São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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+ política

Tensão mal resolvida entre identidade cultural e identidade nacional leva Brasil a patinar na estagnação econômica

Macunaíma e Emília na terra do amanhã

Luiz Carlos Bresser-Pereira
especial para a Folha

O Brasil tem forte identidade cultural; possuirá também uma clara identidade nacional? E qual a relação desses dois conceitos com um terceiro -o de auto-estima-, que agora se transformou em tema de campanha publicitária? A visita recente de um amigo canadense e o debate sobre o tema com familiares e amigos me ajudaram a pensar sobre o assunto. Meu amigo canadense, Philippe Faucher, cientista político que conhece e ama o Brasil, afirma que a identidade é forte entre nós -que nossa língua comum, nossa raça mestiça, nossos imigrantes integrados, nossa arte barroca, nossas comidas típicas, a beleza de nossa natureza tropical, nossa música; tudo isso torna os brasileiros conscientes do que são. Já em seu país essa identidade seria muito mais esgarçada. Em compensação, respondo, no Canadá tem-se uma clara consciência de nação, já que ninguém tem dúvida de que é dever do governo defender o trabalho, o capital e o conhecimento nacionais, enquanto que, nós, brasileiros, estamos divididos, perdemos o conceito de interesse nacional. Esse diálogo mostra que existe a possibilidade de um país ter forte identidade cultural, mas fraca identidade nacional. Esse é o caso do Brasil. Ou uma fraca identidade cultural, mas uma forte identidade nacional, como o Canadá. Ou, ainda, fortes identidades cultural e nacional, como acontece com os Estados Unidos ou com a China. A identidade cultural está entranhada na sociedade, enquanto a identidade nacional é política -está relacionada com a capacidade de suas elites, mais do que de seu povo, terem um conceito de nação. A auto-estima reúne os dois conceitos. É também fenômeno cultural, mas varia mais no tempo, já que depende do êxito da nação em transformar em realidade os objetivos de desenvolvimento econômico e político -em assegurar maiores graus de bem-estar, liberdade e justiça. A nação é uma construção de todos os dias, disse Ernest Renan [filósofo francês, 1823-92]. É uma construção coletiva a partir de uma identidade nacional. Se a nação está realmente sendo construída, sua auto-estima será alta. A auto-estima dos brasileiros está baixa há muito tempo. Primeiramente porque, em 1964, perdemos a democracia; depois porque, a partir de 1980, ao mesmo tempo em que a recuperávamos, víamos nossa economia estancar -e a renda por habitante, que até então crescia de forma extraordinária, quase estagnar.

Projeto de nação
O estancamento da economia, que se originou no endividamento externo dos anos 70, ocorreu ao mesmo tempo em que a globalização se acelerava em todo mundo e as elites nacionais dos países em desenvolvimento eram objeto de poderosa onda ideológica globalista. Os países asiáticos, talvez porque sua identidade fosse mais forte do que a brasileira ou talvez porque sua experiência do imperialismo fosse mais recente, resistiram à nova verdade, e levaram adiante seu projeto de nação. Já a América Latina e o Brasil se deixaram invadir pela tese da via única -a afirmação de que não restava alternativa aos países em desenvolvimento senão adotar o modelo proposto por Washington e Nova York-, e o projeto de nação foi colocado entre parênteses. O Brasil teve um projeto de nação entre 1930 e 1960 porque, então, foi possível aos brasileiros, apesar de suas divisões, estabelecer um grande acordo político reunindo empresários, técnicos do Estado e trabalhadores. Reconhecidos os conflitos, a existência de uma solidariedade básica entre as classes é a condição da existência de uma nação. O regime militar representou retrocesso nesse acordo, na medida em que excluiu os trabalhadores do pacto político e acentuou o conflito social. Também porque levou uma grande parte da esquerda brasileira a elaborar uma idéia de dependência que negava a possibilidade de uma classe empresarial nacional -o que inviabilizava a própria idéia de nação.

Jeitinho e indignação
Mas o cosmopolitismo só tomou conta do Brasil e inviabilizou o desenvolvimento quando a crise dos anos 80 abriu as defesas brasileiras. O discurso globalista, pós-crise da dívida externa, segundo o qual os países em desenvolvimento não tinham mais recursos, devendo competir para obter poupança externa, invadiu o país e alienou as elites empresariais, governamentais e intelectuais.
Para lograrem os investimentos e financiamentos "necessários", era preciso obter "credibilidade" e, portanto, executar todas as recomendações vindas do Norte -particularmente uma política macroeconômica contrária aos interesses nacionais. Em conseqüência, apesar de todo o ajuste e de todas as reformas necessárias, o país manteve-se estagnado.
Diante da semi-estagnação, do desemprego, da falta de perspectivas, da emigração, a auto-estima dos brasileiros entrou em queda livre. A identidade cultural negativa do Brasil-Macunaíma, do Brasil-jeitinho, voltou a se impor sobre o Brasil indignado, mas otimista, de Castro Alves, Monteiro Lobato e Darcy Ribeiro.
Não há solução para esse problema? Nossas elites estão definitivamente alienadas? O globalismo é a expressão necessária da globalização, e não uma mera estratégia de dominação? Não existe outra via senão a de nos subordinarmos e contarmos com a solidariedade dos países ricos? Não creio. Não é apenas a contraprova asiática e a nossa experiência anterior de desenvolvimento nacional que rejeitam a falta de alternativa. É a própria força da identidade cultural, somada à dinâmica do desenvolvimento capitalista brasileiro, que afinal deverá prevalecer.
Afinal o Brasil pode às vezes ser o Macunaíma de Mário de Andrade, mas é muito mais a Emília de Monteiro Lobato.


Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outros, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (ed. 34).


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