São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O escritor se diverte

Walnice Nogueira Galvão, que está lançando obra sobre Guimarães, explica o gosto do autor por criar palavras e critica a reforma ortográfica

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Crespa, rumorosa e incômoda", segundo definição do próprio autor, a literatura de João Guimarães Rosa representa uma tentativa de devolver às palavras a possibilidade de propiciarem susto e prazer, para além dos clichês que as banalizam na era da indústria cultural. A afirmação é da professora de literatura da USP Walnice Nogueira Galvão. Uma das principais especialistas na obra de Rosa, ela lhe dedica a coletânea de ensaios "Mínima Mímica" (352 págs, R$ 53), que está sendo lançada pela Companhia das Letras.
Na entrevista a seguir, a pesquisadora também comenta o legado e atualidade do autor de "Grande Sertão: Veredas" e critica a nova reforma ortográfica da língua portuguesa.

FOLHA - Como a sra. sintetizaria a importância de Guimarães Rosa para a literatura brasileira?
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
- Não estamos acostumados a ter escritores desse padrão: alto nível de criação, inclusive lingüística, aliado a erudição universal.

FOLHA - A sra. vê em Guimarães Rosa uma síntese entre duas correntes importantes e até então antagônicas na literatura brasileira, regionalismo e espiritualismo.
GALVÃO
- Ao operar a síntese, é como se Guimarães tivesse ao mesmo tempo superado as duas tendências.

FOLHA - Foi o maior escritor da história da literatura brasileira?
GALVÃO
- Isso é um pouco arriscado de dizer. Eu diria que ele é quem levou mais longe o experimento lingüístico.

FOLHA - Muitos vêem Machado de Assis como o único escritor brasileiro de importância comparável. E é curioso ver que, num trecho dos diários de Guimarães Rosa, há uma severa crítica à obra de Machado, que seria um escritor "antipático de estilo", com "artifícios baratos" e de leitura tediosa.
GALVÃO
- Ele nunca disse nada disso em público. Numa enquete sobre o melhor romance brasileiro de todos os tempos, ele respondeu que era "O Louco do Cati", de Dyonélio Machado -excelente romance, aliás. Mas é uma resposta original, até excêntrica.

FOLHA - Ele não gostava também de admitir influências de outros escritores, por exemplo Joyce.
GALVÃO
- O Arquivo Guimarães Rosa [do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo] tem um caderno com suas leituras de Homero, bem aproveitadas na obra.
Ele lia e anotava, mas não saía contando por aí.

FOLHA - Que imagem de Brasil seria possível depreender da obra de Guimarães Rosa?
GALVÃO
- Um Brasil em que existe uma oligarquia, que por sua própria natureza é minúscula, comandando, dominando, explorando uma plebe enorme.

FOLHA - E é possível tomar esse pano de fundo de violência sertaneja e trazer para a realidade urbana, como se Guimarães Rosa estivesse denunciando um mal atávico da sociedade brasileira, um eterno retorno?
GALVÃO
- Só se você comparar Guimarães Rosa com "Cidade de Deus": mas são quantidades não comparáveis, sua obra não autoriza ninguém a fazer uma coisa dessas.

FOLHA - A inovação lingüística rosiana é uma tentativa de restaurar uma ordem cósmica, uma harmonia perdida de natureza e cultura?
GALVÃO
- A indagação sobre a tragédia da constituição da civilização é só no conto "Meu Tio o Iauaretê": ali vigora o ponto de vista do índio.
Ele é um escritor mais para o otimista. Vejo em Rosa uma grande alegria na fruição da amizade, da comida, da bebida, das mulheres, da natureza, entende? Ah, e tudo começa pela fruição da linguagem, você vê que ele se diverte criando palavras, ou sintaxes arrevesadas.

FOLHA - Quanto à cidade grande...
GALVÃO
- De que nunca fala...

FOLHA - E isso não seria parte de um projeto filosófico, político?
GALVÃO
- Não tenho idéia: ele só é mais claro quando diz, no "Grande Sertão", "cidade acaba com o sertão. Acaba?". Ou seja, é indecidível. Ele tem muito isso de ficar no fio da navalha, na ambigüidade, uma coisa formidável para um criador.

FOLHA - E quais seriam as principais ressonâncias do escritor na cultura brasileira em geral, por exemplo na música?
GALVÃO
- Uma obra como essa poliniza outras áreas, começando pela canção. Você tem já mais de dez filmes, a maioria fiel à letra e infiel ao espírito: apropriam-se do enredo, mas não pegam o tratamento "crespo e rumoroso". Glauber Rocha era um fã e aproveitou muito de Guimarães Rosa. No teatro, a mais memorável é a encenação de Antunes Filho.

FOLHA - Quanto à literatura, a sra. afirma que a influência de Rosa é hoje maior entre os escritores africanos do que entre os brasileiros.
GALVÃO
- Mia Couto ou Luandino Vieira têm o toque, as marcas do Guimarães Rosa. Como eram todos militantes políticos, socialistas, revolucionários, pensavam que o modelo a seguir era o do romance de denúncia social. Quando leram Guimarães Rosa, esse tipo de experimento os iluminou e passaram a praticá-lo: é a fecundação de um modelo.

FOLHA - O uso recorrente de neologismos e arcaísmos visava a romper com os clichês da língua corrente?
GALVÃO
- O inimigo dele realmente é o clichê, o lugar-comum: ele queria que a palavra de novo nos assustasse, porque, se você usa muito uma palavra, ela se desgasta, se banaliza.

FOLHA - E quanto à relação de Guimarães Rosa com a imprensa, a sra. mostra que era o oposto do entusiasmo de Drummond.
GALVÃO
- Ele se esquivava, dava poucas entrevistas e quase não escreveu para jornal: era escritor de livro. E é divertido ler nelas o negaceio: o entrevistador pergunta uma coisa, ele responde outra. Ele é trancado a sete chaves.

FOLHA - Ele parece exprimir um sentimento de religiosidade todo particular, sem referência a nenhuma confissão determinada.
GALVÃO
- Está dito com todas as letras no "Grande Sertão":
"Bebo água de todo rio", ou seja, toda religião é boa. Riobaldo contrata uma rezadeira, gosta de cantar hinos com os protestantes, acredita na doutrina de Kardec, que é o espiritismo, sendo ele próprio católico. É tão brasileiro isso...

FOLHA - Há risco de um autor como Guimarães Rosa ser esquecido ou ficar elitizado?
GALVÃO
- Penso que é o contrário: o que não fica é o que é superficial, fraco e ruim. O dicionário "Houaiss" tem 400 mil palavras. O rádio, a televisão, o jornal, a literatura que se faz hoje não chegam a 20 mil: estão jogando fora 380 mil.

FOLHA - O que a sra. pensa da reforma ortográfica da língua portuguesa, que está sendo implantada?
GALVÃO
- Quando sai uma reforma dessas, jogam-se no lixo todos os livros didáticos, para fabricar e vender tudo de novo.
É uma reforma supérflua e inútil, provavelmente interesseira.
Nunca vi ninguém fazer isso com o inglês, por exemplo, que é cheio de consoantes e vogais que ninguém pronuncia -e nem por isso é preciso fazer reformas ortográficas periódicas.


Texto Anterior: Resultado Final
Próximo Texto: Um para o outro
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.