São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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DA AMIZADE COM OS MODERNISTAS EM SÃO PAULO AO CONTATO COM AS TRIBOS DE MATO GROSSO, O BRASIL SERIA DETERMINANTE PARA O FUTURO DA CARREIRA DE LÉVI-STRAUSS

A nação experimental

FERNANDA PEIXOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar de breve, o período brasileiro de Lévi-Strauss (1935-1939) mostra-se fundamental para a compreensão da carreira e da obra futura do etnólogo, assim como para o exame da cena universitária brasileira em seus primórdios, na qual as presenças francesas são decisivas. A consideração desses anos permite lançar luz sobre o lugar do Brasil no itinerário de Lévi-Strauss e sobre as ressonâncias de sua estada sobre os contornos assumidos por parte das ciências sociais entre nós.
Ainda que responsável pelo ensino de sociologia na Universidade de São Paulo recém-criada (1934), os temas de curso de Lévi-Strauss variavam segundo amplo leque: de sociologia primitiva a antropologia urbana, passando pela lingüística, pela etnolingüística e pela antropologia física. O que chama a atenção nesses programas de curso é que eles continham, de modo concentrado, os tópicos sobre os quais ele irá trabalhar ao longo de sua obra: o parentesco, o totemismo, os mitos.
Além dos cursos regulares na universidade, os professores franceses eram obrigados a realizar conferências periódicas. Em 1935, temos o registro de cinco palestras de Lévi-Strauss, das quais, infelizmente, não restaram senão os títulos: "Progresso e Retrocesso", "A Crise do Evolucionismo", "A Hipótese Evolucionista", "Existem Culturas Superiores?", "A Caminho de uma Nova Filosofia do Progresso".
De 1938, mais um: "Os Problemas Criados pelo Estado Atual da Etnografia Sul-Americana". Em 1937, as fontes falam alternadamente de um curso de extensão e de uma conferência sobre um mesmo tema: "Os Contos de Perrault e Sua Significação Sociológica".

Ensino e pesquisa
É possível localizar ainda alguns artigos em revistas e jornais da época. Um dos primeiros foi editado na "Revista do Arquivo Municipal", em 1935, "O Cubismo e a Vida Cotidiana", que permite flagrar o interesse precoce do autor pelas artes.
Outro artigo, do mesmo ano, "Em Prol de um Instituto de Antropologia Física e Cultural", aparece na mesma publicação. Destaca-se aí a defesa da articulação entre ensino e pesquisa, da formação prática de pesquisadores e dos cursos interdisciplinares. Tal plano precocemente elaborado realiza-se, de forma distinta, anos mais tarde, no Collège de France, quando da criação do Laboratoire d'Anthropologie Sociale [Laboratório de Antropologia Social].
No ano de 1936, constam mais três artigos de Lévi-Strauss: "A Contribuição para o Estudo da Organização Social Bororo" ("Revista do Arquivo Municipal"), "Entre os Selvagens Civilizados" ("O Estado de S. Paulo") e "Os Mais Vastos Horizontes do Mundo" ("Anuários da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP").
Em 1937, a "Revista do Arquivo" divulga a última colaboração do autor, antes de seu regresso à França: "A Propósito da Civilização Chaco-Santiaguense". Vale lembrar que o ensaio sobre os bororos é considerado por Lévi-Strauss o único texto relevante de sua produção brasileira.
Outras publicações do jovem etnólogo são veiculadas pelo "Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore". O que não soa estranho. O "Boletim" e a "Revista do Arquivo" são órgãos oficiais do Departamento de Cultura de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade entre 1935 e 1938.
É Mário quem atrai o casal Claude e Dina Lévi-Strauss para os projetos culturais e científicos implementados em sua gestão. Aliás, é a municipalidade de São Paulo, por meio do poeta, uma das financiadoras da expedição de Lévi-Strauss ao Brasil central, realizada em 1937 e 1938.


São Paulo fornece ao professor e aos seus alunos um laboratório de experiências sociológicas

As relações intelectuais e pessoais do casal Lévi-Strauss com os expoentes do movimento modernista em São Paulo são destacadas por ele: "Fui muito amigo de Mário e Oswald de Andrade. Eles vinham sempre à minha casa, saíamos juntos. Minha comunicação com os modernistas brasileiros era muito fácil e se fazia realmente em pé de igualdade, porque eu estava ao corrente dos movimentos intelectuais e literários na França" (1).
Numa cidade de feições ainda provincianas, o jovem casal Lévi-Strauss e os demais professores franceses circulam com desenvoltura. Além dos encontros periódicos na redação de "O Estado de S. Paulo", espécie de "salão literário da época", as perambulações pela cidade e o registro atento de suas transformações são fixados pela pena do escritor em "Tristes Trópicos" e pelas imagens capturadas nas lentes da câmara Leica, reunidas em "Saudades de São Paulo".

Flanando em São Paulo
Na apresentação dessas imagens, ele observa: "Naquele tempo podia-se flanar em São Paulo. Não como em Paris ou em Londres, diante de lojas de antigüidades (...). Mas justamente não era preciso pedir à cidade outros objetos de contemplação e reflexão que não ela mesma: imensa desordem em que se misturavam, numa confusão aparente, igrejas e prédios públicos da época colonial, casebres, edifícios do século 19 e outros, contemporâneos, cuja raça mais vigorosa tomava progressivamente a dianteira". A cidade de São Paulo fornece ainda ao professor e aos seus alunos um laboratório de experiências sociológicas que eles exploram no dia-a-dia do trabalho, descrevendo aspectos da paisagem e da sociabilidade urbanas.
Mas, se as cidades constituem o solo de investigações primeiras, são as pesquisas de campo nas sociedades indígenas o principal legado da estada brasileira do antropólogo francês. Lévi-Strauss e Dina realizam duas importantes missões etnográficas na época, relatadas 20 anos depois em "Tristes Trópicos": em 1935/6, visitam os cadiueus e os bororos, no Mato Grosso central e, em 1938, vão até os nambiquaras, quando encontram também os bororos e os tupi-cavaíbas do vale do Machado. O período brasileiro mostra-se essencial para o desenvolvimento da futura carreira de Lévi-Strauss, como ele afirma em diferentes ocasiões. O Brasil assinala um momento de passagem fundamental na construção da sua futura identidade profissional como americanista.
Não apenas a carreira mas também a obra de Lévi-Strauss é devedora da experiência brasileira. A primeira fase de sua produção apóia-se na matéria-prima obtida no Brasil, sobretudo o artigo sobre os bororos e a tese sobre os nambiquaras, "A Vida Social e Familiar dos Nambiquaras" (1948).
Seus trabalhos posteriores, ainda que reúnam informações etnográficas de várias regiões americanas, são também beneficiados pela etnografia das terras baixas sul-americanas, universo de experiência que funciona como uma espécie de ponto de partida a partir do qual a obra se projeta.
Poderíamos dizer que a obra espiralar de Lévi-Strauss contém um movimento permanente que se traduz na incorporação de novos objetos e questões e em um retorno sistemático a antigos resultados, ao começo -os bororos, os nambiquaras; basta olharmos os resumos de seus cursos, as "paroles données"-, ao longo dos anos.
Do mesmo modo, nas "Estruturas Elementares do Parentesco", a troca matrimonial se inspira no exemplo nambiquara. As "Mitológicas", por sua vez, tomam como ponto de partida um mito bororo.

Estruturalismo no Brasil
A chegada das idéias de Lévi-Strauss ao Brasil não coincide, nem poderia, com os seus anos brasileiros. Ela se dá de fato a partir do final dos anos de 1950, com as discussões acerca da noção de arcaísmo em etnologia, com o reexame de tópicos como a organização dualista entre os povos do Brasil central e, anos depois, com os estudos do parentesco amazônico. O que não deve nos levar a pensar que o estruturalismo tenha se tornado uma "moda" da antropologia brasileira na década de 1960, como observado em outras searas (nos estudos literários, por exemplo).
Talvez menos que uma influência da análise estrutural propriamente dita é a questão das organizações dualistas -um dos primeiros problemas importantes da etnologia americanista-, colocada por Lévi-Strauss e introduzida no país pela leitura crítica de David Maybury-Lewis, que tem verdadeiro impacto nos estudos antropológicos realizados no país.
Indagado sobre o assunto, Lévi-Strauss observou recentemente: "Eu não diria que nenhum entre eles (os antropólogos brasileiros) se declara estruturalista, mas penso que eles, como outros, absorveram em uma síntese pessoal um grande número de contribuições saídas do estruturalismo" (2).

Notas
1.Napoleão Sabóia, "O Personagem da Semana - Entrevista com Lévi-Strauss", "Suplemento Cultura", in "O Estado de S. Paulo", 6/6/82.
2."Le Brésil et les Sciences Humaines: Passé-Présent - Entretien avec Claude Lévi-Strauss", "Cahiers des Amériques Latines", nš 28/29, 1999, págs. 95-100.

Fernanda Peixoto é professora no departamento de antropologia da USP, autora de, entre outros, "Diálogos Brasileiros - Uma Análise da Obra de Roger Bastide" (Edusp/ Fapesp). Este texto é uma versão bastante reduzida de artigo publicado no nš 82 do "Cahier de l'Herne", dedicado a Lévi-Strauss (éditions de l'Herne, 2004, ed. Michel Izard).

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