São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Ponto de fuga

A lentidão espartana

A velha crença de que o belo, o bem e a verdade se identificam e superpõe é só um mito; uma obra de arte não se resume, felizmente, a sua ideologia

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Leitores reagiram a opiniões emitidas no outro domingo, nesta mesma coluna, sobre o filme "300", de Zack Snyder. Falava-se aqui sobre a lentidão do ritmo que o percorre. É um de seus aspectos mais surpreendentes e originais.
Predomina hoje a velocidade das cadências, a montagem precipitada no cinema e na televisão. Mesmo os jornais e revistas tomam o partido do texto curto, do parágrafo reduzido, da página arejada, com muitas imagens e (poucos) escritos breves.
Supõe-se que o espectador (ou o leitor) seja incapaz de atenção prolongada.
Esse hipotético império da fugacidade obrigatória é destroçado pelo sucesso de "300".
Talvez o orçamento baixo do filme (em termos de Hollywood) tenha libertado o diretor Zack Snyder da pressão exercida por produtores e marqueteiros. Eles acham que sabem "o que o público quer" e dão tantas vezes com os burros n"água.
Snyder encanta-se pelos quadrinhos de Frank Miller, cuja beleza é a da grande pintura. Seu filme reinventa e saboreia essa beleza.
No "Ponto de Fuga" precedente, vinham mencionados as paradas militares do nazismo, os intermináveis discursos de Fidel Castro (vale para a oratória de qualquer líder totalitário) e o "Crepúsculo dos Deuses", de Wagner, como agentes hipnóticos.
São exemplos heterogêneos e causaram estranheza. Possuem, porém, um ponto comum: atuam num tempo lento e longo; impõem a apreciação extática. Tantas culturas, no Ocidente e fora dele, desenvolveram formas artísticas sutis baseadas nesse princípio.

Rituais
Os andamentos lentos e longos de certas obras não são forçosamente fascistas ou nazistas. Induzem a uma espiritualidade mística, em que as energias corpóreas são minimizadas: em "300", o filtro do cinema se sobrepõe ao dos quadrinhos e oferece àqueles corpos, em princípio enérgicos, a distância imaterial da lenda. Exclui a embriaguez dionisíaca que subjuga pela carnalidade das sensações. Sua estratégia é a da insinuação, e não a do impacto; a da repetição, e não a da renovação; a das intensidades progressivamente dilatadas, e não a dos contrastes.
Regimes totalitários incorporaram alguns desses instrumentos de fascínio; mas não só eles e nem sempre eles.
O canto gregoriano, o prelúdio da ópera "Tristão e Isolda" (ou, antes, todo o "Tristão e Isolda"), a pintura de Rothko, de Whistler, o cinema de Antonioni, de Tarkovski, "A Grande Jornada" (1930, western de Raoul Walsh, com John Wayne), participam todos desse modo de ser artístico, no qual o tempo se torna uma espécie de substância.
Ser ou não ser
Uma mensagem pergunta: "Se '300" é um filme fascista, como eu gostei dele, seria eu fascista?" Claro que não. A velha crença de que o belo, o bem e a verdade se identificam e superpõem é só um mito. Uma obra de arte não se resume, felizmente, a sua ideologia. Ótimas armas contra essas armadilhas: a irrisão e o desrespeito. O desenho "South Park" fez uma sátira estupenda de "300", envolvendo lésbicas transexuais.

Boys
Há uma esplêndida tela pintada por David sobre o mesmo tema de "300": "Leônidas nas Termópilas" (no Museu do Louvre). É enrustida e tão cripto-gay quanto o filme. Reúne uma impressionante quantidade de nus masculinos que se organizam como numa apoteose de teatro de revista.
Quando Napoleão fugiu de Elba em 1815, enfrentando as potências européias com seu punhado de soldados, reconheceu no quadro de David uma metáfora de si mesmo.

jorgecoli@uol.com.br


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