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+ teatro
Peça em cartaz em SP e lançamento de dois livros reafirmam o papel
central da obra do alemão Georg Büchner na dramaturgia contemporânea
O jovial desencanto de Woyzeck
Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha
Barbeiro, engraxate, lixeiro, pedreiro, burro de carga, cobaia,
massa de manobra, de tudo um
pouco e em tudo um pouco errado."
A autodefinição do protagonista (vivido por Matheus Nachtergaele) da peça
"Woyzeck, o Brasileiro" exprime o alcance de uma brasilidade que é busca e
frustração, na adaptação em cartaz em
São Paulo (Sesc Belenzinho) da peça de
Georg Büchner (1813-37).
O dramaturgo alemão, morto antes de
completar 24 anos, parece marcado por
um traço que Max Weber diria inerente
às ciências humanas: a "eterna juventude". Como mostra a estudiosa Irene
Aron, é uma constante, até nos programas de encenações brasileiras das peças
de Büchner, sobretudo dos anos 50 em
diante, a alusão à "atualidade" delas. Esse frescor, essa repetida aparência de ter
sido escrita ontem, se alia a outro traço
tipicamente "jovem": o inacabamento,
seja ele metafórico ou, como no caso de
"Woyzeck", também literal, pois o autor
morreu (de tifo) antes de completá-la.
A alusão a Weber, para além de arbitrariedade gratuita, pode conter uma ironia proveitosa. Pois o sociólogo alemão
evoca a "juventude" das chamadas ciências do espírito como uma especificidade
dos discursos que, embora passíveis de
métodos racionais de construção, são
sempre condicionados pelo fato de sujeito e objeto serem de uma mesma natureza (a humana). Ora, em Büchner, um
problema crucial é, no revés do tema de
Weber, o dogmatismo das ditas "ciências exatas", correlato a um materialismo
que se degrada na visão de um mundo
repleto de "leis" e vazio de sentido.
É como se a escrita lacunar, ambígua e
anti-sequencial de Büchner, exacerbada
em "Woyzeck" (até pela loucura do protagonista-título), não apenas revolucionasse os cânones do teatro clássico, como também exprimisse pela forma uma
revolta contra a fixidez das demonstrações científicas, herdeiras e órfãs da religião. Desse texto, de que está saindo nova tradução no Brasil pela editora Hedra,
foram legados pelo autor quatro manuscritos que deixam dúvidas até quanto à
ordem precisa das cenas.
O que se sabe é que "Woyzeck" é uma
das peças fundamentais para o teatro dos
século 19 e 20. Ela antecipa desde o naturalismo e o teatro épico de Brecht até as
vanguardas expressionistas, surrealistas
e do teatro do absurdo. Sua importância
imorredoura, mas sempre e ciclicamente
"jovem", está não só nas rupturas estéticas como também na ousadia pioneira
de fazer da pobreza tema central e, de um
pobre -o soldado raso Woyzeck-, um
dos mais complexos personagens da
dramaturgia universal.
Experimento científico A fábula é
aparentemente banal. Já pressionado pela miséria, pelo trabalho opressivo e pelos bicos humilhantes -como ser cobaia num experimento científico que o
obriga a comer apenas ervilhas-, Woyzeck descobre estar sendo traído por sua
mulher, Maria, com um suboficial conhecido como Tambor-Mor.
Maria era para Woyzeck o que restava
do valor de viver, ele que, herói anticlássico, mostra escassa consciência do que
se passa ao redor, mas que tem a argúcia
suficiente para antecipar Brecht e dizer:
"Veja, senhor capitão, o dinheiro, o dinheiro. Quem não tem nenhum tostão
vai lá pensar na moral do mundo? A gente é de carne e osso". Ao saber da traição
de Maria, com quem tem um filho, Woyzeck rompe os fiapos de lucidez que o
prendiam ao mundo e "decide" -se é
que cabe esse termo- pelo assassinato
da mulher.
Na peça em cartaz em São Paulo, que
tem direção de Cibele Forjaz e dramaturgia de Fernando Bonassi, um dos momentos antológicos é justamente essa
"decisão" de Woyzeck-Nachtergaele,
que, tendo uma festa ao longe (em que
Maria e o Tambor-Mor dançam juntos),
é "possuído" por vozes que lhe ordenam:
"Mata a loba boba, mata", numa ritualística sinistra e obsessiva. Segundo Forjaz,
em conversa com a Folha, essa cena surgiu numa das improvisações que marcaram os processos de ensaio. Ela nega
uma alusão explícita ao universo do candomblé, mas diz que essa leitura é de fato
possível, até pela "brasilidade" que,
consciente e inconscientemente, impregnou todo o trabalho.
Além de seu impacto estético, a cena é
rica também de informações para os interessados na problemática de Büchner,
pois condensa conexões entre o sagrado,
a violência e o absurdo. Basta ler a cuidadosa e anotada edição da Hedra, a cargo
do tradutor Tércio Redondo, para perceber a densa malha de citações bíblicas de
Büchner, sobretudo ao "Apocalipse de
São João". A imagética da religião, uma
vez despida de preocupações reverenciais, potencializa o desencanto e a dramaticidade humana do conflito. Também uma alusão furtiva, no texto, ao
adultério de Betsabéia (mulher de um
mercenário) com o rei Davi tem, no e para além do valor óbvio de antecipação
trágica da sorte de Woyzeck, um aspecto
de desvendamento das conotações brutais, impiedosas, do conceito de "força",
tão crucial quanto sublimado nos homens de Deus.
"Woyzeck, o Brasileiro" faz jus a esse
paradoxo de um desencantamento do
mundo vazado em simbolismo religioso
também pela escolha de uma olearia como cenário. Forjaz explica que essa opção, de um lado, realça o pessimismo bíblico -radicalizado em Büchner- da
sentença "vieste do pó e ao pó voltarás"
e, de outro, privilegia um tipo de atividade em que o arcaico da técnica se imbrica
com o atual das fachadas da modernidade brasileira: "O tijolo baiano [nome dado a uma variante de tijolo cheia de pequenos furos e que é feita pelos atores
durante o espetáculo] construiu 70%
deste país".
A dicção poética de Bonassi surge na
"urbanidade" explícita de personagens,
como o travesti que vende a Woyzeck a
arma do crime na peça, tomando o lugar
desempenhado no texto pela figura do
"judeu". O escritor deixa sua marca também em acréscimos de sua lavra, como a
cena em que o chefe da olearia esbraveja
contra o trabalhador que acaba de tropeçar: "Vocês não podem perder um só tijolo, a cidade precisa de muros".
Menção especial é devida a Matheus
Nachtergaele. Depois de bem-sucedidas
incursões na TV, ele estava devendo aos
amantes do teatro o tônus já demonstrado em sua inesquecível atuação no
"Livro de Jó" do Teatro da Vertigem, o
que finalmente ocorre com o seu Woyzeck. A performance de Nachtergaele
consegue, pela emoção que passa e pela
partitura das ações físicas que executa,
uma difícil alquimia entre as profundezas hamletianas e a passividade opaca da
personagem de Büchner.
Forjaz também afirma que, na tentativa do grupo de amarrar esse "drama de
farrapos" (a expressão é de Anatol Rosenfeld) que é "Woyzeck", uma das
preocupações foi evitar os equívocos da
histórica, mas malsucedida, montagem
de Ziembinski, em 1948, que, com o título de "Lua de Sangue", é a primeira versão da peça no Brasil e na América Latina, segundo Yan Michalski. Além de sua
discutível performance no papel principal, o legendário diretor polonês foi contestado, diz Forjaz, pela "confusão" gerada pela multiplicidade dos espaços em
que recortou a cena. "Lua de Sangue" ficou apenas 11 dias em cartaz.
Embora a temporada anunciada pelo
Sesc Belenzinho também seja (absurdamente) curta, "Woyzeck, o Brasileiro"
logra extrema felicidade estética ao conjugar a variedade de planos a uma extrema coesão de conjunto. Outro dos achados da peça é a trilha sonora do compositor Otto, que rebate em sua rítmica tensa
o moto-perpétuo do trabalho alienado e
todo-poderoso -o centro da cena é dominado pela maromba, máquina antiga
de fazer barro que é operada por trabalhadores que conduzem (ou são conduzidos por) incansável e tediosa movimentação circular.
Assim como o "conto da carochinha"
às avessas contado pela avó, em "Woyzeck", no qual uma criança viaja pelo Sol,
Lua e estrelas, mas só encontra ruínas, e
volta para o "penico emborcado" que é a
Terra, vivendo ali sozinha para sempre,
também a jovialidade que transpira em
Büchner não é a dos estereótipos risonhos, saudáveis, "desencanados". É a jovialidade do desencanto, mas que tampouco se fossiliza, permitindo sempre
novas leituras, às vezes as mais inusitadas. Uma delas é o interessante empreendimento de Fernando Marques na
obra "Zé" (ed. Perspectiva). O autor faz
ali uma adaptação em verso de "Woyzeck" e inclui composições musicais de
sua autoria. Sua busca é também por um
olhar crítico sobre nossa "brasilidade".
O resultado é um texto fluente e criativo, cujos atrativos para o leitor não deixarão, porém, de ser um desafio e um
saudável atrevimento a mais para atores
e encenadores que venham a encarar o já
por si só dificílimo universo de Büchner.
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