São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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O abc de "Tristes Trópicos"

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A humanidade instala-se na monocultura; prepara-se para produzir civilização em massa, como a beterraba. Seu trivial só incluirá esse prato". Esse pessimismo dá o tom nas nove partes de "Tristes Trópicos".
Lévi-Strauss reflete sobre a crescente impossibilidade da "viagem", no sentido pleno do termo, uma vez que não só a natureza mas também as diferenças culturais são esmagadas pela claustrofóbica "falta de distâncias" entre os povos e pessoas -fruto de um mundo marcado pela hegemonia totalitária do Ocidente e pela explosão demográfica.
Na seção seguinte, conta como despertou para a vocação de antropólogo. A etnologia foi um refúgio ante as "piruetas especulativas" da filosofia acadêmica dos anos 30. Na terceira parte, o foco se volta para o Brasil "civilizado" que ele encontrou na viagem de 1935. Está ali a famosa observação sobre o Rio, segundo a qual "o Pão de Açúcar, o Corcovado [...] lembram ao viajante que penetra na baía cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada".
Já São Paulo lhe chamou a atenção pelo ritmo frenético: construções e demolições se sucedendo a cada surto de "impaciência" dessa cidade que, como Chicago ou Nova York, sofre de uma febre crônica: "Eternamente jovem, nunca saudável". Ele também comenta os hábitos intelectuais afrancesados da elite paulistana da época e a fundação da USP, em que foi um dos protagonistas.
Na quarta parte, descreve paisagens do Brasil central, fazendo um "travelling mental" rumo à tragédia social e ecológica com que se deparou em sua posterior viagem à Índia.
As reflexões sobre os índios brasileiros se concentram entre a quinta e a oitava partes do livro. Nos cadiueus da fronteira paraguaia, destaca aspectos como a estética semelhante à das figuras do jogo de baralho e a pintura corporal, prática que demarcaria diferenças sociais e sinalizaria a transfiguração da natureza em cultura. Analisa, a seguir, a organização social dos bororos (Mato Grosso), fundada num regime de reciprocidade e de rivalidade entre duas grandes metades e seus clãs.
Os nambiquaras, grupo que encontrou nos sertões do Centro-Oeste, embasaram um dos capítulos-chave de "Tristes Trópicos": "Lição de Escrita", que narra como o chefe da tribo, mesmo não sabendo ler nem escrever, fingiu que o sabia, numa mise-en-scène para aumentar o próprio prestígio diante do seu povo: rabiscou "garatujas" que deveriam parecer negociações comerciais em pé de igualdade com o homem branco (no caso, o próprio Lévi-Strauss, forçado a entrar no jogo).
O episódio suscita considerações mais gerais sobre o impacto da escrita na história humana, não tanto como instrumento de saber, mas sim de poder, de dominação política.
Outra população estudada pelo autor foi a dos tupi-cavaíbas. Ele confessa o orgulho em ser talvez o primeiro a adentrar uma aldeia "ainda intacta" desses que podem ser os "últimos descendentes das grandes populações tupis do curso médio e inferior do Amazonas".
Na última parte do livro, Lévi-Strauss medita sobre o significado do trabalho etnográfico em geral e questiona o período de quase cinco anos afastado da França, enquanto seus "condiscípulos mais ajuizados" galgavam as etapas normais de uma carreira universitária. Fala da dívida intelectual para com Jean-Jacques Rousseau, "nosso mestre, nosso irmão" e "o mais etnógrafo dos filósofos". E volta ao tema da crise da civilização mundial: critica a intolerância no islã, esse "Ocidente do Oriente", e faz surpreendentes aproximações entre budismo e marxismo.


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