São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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Ponto de fuga

Para vos servir

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Com "Grande Hotel", de Edmund Goulding (1932, Warner) e "A Regra do Jogo", de Jean Renoir (1939, Versátil), o acaso, nas edições de DVD, sugere paralelos inesperados. São filmes que, de hábito, não se aproximam nas rubricas habituais dos livros sobre cinema. Mas poderiam se encontrar numa categoria denominada "o anjo exterminador". Buñuel dirigiu um filme com esse título (1962, Versátil), em que mostra uma recepção na alta sociedade. Por razão inexplicável, quando a festa termina, ninguém consegue atravessar a porta de saída e ir embora. Junto dos ricos, fecha-se também o mordomo, único empregado que não parte com seus colegas, como que traindo a classe à qual pertence.
Em "Grande Hotel" e em "A Regra do Jogo", há também o confinamento de um grupo elegante, à volta do qual gravita um enxame de serviçais. Nos dois, ninguém escapa ao seu próprio mundo. Assinalam a decadência de uma época. São, porém, muito diferentes em suas concepções cinematográficas. Goulding centra tudo à volta de uma extraordinária construção cilíndrica, cujo pólo central é o balcão circular da portaria, para onde um piso de desenhos concêntricos conduz inevitavelmente o olhar. No filme de Renoir, ao contrário, a arquitetura parece abrir-se como cenário de teatro, elástica, efêmera, sem consistência. Quem instala o espaço são os personagens captados pela câmera. São eles que dilatam a profundidade, que diluem as paredes. Renoir, com lente ágil, capta a materialidade dos seres e das coisas. Goulding determina formas calmas, sólidas, numa fotografia que uniformiza as matérias, conferindo a tudo uma admirável epiderme lisa.

Bandeja
Em charge de Steinlen, no inicio do século 20, o criado de um palacete dirige-se a um operário que calça a rua e carrega um paralelepípedo. Diálogo: "Pesado, não é?". "Menos do que um penico." Jogo de desprezos, jogo de orgulhos. Os domésticos compartilham a mais inconfessável intimidade dos patrões.
Relações perversas, degradadas, de fascínio misturado a ódio de classe, entre senhores e empregados foram exploradas desde o século 19 pela literatura, em "O Primo Basílio", de Eça de Queiroz, em "O Jornal de uma Camareira", escrito por Octave Mirbeau no ano de 1900, que Renoir e Buñuel transformariam em filme.
Genet retomou esse filão na peça "As Empregadas", e Chabrol, no cinema, com uma obra-prima, "Mulheres Diabólicas" ("La Céremonie", 1995).
"A Regra do Jogo", porém, volta-se para a cumplicidade que o teatro do século 18 teceu entre serviçais e aristocratas. Não introduz nenhum conflito nessas relações. Com suprema lucidez, Renoir descreve uma sociedade que lhe é contemporânea e que deve desaparecer em breve: "A Regra do Jogo" é o último sobressalto de uma aristocracia proustiana, nas vésperas da tormenta guerreira que levará a todos de roldão.
Goulding, discreto e nuançado, descreve um mundo também em decadência, abalado pela Primeira Guerra Mundial, pela Revolução Russa, pela crise econômica. Empregados têm um serviço duro, a cortesia é de encomenda: o cachorrinho mimado de um hóspede toma vassouradas quando seu dono morre.

Automático
Como na saga de Proust, "Grande Hotel" e "A Regra do Jogo" mostram a modernidade que se infiltra no mundo, substituindo velhos requintes. O balé deixou de ser bom negócio; o jazz seduz mais; ao barão escroque e decadente, à dançarina madura, opõe-se o jovem casal que surge numa baratinha aerodinâmica, concluindo o filme de Goulding.
Em "A Regra do Jogo", autômatos graciosos e caixas de música de outras eras contrastam com o rádio, indiscreto e vulgar. Um aviador célebre vem apresentado como "herói moderno". Ele será a vítima desse mundo antigo que se desfaz em sombras.

Classes
"Grande Hotel", dirigido por Goulding, foi extraído de romance homônimo, escrito em 1929 por Vicki Baum, austríaca de origem. O livro, muito popular, nunca foi levado a sério pela crítica. É muito melhor do que se pensa. Foi bem traduzido na versão brasileira que, salvo erro, está esgotada. Não é muito difícil encontrá-lo em sebos, porém.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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