São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

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Sociedade

Além do sapatinho

Estrela da arquitetura mundial, a iraquiana Zaha Hadid fala sobre a sandália que criou para a São Paulo Fashion Week e discute o futuro das cidades

VIVIAN WHITEMAN
DA REPORTAGEM LOCAL

A iraquiana Zaha Hadid é considerada um dos maiores nomes da arquitetura contemporânea. Em 2004, tornou-se a única mulher premiada com o Pritzker, honraria máxima entre os arquitetos, que já foi concedida a nomes como o americano Frank Gehry, o holandês Rem Koolhaas e também a Oscar Niemeyer -cuja obra ela considera uma grande fonte de inspiração.
Ao lado de Koolhaas, seu ex-professor, e Gehry, Hadid participou, em 1988, da exposição "Deconstructivist Archictecture", realizada no MoMA (Museu de Arte Moderna), em Nova York, considerada um marco do movimento desconstrutivista na arquitetura.
A base conceitual do grupo, embora muitos tenham renegado o rótulo nos anos 90, era o afastamento de conceitos modernistas, como funcionalismo e purismo das formas.
Entre os trabalhos de Hadid -muitos de seus projetos ainda não foram construídos- estão a estação de trens de Estrasburgo (França) e o Centro Rosenthal para Arte Contemporânea (EUA).
Dando sempre a impressão de movimento, o design fluido e orgânico de sua arquitetura chega ao Brasil, só que por meio da moda. A arquiteta acaba de criar uma sandália para a grife Melissa, lançada na semana passada durante a São Paulo Fashion Week.
O novo calçado, que começa a ser vendido ainda neste semestre, será exposto na galeria Melissa, no bairro dos Jardins, em São Paulo, juntamente com uma réplica de quatro metros, que estará na fachada da loja.
Mas essa não foi a primeira incursão de Hadid no mundo fashion. No ano passado, criou com o estilista Karl Lagerfeld o pavilhão de arte itinerante Mobile Art, projeto patrocinado pela grife Chanel.
Em entrevista à Folha por e-mail, dos EUA, Hadid falou de sua relação com a moda e dos desafios sociais da arquitetura contemporânea.

FOLHA - Por que decidiu fazer uma sandália para a Melissa? A sra. é fã de sapatos?
ZAHA HADID
- Sempre mantivemos um repertório formal muito diverso e aberto -e sempre nos interessamos por ampliar nosso trabalho e fazer coisas diferentes em contextos diferentes. Esse foi um projeto extremamente desafiador, tanto do ponto de vista do design quanto técnico, já que foi nossa primeira investida no design de sapatos e a primeira vez em que a Melissa trabalhou com uma arquiteta.
Adoro sapatos, especialmente os saltos altos, embora não sejam muito práticos!

FOLHA - Qual é a diferença entre projetar edifícios e objetos que estarão em contato direto com corpos humanos?
HADID
- As idéias sempre vêm da mesma fonte -mas a criação do projeto vai mudar de acordo com o foco, a técnica e o tipo de trabalho. Não creio que nossa abordagem inicial à arquitetura, ao design de produtos ou mesmo à moda seja tão diferente assim.
Poderíamos dizer que os designs de objetos e os projetos de moda são fragmentos do que poderia ocorrer em nossa arquitetura.

FOLHA - O que moda e arquitetura têm em comum? A sra. acha que a arquitetura pode refletir ou inspirar a moda?
HADID
- A arquitetura não pode criar cultura -tampouco o podem a moda, a ciência, a economia, a política ou mesmo as artes. Mas a arquitetura é um componente da cultura, tão vital e indispensável quanto a ciência, a economia, a política, a arte e a moda.
Acho que o grau mais alto de complexidade da sociedade em que vivemos hoje está refletido em sua arte, arquitetura e moda.

FOLHA - A sra. esteve no Iraque desde o início da guerra? O que pensa sobre o conflito?
HADID
- Não vou ao Iraque há muitos anos. Tenho minha opinião pessoal acerca do Iraque, mas não gosto de falar disso publicamente.

FOLHA - A arquitetura pode ser política? De que maneira?
HADID
- A partir da década de 1950 houve muitos lugares no mundo -quer estejamos falando do Brasil, da Índia ou de Bangladesh- que conquistaram sua independência, e todos queriam ter uma nova imagem com uma visão de tentar construir um novo mundo. E isso incluía a idéia de que a arquitetura poderia criar uma nova identidade para o Estado.
No Brasil, as pessoas queriam se afastar da arquitetura colonial e ir em direção a um tipo de modernidade. A mesma coisa aconteceu em vários pontos do Oriente Médio, e no Iraque em particular.
Cresci no Iraque nos anos 1960, dentro de um ambiente liberal. Era uma república nova que procurava conquistar uma nova identidade com a ajuda dos tipos de prédios que eram encomendados.
Essas idéias de mudança, libertação e liberdade que caracterizaram essa era foram cruciais para meu próprio desenvolvimento.
Embora algumas das sementes artísticas já estivessem presentes antes, o ritmo, a quantidade e a qualidade do trabalho criativo feito nas artes, nas ciências e no design foram realmente espantosos, antecipando em um flash intenso o que então levou outros 50 anos para se desenrolar no resto do mundo.

FOLHA - Qual é, em sua opinião, o maior desafio que a arquitetura vai enfrentar nas próximas décadas?
HADID
- Acho que o maior desafio para o urbanismo e a arquitetura contemporâneos é a reestruturação social fundamental que nos afasta da sociedade de massas industrial, marcada pela compartimentalização e pela segregação, levando-nos em direção a uma sociedade aberta de especialização flexível, com fluidez e dinamismo muito maiores nas empresas, nas organizações governamentais e nos relacionamentos sociais.
As complexidades e o dinamismo da vida contemporânea não podem ser transpostos para as grades e os cubos simples da maioria das cidades do século 20 industrial.
Agora, no século 21 digital, com as vidas se tornando mais flexíveis, precisamos lidar com diagramas sociais muito mais complexos, quando comparados aos programas sociais do século passado. Isso requer uma nova arquitetura de fluidez e porosidade para dar conta dessa complexidade.

FOLHA - A sra. pensa que a arquitetura poderia ter uma participação maior na resolução dos problemas sociais e ambientais? Como isso poderia ser feito?
HADID
- A arquitetura diz respeito à criação de ambientes agradáveis e estimulantes para todos os aspectos da vida. É também um veículo com o qual, acredito, é possível fazer frente a problemas sociais importantes.
A civilização humana sempre dependeu das estruturas sociais e de sua disposição em cidades maiores e menores para erguer e estabilizar uma ordem social.
Mas agora temos uma população global crescente e precisamos desenvolver novas estratégias para acomodar a todos num espaço finito.
Com relação ao design urbano e à arquitetura, os princípios do zoneamento fundamental precisam dar lugar a agendas de superposição em obras porosas, de uso misto -com muitas camadas de transportes, varejo, unidades comerciais e residenciais em um único projeto.
A ordem serial de repetição e segregação que marcou o século 20 industrial precisa ser substituída por sistemas que integrem e que sejam adaptáveis.
Esses sistemas altamente integrados de utilização mista requerem uma nova linguagem arquitetônica.
Resolver essas questões sociais em cidades pode ser muito interessante. Acho que os sistemas de transporte e infra-estrutura em muitas delas não evoluíram o suficiente para auxiliar o progresso.
Podemos criar cidades novas e instigantes, mas não podemos deixar o planejamento urbano ao acaso. Podemos desenhar o layout da cidade de tal maneira que ela facilite a vida de toda a população. Precisamos de uma estratégia.
Existem muitos arquitetos que usam métodos sofisticados de ar condicionado e design de interiores para melhorar o equilíbrio ecológico de um edifício.
Já eu estou preocupada com o ajuste de novos materiais e métodos de manufatura que sejam relativos a todo um novo paradigma de articulação espacial e criação de espaços.
No final, esses diferentes pólos de desenvolvimento -a sustentabilidade e a aplicabilidade dos materiais- vão se unir novamente, trazendo soluções para grande número de problemas.


Tradução de Clara Allain.


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