São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Ponto de fuga

A intimidade do ar

Jorge Coli
especial para a Folha

Ele foi, a partir desse momento, meu verdadeiro mestre, e é a ele que eu devo a educação definitiva de meu olho. Eu o revi em Paris com muita freqüência. Minha pintura, preciso mesmo dizer?, ganhou muito com isso. Os progressos que fiz foram rápidos."
Quem afirma, de modo preciso, esse encontro essencial para sua formação é Claude Monet. O pintor que lhe permitiu "educar o olho" foi o holandês Johan Barthold Jongkind (1819-91). Uma exposição dedicada a ele partiu de Haia, foi para Colônia e apresenta-se em Paris, no museu d'Orsay, até o mês de setembro. Jongkind não está entre os nomes mais populares na história da pintura. Pior: quem já ouviu falar dele, na maioria das vezes, apenas pensa que o conhece. Jongkind, claro, precursor do impressionismo, pintor de marinhas, de barcos. Alguns, mais informados, lembrarão as vistas de Paris. Ocorre que nenhuma grande retrospectiva lhe havia sido consagrada, até agora. Era, assim, impossível ter uma idéia de quanto sua obra é inovadora, original, em que a beleza nasce de delicadas correspondências entre a atmosfera, a múltipla coleção de reflexos, a profundidade espantosa do espaço (luas lá no alto e lá no fundo, por trás dos mastros, por trás das casas, por trás das nuvens), mas ainda com a ação humana, que fabrica edifícios, barcos, pontes.
Jongkind vem da soberana tradição realista holandesa que eclodiu no século 17. Mas ele a atualiza, pela transparência rápida da pincelada, pelo tom que mescla, de modo único, um sentimento da lembrança um pouco irreal e a observação amorosa dos motivos.

Caminhos - Jongkind viveu, como Van Gogh, entre a Holanda e a França e, como Van Gogh depois dele, formou-se no meio da chamada "Escola de Haia", em que atuavam excelentes paisagistas. Embora os caminhos desses dois grandes artistas divirjam, certos quadros de Jongkind podem evocar algumas obras de Van Gogh, sobretudo aquelas de seu período holandês.
Jongkind é um pintor que afasta as espessuras untuosas da matéria assim como afasta qualquer sentimentalismo. Evita todo grande assunto, toda eloqüência. Em Paris, escolhe pontos de vista discretos, pequenas ruas, prédios em demolição.
Quando descobre a cidade, incorpora, um pouco, a visão de Corot, mais do que a de Isabey ou Bonington, com quem ele teve contato próximo. Logo, porém, é tomado "pela miragem do que vibra, ondula, circula e balança na atmosfera", como escreveu sobre ele Henri Focillon.
Tudo se agita e flui; as coisas mais sólidas, como a estrutura em madeira da ponte de l'Estacade conscienciosamente estudada num desenho preparatório, tendem a se dissolver na luz úmida, nos cinzas prateados, nos azuis tão ricos e tão transparentes que lembram ressonâncias harmônicas. Suas cenas noturnas e lunares são as mais românticas: os tons escuros, as pinceladas negras têm uma textura aveludada, com, aqui e ali, uma silhueta fantástica de campanário.

Inseto - A alameda, em jardim muito verde, está cheia de árvores fruteiras. Nela, há duas mulheres e há guirlandas de flores que vão de ramo em ramo, como ornando uma festa. No primeiro plano, um garotinho loiro, nu, carrega galhos muito floridos de malvas. No alto, como feita em folha de ouro e como colada sobre a superfície da tela, uma gigantesca libélula, preciosa e ameaçadora. Esse quadro, "O Estranho Jardim", de 1903, de dois metros por dois, é de Jósef Mehoffer, pintor polonês. Está reproduzido em todas as boas antologias sobre o simbolismo e volta com freqüência nas mostras sobre aquele movimento.

Incomum - Fora o quadro "O Estranho Jardim", a obra de Jósef Mehoffer (1869-1946) ficou confinada na Polônia. O museu d'Orsay, em Paris, vem, há vários anos, cumprindo um programa de mostras que revelam artistas vinculados ao século 19, importantes em seus países, porém menos conhecidos fora dessas fronteiras. Assim, até setembro, apresenta a exposição "Jósef Mehoffer - Um Pintor Simbolista Polonês". São telas preciosas, saturadas de cores, às vezes eróticas, cativantes sempre.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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