São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

Texto Anterior | Índice

MILLÔR

Mais difícil do que interpretar nossa situação econômica é interpretar uma interpetação econômica da nossa situação.

JÁ TEMOS ARQUEOLOGIA!

Todo país, à medida que avança, descobre-se, proporcionalmente, para trás. 0 nosso já adquiriu tanto domínio de sua história pregressa que hoje podemos mesmo nos considerar um país auto-suficiente em matéria de nostalgia. E agora então, depois de importantes achados arqueológicos, temos o direito de dizer­, orgulhosamente, que o Brasil, sem dúvida alguma, "tem um imenso passado pela frente".
0 fato é que, ultimamente, onde quer que se pise em nosso vasto território, surgem crânios antigos (1), velhos alfarrábios, objetos arcaicos. Um desses achados, o mais extraordinário de todos os tempos, veio provar que nosso sistema de governo, hoje considerado unanimemente por FhC o melhor do mundo, tem profundas raízes em nossa história (2).
Pedra gigantesca que bloqueava a construção de moderníssima rodovia por baixo do rio Amazonas, quando retirada, depois de partida por maquinaria de fabricação inteiramente nacional, mostrou, embaixo, um tesouro de telhas escritas, pasmem!, em escrita cuneiforme (3). A princípio os trabalhadores da estrada tentaram comer as telhas pensando se tratar de pão dormido (4), mas, interrompidos imediatamente pelos economistas presentes (5), as telhas (6) foram apropriadas e se revelaram documentos definitivos de nossa his­tória remota.
Acreditamos que somos os primeiros a publicar a essência desses incunábulos (7), embora, dada a linguagem forçosamente criptogramática dos textos, o façamos com nossos próprios termos. As telhas, aparentemente publicadas em capítulos semanais, contam a história do país naquele momen­to, mas já, percebe-se, com um olho na posteri­dade, pois certas explicações eram desnecessárias ao público da época. Os capítulos, assinados com um nome americano (8), descrevem o estágio político do Brasil aproximadamente no ano 18000 A.C., mostrando uma organização espantosamente atual.
O governo se processava em duas grandes cavernas, uma chamada Câmara do Absoluto, outra chamada Câmara do Compromisso. A primeira parece ter sido uma Instituição de Caridade para benefício de pessoas de alto ranking, incapacitadas de ganhar a vida. Já a Câmara do Compromisso era composta de representantes do Povo, substituídos de 20 em 20 anos por eles próprios. Cada município, parece, escolhia os piores criminosos da área e os sentenciava a 20 anos de trabalhos semi-forçados na dita Câmara. Se, ao fim do período, ainda estivesse vivo, sua periculosidade era considerada anulada e seu busto inaugurado em praça pública. A filosofia social por trás do esquema político tinha, sem dúvida, profunda sabedoria. Burlar a Lei, tanto do ponto de vista ativo como do ponto de vista passivo (9), era então a coisa que mais dava prestígio ao cidadão, sem falar em dinheiro e poder. Ora, como todas as leis eram invulgarmente ruins, o fato delas serem permanentemente burladas acabava por desmoralizá-las (10), estabelecendo vínculos fortíssimos entre os dirigentes canalhas e o povo cínico. Daí a exegese, sintetizada por um fi­lósofo social de então na frase que se tornou univer­sal e chegou até nós por outras vias: "Eu quero o meu".
Na prática a coisa funcionava assim: o Partido mais forte e bem armado (de tráfico de influência com pistolas, metralhadoras e basucas anti-tanque de uso exclusivo das forças armadas) tomava conta da reserva florestal sob a liderança do comandante do grupo, que, por saber mais do que os outros o valor dos dentes na caçada, preservava até longa idade seus in­cisivos, donde o nome totêmico que passava a usar, Présa-os-dentes, pouco a pouco corrompido em presidente. Os adversários, uma vez vencidos na luta que, tradicionalmente, deveria ser incruenta, isto é, sem derramamento de sangue, passavam a tecer loas incontidas aos vitoriosos, buscando "assimilá-los."
Quando o Présa-os-dentes FerQueCar já estava em sua quarta reeleição consecutiva houve, motivada por falta de energia, tremenda rebelião militar em região do nordeste, riquissíma em plantação de atabaques. Devido a essa falta de energia todo o sistema de transporte local, movido a música afro-brasileira, e conhecido como Trio Elétrico, parou subitamente. Foi nesse momento que o grande pajé Cabeça Branca, carinhosamente chamado de Mac, Cam, Mca, Amc ou Acm (sigla ainda não decodificada) iniciou a transformação... (que, infelizmente, não podemos contar porque uma das telhas devoradas pelos trabalhadores famintos era exatamente aquela em que se narrava o episódio.)

MORAL: É PRATICAMENTE IMPOSSÍVEL APRENDER COM A HISTÓRIA.
1) De crânios novos estamos em falta.
2) Tão profundas que estavam enterradas a mais de 20 metros.
3) Se me permitem o termo.
4) Já era alguma coisa.
5) Há sempre alguns em volta. Nunca deixe de olhar em baixo da cama, ao deitar.
6) Táboas silegéticas, o que é que isso queira dizer.
7) Telha é incunábulo?
8) Pos­sivelmente pseudônimo. Já dava prestígio.
9) Ha­via uma gíria chamada Lei-tinho. A escrita está quase ilegível. Seria jeitinho?
10) "Não colou", se diz hoje.

Texto Anterior: José Simão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.