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+(L)ivros
Sociedade unha-de-fome
Em "A Vida Que Você Pode Salvar", o filósofo Peter Singer diz que indivíduos deveriam fazer mais doações para tirar o mundo da pobreza
DWIGHT GARNER
Você é uma boa pessoa? Seria possível
responder que tudo
depende de como
se define a palavra
"boa". Em um mundo de demônios facilmente identificáveis -Osama bin Laden, Bernard Madoff etc.-, a maioria
de nós sente que está basicamente do lado dos anjos.
Trabalhamos com afinco, pagamos nossas contas, tentamos
criar bem os nossos filhos, fazemos trabalhos voluntários
aqui e acolá e, em caso de dúvida, sempre seguimos as normas do bem.
Por que então não nos darmos o benefício da dúvida?
O novo livro de Peter Singer
sobre a pobreza no mundo,
"The Life You Can Save" [A Vida Que Você Pode Salvar, Random House, 206 págs., US$ 22,
R$ 49], está aqui para revelar
que não somos as pessoas que
pensamos ser, quase todos nós.
Em um planeta repleto de
sofrimento tão evidente e tão
generalizado, escreve, "há algo
de profundamente distorcido
em nossas visões amplamente
aceitas quanto ao que significa
viver uma vida de bondade".
Singer, professor de bioética
na Universidade Princeton, fez
sua carreira a partir do ato de
causar desconforto nos outros.
Seu livro mais conhecido,
"Libertação Animal", de 1975,
está entre os textos fundadores
do movimento contemporâneo
de defesa dos direitos dos animais. Vem trabalhando com as
ideias de seu mais recente livro
pelo menos desde 1972, quando publicou o influente artigo
"Famine, Affluence, and Morality" [Fome, Afluência e Moralidade].
Singer de forma nenhuma é o
único pensador sério sobre a
pobreza, mas com "A Vida Que
Você Pode Salvar" se tornou
instantaneamente o mais legível e o mais enfático entre eles.
O livro é em parte argumentação racional, em parte manifesto, em parte manual de instruções.
É um volume que sugere que,
diante do fato de que 18 milhões de pessoas morrem desnecessariamente a cada ano
nos países em desenvolvimento, "há uma mácula moral em
um mundo rico como o nosso".
Não estamos fazendo o suficiente para ajudar nossos irmãos humanos.
Além das intuições
Os seres humanos acreditam
intuitivamente que devemos
ajudar os outros em seus momentos de necessidade, escreve Singer, "no mínimo quando
podemos vê-los e quando somos as únicas pessoas capazes
de salvá-los". Mas precisamos
ir além dessas intuições, declarou Singer.
E por isso, no começo de "A
Vida Que Você Pode Salvar",
propõe o seguinte argumento
lógico, que citarei na íntegra:
"Primeira premissa: sofrimento e morte causados por
falta de comida, abrigo e cuidados médicos são males".
"Segunda premissa: se estiver em seu poder impedir que
algo de mau aconteça, sem que
seja necessário sacrificar nada
de importância semelhante, é
errado não fazê-lo."
"Terceira premissa: ao doar
dinheiro a agências assistenciais, é possível prevenir sofrimento e morte por falta de comida, abrigo e cuidados médicos, sem sacrificar nada de
igualmente importante."
"Conclusão: portanto, se você não doa dinheiro a organizações assistenciais, está agindo
errado."
Há muitos contra-argumentos que se apresentam de imediato: a economia está em crise.
Caridade começa em casa. Trabalho com afinco pelo meu dinheiro. Caridade cria dependência. Algumas organizações
de caridade desperdiçam dinheiro demais com suas despesas administrativas.
Mas Singer rebate esses contra-argumentos de maneira
convincente, e sua conclusão
lógica é praticamente irrefutável. Ajudar os pobres do mundo
trará "significado e propósito"
às nossas vidas, ele sugere, por
meio de ajustes financeiros
que, em geral, "pouca diferença
farão para o seu bem-estar".
Difícil de engolir
Em seu livro, Singer elogia
muita gente que doa até 50% de
sua renda anual. Quanto aos
restantes de nós, ele propõe
uma abordagem mais realista:
"Cerca de 5% da renda anual
para as pessoas em situação financeira confortável, e bastante mais para os muito ricos".
Alguns dos argumentos de
Singer são difíceis de engolir.
"Filantropia para as artes e
atividades culturais, em um
mundo como este, é moralmente dúbio", ele declara.
O Metropolitan Museum of
Art [em Nova York] adquiriu
um quadro de Duccio [di Buoninsegna] por US$ 45 milhões
em 2004, quantia que, diz Singer, pagaria por operações de
catarata para 900 mil pessoas
cegas ou quase cegas nos países
em desenvolvimento.
Ele prossegue: "Se o museu
estiver em chamas, alguém
consideraria mais certo salvar o
quadro do incêndio do que uma
criança?"
O livro tem seus heróis e vilões. Entre os primeiros, temos
Bill Gates e James Hong, que
enriqueceu ao criar o site "Hot
or Not", no qual os visitantes
votam sobre a aparência dos
demais usuários.
Hong doa 10% do dinheiro
que ganha acima dos primeiros
US$ 100 mil anuais e opera um
segundo site no qual encoraja
outras pessoas a assumir compromisso semelhante.
Entre os vilões estão os bilionários do software Paul Allen e
Larry Ellison. Singer reconhece que Ellison doou US$ 39 milhões em 2007, mas acrescenta
que "ainda que Ellison não lucre mais um centavo, poderia
doar US$ 39 milhões ao ano pelos próximos 600 anos e ainda
reter US$ 1 bilhão para cuidar
de sua velhice".
Mas ainda há tempo para
Ellison. Como aponta Singer,
se Warren Buffett tivesse doado o primeiro milhão que ganhou, não estaria em posição,
agora, de doar US$ 31 bilhões.
Em um dos sites de Singer,
thelifeyoucansave.com, ele
solicita que as pessoas assumam o compromisso de doar
dinheiro para combater a pobreza mundial segundo uma
escala móvel que propõe (ele
mesmo doa 25% de sua renda
anual, escreve). Já obteve mais
de 1.800 adesões.
"Tendemos a considerar que
as pessoas merecem ser mais
culpadas por seus atos do que
por suas omissões", escreve
Singer. Não é preciso concordar com tudo o que ele afirma
para sentir que não há o que
discutir: no que tange a viver
uma vida dita "de bondade", as
omissões morais hoje contam
mais que nunca.
A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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