São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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Um apelo à União Européia


É hoje que a Europa precisa priorizar a recuperação argentina, a reconstrução do Mercosul e o desenvolvimento do país que é o único a querer conservar sua independência -o Brasil


Alain Touraine

Os países da União Européia olham em três direções. A primeira é a dos países do Leste. Trata-se, aqui, de bem mais do que um simples olhar, já que as negociações foram iniciadas há tempo. Elas estão se mostrando mais lentas e mais difíceis do que se previa, mas chegarão a termo dentro em breve. A ampliação da União Européia para abarcar todo o continente deve gerar um fluxo maciço de investimentos no Leste, que, em pouco tempo, representará um mercado muito importante para todo o Ocidente. Embora muitas pessoas se preocupem com a possibilidade de enfraquecimento da Europa assim ampliada, essa prioridade é indiscutível. A segunda direção é o eixo do Mediterrâneo sul, desde Turquia e Egito até Marrocos e Mauritânia. Os investimentos europeus nesses países, que constituem uma zona tradicional de influência européia, já são consideráveis. A terceira direção é o Mercosul, cujas trocas comerciais com a Europa são tão importantes quanto as que ela mantém com os Estados Unidos. Levando em conta que a primeira escolha já foi feita, qual deve ser a segunda? Ou, para falarmos mais claramente, deve a Europa priorizar a construção de novas relações com os países da América do Norte ou, pelo contrário, com o sul da América Latina? Quero explicar aqui, neste grande jornal brasileiro, por que o realismo e, ao mesmo tempo, a ambição devem levar os europeus a optar pela América Latina, e também dizer por que é precisamente do Mercosul que se trata. Dois argumentos me parecem ser decisivos, o que não nos impede de mencionar outros. O primeiro -que, a meu ver, é o que deve ser decisivo- é o tempo. A Argélia hoje se esvai em fogo e sangue. O governo administra apenas uma parte de seu território, a que absorve as riquezas do petróleo e do gás. O país não é um Estado nacional, como deixou claro o levante cabila, parte do mundo berbere. Essa Argélia praticamente não se comunica com seus vizinhos tunisinos ou marroquinos. Como pode ser construída uma estrada quando sua parte central fica no lugar onde a Argélia pretende estar? Um grande projeto para o sul do Mediterrâneo talvez faça sentido dentro de 10 ou 20 anos, mas é mais provável que a Turquia e o Marrocos peçam separadamente para ingressar na Europa atual. Do lado latino-americano, pelo contrário, tudo conduz a um acréscimo rápido. O México já está dentro da zona de livre comércio, e, de Puebla ao Panamá, como dizem os mexicanos, se prepara uma ação que colocará esses países na mesma situação que o México. O Chile, país com tradição de livre comércio, está muito satisfeito com seu tratado de livre comércio com o México e não vai esperar muito tempo diante da porta da América integrada em torno dos Estados Unidos. Deixando provisoriamente de lado um certo número de países que passam por dificuldades grandes demais para que possam realmente tomar decisões, resta a ser tomado um conjunto de decisões urgentes. Eis que chegamos ao cerne do problema. O Mercosul, cuja força libertadora foi constantemente alardeada, praticamente não existe mais, já que o Brasil aceitou uma desvalorização acentuada que lhe era indispensável e que a Argentina, depois de Menem, se exaure na tentativa de manter uma paridade do peso que praticamente impossibilita suas exportações. É preciso ir mais longe. A Argentina -país que, por muito tempo, esteve à frente do restante do continente e cujo nível de vida, meio século atrás, era superior ao da França, mais ainda ao da Itália e muitíssimo mais elevado que o da Espanha, país onde a produção cultural é de alçada mundial, ainda mais do que nacional- corre o risco de desabar.

Governo inexistente
O governo praticamente não existe mais, plenos poderes tendo sido dados ao ministro das Finanças, Domingo Cavallo, que soube tirar o país da crise de 1990. A aliança que permitiu a formação do governo de De la Rúa se desfez. O restabelecimento da Argentina permitiria a ela, e depois ao Mercosul, dispor de uma capacidade maior de negociação com os Estados Unidos. Se a Europa não tomar consciência dessa situação, dentro de 20 anos ela não poderá mais penetrar nos mercados latino-americanos, que estarão reservados aos EUA, como já acontece hoje com o mercado mexicano. É hoje que a Europa precisa priorizar a recuperação argentina, a reconstrução do Mercosul e o desenvolvimento do país que é o único a querer conservar sua independência -o Brasil. Se me dirijo aos brasileiros, é porque são eles os verdadeiros parceiros possíveis de uma União Européia que, também ela, precisa de grandes projetos. É certamente a Espanha que deve pesar mais na prioridade que a Europa deve dar à América Latina. Mas os italianos sabem bem quantos de seus irmãos e primos conseguiram "fazer a América". E como os franceses -que, na Europa, querem conservar sua independência política e sua cultura nacional- poderiam deixar de se engajar nesse grande projeto que grandes espíritos, especialmente os da Academia Brasileira de Letras e da Academia da Latinidade, já dotaram de uma ambição e uma forma? No entanto, mais uma vez, tudo é questão de tempo. A Argentina precisa ser salva hoje, o Mercosul precisa ser reerguido amanhã e uma zona de livre comércio unindo o Mercosul e outros países, como o Chile, com a União Européia, precisa ser criada antes de 2004, data fixada pelos Estados Unidos para a construção de um tratado comercial que integre o continente por inteiro.

A força latino-americana
Assim, é apenas em segundo lugar que é preciso lembrar, agora, que a economia latino-americana é bem mais forte, não apenas que a do sul do Mediterrâneo, mas também que a da Europa ex-comunista. Será que a Europa tem suficiente consciência de que o Chile, hoje, está muito próximo de Taiwan e da Coréia do Sul? A Europa, que precisa vender produtos de alta tecnologia e que também precisa contratar profissionais qualificados, tem muito mais interesse em desenvolver a América Latina do que um mundo árabe ainda fraco e dividido.
Não é por acaso que falamos em mundialização econômica. Mas não devemos esquecer dois fatores pelo menos tão importantes quanto esse para o desenvolvimento. O primeiro é a existência de grandes zonas de desenvolvimento, cuja pluralidade é a condição da liberdade de todos os países; o segundo é o papel do Estado, agente central do desenvolvimento e que raramente age segundo critérios puramente econômicos. Será que o sucesso atual dos Estados Unidos seria tão grande quanto o é sem os investimentos do país na aviação, no espaço e em inúmeras novas tecnologias?
Desde a posse do presidente Bush, as divergências entre os EUA e a Europa vêm sendo formuladas mais e mais claramente. Alguns países parecem sentir-se tentados a sempre priorizar os EUA em relação à própria Europa. Ao retomar a iniciativa, não deveriam os países mais ligados à existência da Europa -a Alemanha e a França-, e, portanto, os seis países da primeira comunidade, tomar consciência, hoje, da importância decisiva da criação de um Mercosul?
Os próprios europeus sofrem devido à ausência de um grande projeto geopolítico e devem, portanto, escolher a grande aliança com o Mercosul como seu projeto principal. Ao ajudar a Argentina a se reconstruir, hoje, tornamos possível ao Brasil conservar ou retomar uma liberdade de iniciativas e de escolhas que apenas ele pode exercer para o conjunto do continente e que, hoje, corre o grave risco de desaparecer.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (França) e autor de "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Clara Allain.


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