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O abc de "Tristes Trópicos"
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A humanidade instala-se na
monocultura; prepara-se
para produzir civilização em
massa, como a beterraba.
Seu trivial só incluirá esse prato". Esse pessimismo dá o tom nas nove
partes de "Tristes Trópicos".
Lévi-Strauss reflete sobre a crescente impossibilidade da "viagem",
no sentido pleno do termo, uma vez
que não só a natureza mas também
as diferenças culturais são esmagadas pela claustrofóbica "falta de distâncias" entre os povos e pessoas
-fruto de um mundo marcado pela
hegemonia totalitária do Ocidente e
pela explosão demográfica.
Na seção seguinte, conta como
despertou para a vocação de antropólogo. A etnologia foi um refúgio
ante as "piruetas especulativas" da
filosofia acadêmica dos anos 30. Na
terceira parte, o foco se volta para o
Brasil "civilizado" que ele encontrou
na viagem de 1935. Está ali a famosa
observação sobre o Rio, segundo a
qual "o Pão de Açúcar, o Corcovado
[...] lembram ao viajante que penetra
na baía cacos perdidos nos quatro
cantos de uma boca desdentada".
Já São Paulo lhe chamou a atenção
pelo ritmo frenético: construções e
demolições se sucedendo a cada surto de "impaciência" dessa cidade
que, como Chicago ou Nova York,
sofre de uma febre crônica: "Eternamente jovem, nunca saudável". Ele
também comenta os hábitos intelectuais afrancesados da elite paulistana da época e a fundação da USP, em
que foi um dos protagonistas.
Na quarta parte, descreve paisagens do Brasil central, fazendo um
"travelling mental" rumo à tragédia
social e ecológica com que se deparou em sua posterior viagem à Índia.
As reflexões sobre os índios brasileiros se concentram entre a quinta e
a oitava partes do livro. Nos cadiueus da fronteira paraguaia, destaca aspectos como a estética semelhante à das figuras do jogo de baralho e a pintura corporal, prática que
demarcaria diferenças sociais e sinalizaria a transfiguração da natureza
em cultura. Analisa, a seguir, a organização social dos bororos (Mato
Grosso), fundada num regime de reciprocidade e de rivalidade entre
duas grandes metades e seus clãs.
Os nambiquaras, grupo que encontrou nos sertões do Centro-Oeste, embasaram um dos capítulos-chave de "Tristes Trópicos": "Lição
de Escrita", que narra como o chefe
da tribo, mesmo não sabendo ler
nem escrever, fingiu que o sabia, numa mise-en-scène para aumentar o
próprio prestígio diante do seu povo: rabiscou "garatujas" que deveriam parecer negociações comerciais em pé de igualdade com o homem branco (no caso, o próprio Lévi-Strauss, forçado a entrar no jogo).
O episódio suscita considerações
mais gerais sobre o impacto da escrita na história humana, não tanto como instrumento de saber, mas sim
de poder, de dominação política.
Outra população estudada pelo
autor foi a dos tupi-cavaíbas. Ele
confessa o orgulho em ser talvez o
primeiro a adentrar uma aldeia "ainda intacta" desses que podem ser os
"últimos descendentes das grandes
populações tupis do curso médio e
inferior do Amazonas".
Na última parte do livro, Lévi-Strauss medita sobre o significado
do trabalho etnográfico em geral e
questiona o período de quase cinco
anos afastado da França, enquanto
seus "condiscípulos mais ajuizados"
galgavam as etapas normais de uma
carreira universitária. Fala da dívida
intelectual para com Jean-Jacques
Rousseau, "nosso mestre, nosso irmão" e "o mais etnógrafo dos filósofos". E volta ao tema da crise da civilização mundial: critica a intolerância no islã, esse "Ocidente do Oriente", e faz surpreendentes aproximações entre budismo e marxismo.
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