São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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"Fui desmoralizada, hoje sou lição de vida"

VALMIR SANTOS; PAULO SAMPAIO
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO

Uma entrevista com Dercy Gonçalves é tão perturbadora quanto o encontro com ela no palco, na televisão, no cinema. Parece representar o arcaísmo e a modernidade da história do país e de sua gente nesse século de vida.
Prestes a completar cem anos, no próximo dia 23 de junho, Dercy recebeu a Folha em seu apartamento, em Copacabana, com sua habitual vitalidade da língua.
Fala sem cerimônia, debocha, cantarola, levanta as pernas, oferece a galinha que cozinhou, enfim, põe seus interlocutores sob o império do improviso.
Dá para ter uma idéia de como os diretores sofriam em suas mãos. Ela escorrega dos roteiros e cria seu próprio caminho.
Quando parece que tudo vai por água abaixo, principalmente quando desafiada a contornar lapsos da memória, eis que os fios da história e da conversa se restabelecem.
São fragmentos da humanidade dessa artista que derrubou tabus, abriu flancos para outras gerações -quando o ofício era levianamente confundido com prostituição- mas também reinventou os seus e seguiu adiante, homofóbica explícita.
Ela se defende com o talento nato para entreter e não "trumbicar". "Quando entrava em cena, não queria ninguém comigo. Nunca fui de grupo cantando atrás de mim", diz a vedete que despontou no teatro de revista, no qual desancava as coristas, e depois trilhou carreira solo produzindo a si mesma.

"Alegria fingida"
A comediante posa assim de "supermulher", mas é raro apanhá-la em sorriso. E até nisso improvisa a "alegria fingida", auto-irônica, quando contracena com a lente da fotógrafa.
Não por acaso Dercy nasceu Dolores. Plantou e colheu feridas de amor, de sexo e de solidão que jamais cicatrizarão, sabe disso. E dói tanto para "a velha perigosa" que a ditadura tirou do ar nos primeiros anos da rede Globo quanto para a mulher que sempre se esforçou para colocar a arte em primeiro plano, às vezes de forma dramática.
Que o diga a filha única cuja gravidez tentou interromper a socos para não atuar "barriguda". Talvez socos e carinhos como os da entrevista abaixo.

 

Leia abaixo trechos da entrevista de quase três horas de duração concedida por Dercy Gonçalves à Folha.
 

FOLHA - Você está sendo muito procurada por causa de seu aniversário de cem anos?
DERCY GONÇALVES
- Não.

FOLHA - Você acha que a platéia de hoje é diferente da de outros tempos, como a do teatro de revista?
DERCY
- Não, a platéia de teatro é a mesma. Tudo que eu fazia eu continuo fazendo. E acham mais graça do que antes. Hoje já não sei tanto em relação à TV, porque pouco trabalhei nela.

FOLHA - Gosta de se ver na TV?
DERCY
- Não tenho raiva de mim, não.

FOLHA - Mas você acompanha?
DERCY
- Eu não vejo televisão.

FOLHA - Nem quando você própria aparece?
DERCY
- Quando eu apareço, assisto para ver meus defeitos.

FOLHA - E você vê?
DERCY
- Vejo que a forma como se representava agora não é a mesma.

FOLHA - Isso é ruim ou bom?
DERCY
- Não sei. Era um método de cuidados para não ofender. Agora, não sei. Quando eu falo cu, um olha para o outro. O que é cu? É feio? Feio, mas foi alguém que botou esse apelido.

FOLHA - Já foi rica?
DERCY
- Não, mas sempre tive dinheiro. Ganhei dinheiro à vontade.

FOLHA - Por que em sua carreira a cantora perdeu espaço para a atriz? Inicialmente, você queria ser cantora, não?
DERCY
- Como cantora, eu não ganhava dinheiro, ganhava pouco. Era uma mão-de-obra para trabalhar nos circos, nos cabarés, nos puteiros. Eu só "fazia mesa", nunca bebi.
Aí, um dia, fui assistir a uns portugueses que vieram de Coimbra para fazer um espetáculo no Teatro Municipal. Quando um deles falou no palco "eu estou todo cagado" (com sotaque), o povo caiu na gargalhada.
Aí também comecei a falar palavrão: puta que pariu, caralho, e todos riam. Então, é por aqui que vou ganhar. Ganhei dinheiro com palavrão pra caramba.
Não tenho medo de falar, porque tenho certeza de que não é palavrão. Palavrão, meu filho, é condomínio, palavrão é fome, palavrão é a maldade que estão fazendo com um colírio custando 40 mil réis, palavrão é não ter cama nos hospitais.

FOLHA - O crítico de teatro Yan Michalski...
DERCY
- Nem sei quem é...

FOLHA - ... Ele já morreu, escreveu para o "Jornal do Brasil" entre os anos 1960 e 80... Enfim, certa vez ele afirmou que via no seu trabalho de atriz uma posição "revoltantemente reacionária" por causa da "sua recusa em contribuir para que esse público fosse levado nem sequer um passo na direção da conscientização"...
DERCY
- Ele é uma besta quadrada que quer ser um historiador, um cientista. Ninguém sabe o que se passa dentro de cada um, meu bem. Você é um, e eu sou outro. Você tem sua vida e eu tenho a minha.
Na minha profissão, não tive mãe, não tive pai, não tive família, não tive ninguém. Fui aprender sozinha, o erro e o bem.
Uma vez, eu fui puta. O cara me convidou e disse que me dava 5 mil réis. Eu pensei: "Será que vou? Estou precisando pagar o quarto, não tenho dinheiro. Eu vou". Fui.
Quando terminou, não senti nada. Senti nojo dele. Mas o que podia fazer? Eu vendi o corpo.

FOLHA - Você acha que é por essa experiência que você não gosta de sexo?
DERCY
- Não é por essa não.

FOLHA - As feministas lutam para que a mulher também tenha prazer, não só o homem...
DERCY
- Ah, meu filho, e a outra inventa: "Ai, ai"... Mentira! Tudo é mentira, não sente nada, cada um inventa um fingimento. Nunca senti nada por homem nenhum.

FOLHA - Ser mulher, atriz e puta, como se dizia à época, era mais difícil do que ser homem?
DERCY
- Meu filho, eu não sei se fui puta, porque fui tanta coisa na vida para os difamadores. Sei que fui desmoralizada, discriminada. Não me atingiram porque eu não era e tinha a minha consciência forte e tranqüila.

FOLHA - A própria classe artística a descriminava?
DERCY
- Nós éramos discriminados...

FOLHA - Você tinha acesso a todos os tipos de teatro?
DERCY
- Acesso, eu tinha...

FOLHA - Porque havia a intelectualidade, essa coisa...
DERCY
- Não, nunca fui intelectual. Eu sempre fui burra e analfabeta. Primeiro, me desmoralizaram. Era a desbocada, só falava palavrão, era isso, era aquilo. Hoje, sou lição de vida.
Não sei por que mudou. Para mim, tanto faz como tanto fez.
Estou vivendo bem, vivo à minha custa. Não vou pedir esmolas, vendo o que é meu, vendo o meu trabalho. Eu não trabalho para ninguém de graça. Ah, quer fazer uma homenagem? Tem de pagar. Eu ia até cobrar de vocês...

FOLHA - E o que você vê no futuro?
DERCY
- Vejo a minha morte. Tenho medo da minha morte. Como não tenho doença, tenho medo de ser algo desastroso, um prédio cair em cima de mim, um carro [me atropelando].

FOLHA - Como seria sua morte ideal?
DERCY
- Dormir e não acordar mais, e nem pensar que morri. A morte, para mim, é o descanso da vida. A vida é que é a luta.

FOLHA - Você tem religião?
DERCY
- Eu não acredito em ninguém, nem em nada. Nem papa, nem bispo, nem santo, nem Deus. Existe, meu filho, natureza. Essa força que não tem nome, tudo isso é Deus.
Ao que deram nome de Deus, para mim é natureza.

FOLHA - Você gosta de espelhos [que revestem o teto e a parede do banheiro de seu apartamento]?
DERCY
- Gosto, já coloquei em toda a casa, mas hoje não uso mais. Não quero mais nada, não tenho mais vontade de nada.

FOLHA - Quando você fazia plástica, gostava do resultado?
DERCY
- Eu fiz dez. Amava, sempre fui vaidosa. Eu sempre me pintei, desde garota, preto aqui, era carvão, papel de seda vermelha. Eu era bilheteira de cinema em Madalena [Santa Maria Madalena, no RJ], o Ideal. Via Pola Negri, Teda Bara, aquelas atrizes do passado que se pintavam.

FOLHA - O bingo é um hobby seu?
DERCY
- Não. Eu não tenho hobby. Nada me domina, nada me apaixona. Não tenho vício nenhum. Nunca bebi álcool na minha vida.

FOLHA - Já fumou?
DERCY
- Já, de brincadeira, de sacanagem.

FOLHA - E droga?
DERCY
- Não. Não conheço cocaína ou maconha.

FOLHA - Teve vontade?
DERCY
- Vontade de quê? Aquilo é um vício. A minha gulodice é a comida. Eu gosto de comer feito uma vaca.

FOLHA - Mas você é muito magra.
DERCY
- Eu não sou magra, não, é porque tirei metade do estômago. Comia feito uma mula.
Fui ao médico, tive um câncer no estômago [em 1991]. Fui operada no [hospital Albert] Einstein, em São Paulo. Quem pagou a minha estada lá foi o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então vice-presidente de operações da TV Globo].

FOLHA - A doença a assusta?
DERCY
- Eu não, nem sabia o que era aquilo, porra.

FOLHA - E quando te falaram do câncer?
DERCY
- Falaram que eu tinha que operar, então eu fui. Não podia deixar o câncer ficar em mim. Seria a mesma coisa se uma cobra me picasse. Estou envenenada e tenho que lutar contra esse veneno.

FOLHA - Você gosta de cozinhar?
DERCY
- Gosto, e cozinho muito bem.

FOLHA - O que você mais gosta de fazer?
DERCY
- Vou te dar um pedaço [levanta-se, vai à cozinha e traz pedaços de galinha ensopada; apanha um pedaço do peito, bastante condimentado, e leva à boca dos repórteres]. Não é bom?

FOLHA - Você diz que nunca se apaixonou.
DERCY
- Não.

FOLHA - Nunca teve um parceiro?
DERCY
- Eu tive quatro homens na minha vida, quatro homens com quem convivi.

FOLHA - Ah, você viveu com um homem então...
DERCY
- É claro. Eu não vivi com mulher, porra (risos).

FOLHA - Nunca teve nada com mulher?
DERCY
- Não. Eu nunca fui de sexo, nunca fui mulher sexuada, que ficasse apaixonada. Em primeiro lugar, eu não acredito em sexo. Pela natureza, nós somos feitos de uma matéria ordinária, muito vagabunda, que Ele ia jogar fora, mas decidiu aproveitar para fazer a humanidade.
É disso que é feita a humanidade. Se a humanidade é feita disso, nós não somos nada.
Com a internet, o celular, a tecnologia tomou conta do mundo, mas o ser humano caiu, se desmoralizou. A juventude não trabalhava, estudava, se educava para poder ser gente.Quando chegavam aos 20, 25 anos, as pessoas se casavam.
Agora não é mais assim.

FOLHA - Mas já foi acusada de fazer muito sexo...
DERCY
- Eu já fui acusada de tudo. Eu era "negrinha" [sua avó era negra], menina de rua, mas nada disso me atingiu porque eu não sabia o que era o mundo. Não tinha nem amigos. Passeava na rua e era perseguida com 7, 10 anos, porque o negro é perseguido há séculos.
Agora, por que era perseguido se nós somos feitos da mesma matéria? Como se pode fazer isso com um ser que é igual a você? Eu pensava que o mundo era Madalena. Se eu não tinha um princípio, e nem escolha eu tive, então eu fugi de casa com 14 anos porque papai batia...
A menina não tinha nada, não era ninguém. Nem na procissão eu podia ir porque não me vestia de anjo, de Maria. Então, essa religião é falsa.

FOLHA - Na época do teatro rebolado, os presidentes iam te ver?
DERCY
- Não. O Getúlio Vargas ia ao teatro não por causa de mulher, mas por causa do Pedro Dias, que o representava dando golpe nos inimigos do povo. Getúlio Vargas foi quem nos deu cultura, criou o trabalhismo.

FOLHA - Você é getulista?
DERCY
- Não sou getulista, não sou porra nenhuma. Eu não sou Dercy Gonçalves. Eu não sou nada.

FOLHA - Você vota ainda?
DERCY
- Voto.

FOLHA - Votou em quem?
DERCY
- No Lula [na primeira eleição que ele ganhou, ela havia votado em José Serra].

FOLHA - No Brasil de hoje, há chance de nascer uma artista popular como você?
DERCY
- Eu sei lá sem tem, porra, não sou pesquisadora. Se o dinheiro é o que vale, eu não valho nada. Se o dinheiro é o que vale, eu tô roubada.
Porque eu luto para vender o meu DVD ["Dercy 100", independente], vou no bingo para dar bingo. E eu adoro jogar, é um jogo honesto, um jogo simples, um jogo para pobre. É um jogo para jovem e para velho.

FOLHA - Você vai ao bingo com que freqüência?
DERCY
- Eu vou todos os dias, não tenho de dar mais satisfação a ninguém. Eles me tratam com muito respeito, eu me distraio, as horas passam, matam a minha solidão, matam a minha falta de família, a minha falta de amigo, mata muita coisa, meu filho. Prefiro o bingo a tomar uma birita em qualquer lugar.

FOLHA - A solidão assusta mais que a morte?
DERCY
- É muito pior. A solidão te irrita, te deixa estressado, te dá mágoa. A solidão te mata. É a pior coisa que pode existir para a humanidade. É o abandono dos amigos, da família. Eu vou para a rua, porque na rua eu vejo um desastre e fico olhando, vejo um tiroteio e fico olhando...
Eu adoro tudo isso, me distrai.

FOLHA - Desde quando você sente solidão?
DERCY
- Eu não tenho solidão.

FOLHA - Não?
DERCY
- Eu mato ela.

FOLHA - Quem são seus amigos?
DERCY
- Nenhum, não tenho. Não acredito em amigos. Eu tenho bons conhecidos, em amigos eu não acredito. Porque, se eu pedir dinheiro a algum e não pagar, ele corta relações comigo.
Então não é amigo.

FOLHA - ... Você pode comparar ou relacionar Dercy e Grande Otelo?
DERCY
- Meu filho, é muita diferença. Primeiro, Grande Otelo nunca foi ator cômico. Ele era mais dramático e trágico, pela feiúra, pelo tamanho dele. Ele fazia graça com drama. Eu não, sou criadora da graça.

FOLHA - Ele era tragicômico.
DERCY
- Era, completamente. Um excelente tragicômico, fazia coisas tristes para rir. Trabalhei com ele. Coitado, ele teve um fim triste, na miséria, bebia.
Eu não preciso de álcool para me dar vida. E não estou infeliz, não, estou satisfeita com a vida, cumpri minha obrigação, fiz cem anos, é muita coisa.

FOLHA - São mais de cem, né?
DERCY
- Eu tenho 102.

FOLHA - Como é essa história?
DERCY
- Meu pai era um homem rústico, alfaiate, sem cultura. Registrou tudo junto, um atrás do outro. Eu era a penúltima de oito filhos.

FOLHA - Você se dava com todos?
DERCY
- Eu não os conhecia direito, eu era a menor.

FOLHA - Eles têm orgulho de você ser famosa?
DERCY
- Não sei, morreram todos, sofridos, sem mãe, sem pai, sem família, abandonados.

FOLHA - Mas tinham orgulho da Dercy?
DERCY
- Não sei. Eu sei que me salvei. Tive a oportunidade de fugir de casa e ir ao mundo, sem cultura nenhuma, mas com muita curiosidade.

FOLHA - Você é boêmia?
DERCY
- Sou, gosto da noite, da madrugada, cabaré, boate, restaurante; em botequim, qualquer lugar eu queria ficar.

FOLHA - Você fez uma peça de Nelson Rodrigues, uma adaptação de "Dorotéia"...
DERCY
- Sei lá... Primeiro, Nelson Rodrigues não era nada de mais. Ele fazia a peça com verdades e era tratado por "anjo pornográfico", "desbocado". Antigamente, tudo era recriminado. A peça dele que fiz não fez sucesso, uma porcariazinha.

FOLHA - Já fez papel dramático?
DERCY
- Sim, uma vez, "A Dama das Camélias". Mas fiz cômico. A minha tosse [em cena] era "cofó, cofó, cofó".

FOLHA - E o diretor aceitou?
DERCY
- Ele não mandava. No ensaio, eu não ensaiava.

FOLHA - E o episódio de mostrar os seios na Sapucaí, em 1991?
DERCY
- Eu nunca fui disso. Eu fui desfilar, mandei fazer a roupa num costureiro muito vagabundo, dei alfazema e tal. Ele fez uma roupa que, quando eu levantava o braço, o vestido caía.
Não podia levantar o braço na passarela. Arriei e fui dançando e cantando. Tinha os seios lindos naquela ocasião. Mostrei. Houve gritaria, escândalo, mas por quê? Os seios são a coisa mais linda na mulher.

FOLHA - Você ficava muito tempo em cartaz?
DERCY
- Não, desde que nasci até hoje. Tem pelo menos 80 anos que eu trabalho.

FOLHA - Era um espetáculo atrás do outro, não tinha férias?
DERCY
- Não, que férias, e eu lá queria férias? Queria dinheiro. Ganhei muito dinheiro com espetáculos, apesar de ter uma grande companhia, a Dolores Costa Bastos [criada e mantida com o sobrenome de casada].

FOLHA - E você começou a escrever seus próprios roteiros?
DERCY
- Não, não escrevo, vou inventando na hora. Eu tenho muita facilidade em falar.

FOLHA - Nessa entrevista, você está inventando muita coisa?
DERCY
- Eu não estou inventando, algumas coisas eu estou cortando no meio, termino, termino e invento e invento.

FOLHA - Atualmente, quem concebe seus shows?
DERCY
- Tudo sou eu, sempre foi. Invento tudo na hora. Muita coisa é mentira.

FOLHA - Você é tímida ou extrovertida?
DERCY
- Eu nunca tive timidez. Eu tenho muita prevenção. Quando eu chego a uma casa, eu quero respeito, quero ver primeiro como é que é. Uma vez, fui convidada para uma festa. Era uma suruba, e eu nem sabia o que era suruba.
Eu era mocinha, ainda estava na Casa de Caboclo, em 1932. Fiquei horrorizada.

FOLHA - Você se arrumou para esta entrevista?
DERCY
- Eu não, vesti essa roupa ontem. É uma roupa bonita, branca, fui ao bingo e estou com ela desde ontem.

FOLHA - Você mesma se maquia?
DERCY
- Eu mesma me maquio, me visto, me arranjo.

FOLHA - E a memória, como vai?
DERCY
- Estou mal. Acabo de falar ao telefone e esqueço, acabo de fechar um negócio e esqueço.
Mas sempre tenho duas meninas que me ajudam. Eu tomo água, sal e açúcar, que é meu soro. Cheiro rapé para tirar o sono, acordar disposta. Tomo guaraná em pó no café da manhã. Esse é meu remédio para a memória.

FOLHA - Qual era seu luxo na época em que você era rica?
DERCY
- Eu nunca fui rica.

FOLHA - Você tinha carro, era você quem dirigia?
DERCY
- Sempre tive carro, um, dois, e sempre tive motorista. Eu não tenho competência nenhuma para dirigir. Não tenho competência para nada. Só tenho competência para ser artista. Eu represento o dia inteiro.

FOLHA - Aqui também?
DERCY
- Aqui também estou representando.

FOLHA - O que a faz rir? Não vi você rindo nenhuma vez. Faz os outros rirem, mas você não ri?
DERCY
- Eu acho graça em coisas... Meu bisneto [João, 5 anos]... Eu acho uma graça louca nele. Ele diz: "Bisa, você não pode morrer porque vai me fazer falta". Isso me faz rir. Como é que esse menino pode pensar numa coisa dessas?

FOLHA - Você gosta de criança?
DERCY
- Acho criança uma perfeição...

FOLHA - Você já fez análise?
DERCY
- Fiz psicanálise durante muito tempo. Gostei, melhorei, achei que tirei vantagens. Mas é difícil. A mãe do meu marido [Danilo] morreu louca, e ele tinha medo de que eu também ficasse. Eu me apaixonei por um dos três analistas. Eu tinha ciúme da mulher dele, era atendida na casa dele. Eu dizia para minha filha: "Estou passando mal, chame o meu médico".
Não sabia para que eu estava preparando aquilo, depois é que eu vi. Apaguei a luz, preparei o ambiente e deitei. Ele chegou, olhou. "O que é, dona Dercy? A senhora está doente? A senhora não tem nada. A senhora quer que eu venha aqui, está interessada em mim, não tá?"
A vergonha foi tão grande que fiquei boa. Eu tinha saudades dele, mas acabou o amor, acabou tudo, ele me desmascarou. Isso devia acontecer com todo mundo, modifica a visão. Nunca mais tive saudades de ninguém.

FOLHA - Que motivo a levou à psicanálise?
DERCY
- Não sei. Eu calculo, mas posso calcular errado.

FOLHA - Tinha medo da loucura?
DERCY
- Nunca fui louca, mas tinha medo de ficar. Via muita gente louca fazendo papelão, e não queria passar por isso. Mas a vida para mim foi premiada, porque passar o que passei, sem uma garupa, era muito difícil.
E, quando tive uma garupa boa, que era o pai da minha filha, eu não quis, porque era homem casado. Eu não o amava, era muito mais velho, e acabei entrando no teatro, uma tentação.

FOLHA - E quanto à fidelidade no casamento?
DERCY
- Não existe casamento. É um erro tremendo obrigar um sujeito a se amarrar com o outro só para querer dinheiro. Você não pode amarrar ninguém, a vida tem que ser liberada.
Casei porque fiquei com complexo de não ter marido para entrar com minha filha [na igreja] na noite do casamento. Casei por negócio.

FOLHA - Você vê as comediantes das novas gerações?
DERCY
- Nem assisto. Não quero ver cópias. As novelas são todas histórias inventadas. Não quero menosprezar o trabalho dos meus colegas, minha classe. Eu estou feliz porque eu sou eu.

FOLHA - Você já ouviu falar de besteirol?
DERCY
- O que é isso?

FOLHA - Uma geração de comediantes que surgiu nos palcos do Rio na década de 80...
DERCY
- Um babaca inventa o nome e pega...

FOLHA - Havia vaidade, ciúme de artistas em sua época?
DERCY
- Eu nunca tive, porque sempre fiz tudo diferente dos outros.

FOLHA - Mas, quando você despontava, alguém invejava?
DERCY
- Me xingavam, me esculhambavam, me desmoralizavam, mas eu nem sentia, porque não era. Até hoje é assim, não sei quando a pessoa me ama ou me odeia. Amar ou odiar parecem a mesma coisa.
São as atitudes, os gestos, a continuidade que levam à amizade na vida. Você não pode gostar da pessoa à primeira vista. Não é prato de comida.

FOLHA - Como recebeu a velhice?
DERCY
- Eu não recebi. Eu não sou velha. Eu tenho idade, mas não tenho espírito de velho. Tenho espírito de jovem, vivo a vida alegre e feliz, gosto da rua, de Carnaval, viajar.
Claro que estou mais cansada, claro que meus órgãos caíram, derrubaram. Eu me canso, mas dez minutos depois estou boa.

FOLHA - Você hoje é empregada do SBT?
DERCY
- Briguei com a Globo porque ela me tirou do programa, mas não deixou de me pagar. Fiquei fazendo o Faustão, depois queriam me colocar no Zorra [Total]. Não entro nessa merda nem morta.

FOLHA - Por quê?
DERCY
- Porque o programa é uma porcaria, não é para uma estrela, é para principiante. Então não fiz. Mas a Globo para mim foi a grande estação.

FOLHA - E a relação com o Silvio Santos?
DERCY
- O Silvio é um cara muito bacana. Tem aquele brinquedo [SBT] só para ele, não dá para ninguém.
Enjoou, ele bota na rua. Fez isso comigo, com o Ratinho. Mas tenho muito respeito por ele e não quero perder essa boca.

FOLHA - Como era o teatro de revista?
DERCY
- Era a coisa mais linda que havia no teatro. Pouca gente freqüentava a comédia, a não ser a dos grandes, como Procópio [Ferreira], o Jaime Costa, o Cazarré, Malberi Silva, que faziam um teatro mais para subúrbio, mas eram bons também.
O teatro de revista era escrachado, considerado marginal. Vivia lotado, mais de homens. As famílias se recusavam a ir à praça Tiradentes, ao Recreio, ao Carlos Gomes, ao João Caetano. Mas, quando eu fazia o Glória, lotava o teatro, muita gente ia escondida.
Uma vez, uma espectadora levantou a voz dizendo que não podia falar tantos palavrões. Eu disse: "Vai pra puta que te pariu" e desci do palco em direção a ela, que correu e foi embora.
Tô na minha casa, o que ela veio fazer aqui?

FOLHA - Por que o teatro de revista acabou?
DERCY
- Foi o seguinte. O [empresário] Walter Pinto não tinha prática nenhuma de teatro.
Morreu o pai, morreu o irmão e ficou ele tomando conta, sem saber patavinas de teatro. Ele era um homem muito rico, audacioso. Cheguei a dirigir a companhia dele. Depois de um tempo, ele se aventurou a exibir atrações internacionais.
Trouxe um companhia inteira do Liberté, aquelas mulheres parisienses, e isso acabou com o teatro de revista brasileiro, que era feito por mulheres surradas, algumas velhas já, trabalhando como coristas.
Aqui no Brasil, nada tinha valor, não passava do chão. Aqui, para ser artista, você precisava ter empresária, para fazer seu nome. Ninguém te ajudava.
Não tinha televisão. Tinha uma, a Tupi, que só funcionava com porcaria. E a TV Rio, que transmitia mais futebol.

FOLHA - Como encara nunca ter recebido um prêmio importante no teatro?
DERCY
- Para que eu quero essa merda? Eu não quero, até hoje. Quero dinheiro. Não me dê prêmios, que odeio. Tenho mais de 20 placas, Dercy Gonçalves, o caralho... O que vale é você ter dinheiro para se manter, sair da rua e não precisar ir para o asilo e tampouco para o hospital de graça.
(VS e PS)


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