de B seriam determinados
pela média de todos os preços.
Mas a média seria indeterminada, os preços não seriam medidos em dinheiro. E o dinheiro não existiria3.
Dinheiro existe se e apenas
se for aceito sem questionamento pelo trabalhador que
aceita trabalhar por salário nominal fixo. Ou se puder ser trocado por outro dinheiro, o dólar, cujo valor não é questionado nem por americanos nem
por chineses.
Para "traders" e capitalistas,
dinheiro é significante, e não
significado (significante é a palavra b-o-i e significado, o boi
no pasto propriamente dito).
Trabalhadores e capitalistas
desejam o significante puro,
negatividade desprovida de objeto, que é tudo, pode ser transformado em qualquer coisa. E
nada -um pedaço de papel.
Parece escasso. Mas a expressão material do valor não é
escassa. Um significado encontra muitos significantes4.
Multiplicação
Como dinheiro vale tudo e
não custa nada para ser produzido, a tentação de falsificar é
grande. Políticos são os eternos
suspeitos de imprimir dinheiro
demais -para [o economista
norte-americano Milton]
Friedman, [o economista brasileiro Eugênio] Gudin, os monetaristas, os neoliberais e os editoriais da imprensa.
Mas dinheiro também é multiplicado pelo setor financeiro
por meio da alavancagem, da
securitização e dos derivativos.
A tentação de multiplicar dinheiro é irresistível tanto para
banqueiros quanto para políticos. Como sair da crise?
Enquanto falta crédito, precisamos do remédio keynesiano -o governo gasta mais e
substitui a queda de consumo
dos americanos que se imaginavam muito ricos. Se continuassem a acreditar, continuariam ricos. O que é imaginário e
o que é real?
A política keynesiana -seguro-desemprego, "social security", gastos com saúde, previdência social- afronta a ética
capitalista: ganharás o dinheiro
com o suor de teu rosto.
É realista, mas cínica, pois revela que não há escassez num
mundo que trabalha apenas para ganhar dinheiro.
A solução é salvar os bancos.
Embora um senador republicano acuse [o presidente dos
EUA, Barack] Obama de salvar
os bancos com dinheiro imaginário. Onde conseguiria dinheiro real? A melhor solução é
regular, banir os paraísos fiscais, limitar a alavancagem.
Apostar que a crise seja apenas
uma catástrofe, um evento singular. Ou um caso de polícia.
Se for apenas isso, logo voltaremos a crescer com outras
inovações financeiras criadas
pelo setor que congrega a maioria dos talentos da economia.
Evitar que a fogueira desmorone a qualquer preço. Respeitar
o mito. É um absurdo. De onde
estamos não vemos outro mito
que possa nos salvar.
Notas
1. Conforme Barthes, Roland, "Le Mythe Aujourd'hui" [O Mito Hoje], publicado em "Mythologies", (Paris, Éditions du Seuil, 1970).
2. Ver Barthes, pág. 226.
3. p= a.( preço de A) +b (preço de B) onde a e b é a
participação de A e de B no nível geral de preços,
a+b=1 Se os preços de A e de B são fixados em função
de p, o nível médio de preços passa a ser p=
ap+bp ou p=(a+b)p e p=p. p pode assumir qualquer valor, o dinheiro pode ter qualquer valor.
4. Ver Barthes, op. cit.
JOÃO SAYAD é secretário da Cultura do Estado
de São Paulo. Foi secretário de Finanças e Desenvolvimento da prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy), secretário da Fazenda do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro
do Planejamento (governo Sarney).
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