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Opção pelo romance epistolar para contar a história de uma paixão contrariada indica o desígnio dramático do autor
O solilóquio de Werther
FRANKLIN DE MATOS
especial para a Folha
Em outros tempos a experiência
de ler um romance foi tão importante que chegou a ser associada à
loucura ou à morte. Embora seja
uma figura singular, Dom Quixote é igualmente o emblema de algo que há muito fustigava a imaginação da literatura: o leitor ávido, que enlouquece de tanto ler
romances e perde desse modo o
poder de distinguir ficção e realidade. O exemplo é talvez inigualável, mas pode-se dizer que Madame Bovary repete a história do leitor manchego num registro mais
prosaico, porém quase trágico.
Não é com efeito porque leu romances em demasia que Emma se
desgosta do mundo que a cerca,
mergulha em outro e acaba afinal
precipitando-se na morte?
Que Dom Quixote e Madame
Bovary não sejam apenas personagens fictícias, prova-o outro
episódio da história do romance,
no qual a exaltação e a morte não
ficaram confinados ao domínio
da imaginação. Em 1774, publicou-se em Leipzig um pequeno
romance intitulado "Os Sofrimentos do Jovem Werther". A
obra contava a história de uma
paixão contrariada: perdidamente enamorado de Charlotte S...,
noiva e em seguida esposa de Albert, o herói caía num desespero
crescente e acabava estourando
os miolos no final.
Quando as autoridades deram
pela coisa e proibiram o livro, alegando apologia do suicídio, já era
muito tarde, pois o "Werther" se
tornara uma verdadeira mania.
Os rapazes passaram a se vestir
como o herói, de casaca preta,
chapéu cinza, colete e calça amarela, e as moças imitavam Lotte,
com vestido branco e laços cor-de-rosa nas mangas e corpete, tal
como Werther a vê no famoso
quadro que antecede a sequência
do baile. Leques, tabaqueiras ou
porcelanas começaram a estampar motivos wertherianos -por
exemplo, Lotte depositando flores sobre o túmulo do amante infeliz-, e surgiu até mesmo um
perfume ao qual se deu o nome de
"água de Werther" (1). Mais inacreditável, porém, é que alguns
leitores decidiram levar a devoção
a um assombroso extremo e contaram-se então vários suicídios,
"à maneira" de Werther.
O plano do "Werther"
Mas não é tudo. Há quem diga
que a redação do romance impedira o próprio autor -o jovem
poeta Johann Wolfgang Goethe,
que anos atrás experimentara um
idílio parecido- de antecipar-se
ao gesto desesperado de seu herói.
Goethe nascera em Frankfurt,
em 1749, formara-se em direito
em 1771 e, no ano seguinte, partira
para Wetzlar, onde estava instalada a Corte de Justiça Imperial. Lá
conhecera Charlotte Buff, notoriamente o modelo de Lotte, e seu
noivo Johann Christian Kestner,
que inspirou Albert, e vivera com
eles, entre junho e setembro, uma
espécie de relação triangular. Mas
a iminente nomeação de Kestner
como adido de embaixada, da
qual dependia seu casamento
com Charlotte, determinara Goethe a partir. Que o caso não tenha
sido insignificante, mostra-o
aquilo que escreveu anos mais
tarde em suas memórias: "Tomei
a decisão de me afastar voluntariamente, antes de ser escorraçado por um espetáculo que não teria podido suportar" (2).
Aqui já estava metade do plano
do "Werther", que afinal completou-se quando Goethe tomou conhecimento das circunstâncias da
morte de Karl Wilhelm Jerusalem, seu antigo colega em Leipzig
e então secretário de uma comissão na Corte de Wetzlar. Enamorado da esposa de um magistrado,
repelido com veemência, Jerusalem tomara de empréstimo a caixa de pistolas de Kestner -Werther fará o mesmo pedido a Albert- e dera cabo da vida em outubro de 1772. A morte de Jerusalem, escreverá Goethe, "arrancou-me ao meu sonho; e, como eu
abria os olhos para o que lhe tinha
acontecido assim como a mim,
(...) não pude deixar de derramar
na obra que empreendia nessa
ocasião toda a chama que não
permite nenhuma distinção entre
poesia e realidade" (3). Esse acontecimento talvez tenha feito Goethe compreender o risco que correra: não é de espantar que, ao
concluir o "Werther", ele tivesse
experimentado aquele alívio que
todo mundo sente "após uma
confissão geral".
Ao evocar essas circunstâncias,
não quero convidar o leitor a
apreciar o romance por intermédio de algo exterior a ele. A princípio, quero sugerir que a aderência
ao real e o fascínio pela mais estrita atualidade -que sempre estiveram no âmago de qualquer romance- não são fatores desprezíveis para explicar o "Werther"
como fenômeno sociológico. Mas
aquilo que pretendo mesmo é insistir para a forma atribuída por
Goethe àquela matéria, que de
resto tampouco elucida o enigma,
mas talvez nos leve a compreendê-lo um pouco melhor.
Um romance epistolar
Para contar a história da paixão
de Werther, Goethe recorreu à
fórmula do romance epistolar, gênero que desfrutava de enorme
prestígio no século 18. A escolha
deixa à vista desde logo o desígnio
dramático do autor, pois não há
forma romanesca mais próxima
do drama quanto a do romance
por cartas. Nele, como numa peça
de teatro, o autor se oculta em benefício de suas personagens
-um ou vários missivistas que
ganham o primeiro plano-, recuando para a posição de mero
editor das cartas e tomando a palavra em prefácios, advertências
ou notas. No "Werther", o "editor" se dirige ao leitor no prólogo,
dois enxutíssimos parágrafos que
não excedem dez linhas e, em seguida, deixa falar as cartas do protagonista, limitando-se a pontuá-las por meio de poucas e breves
notas de rodapé (apenas no desenlace, como se verá, o editor reassume privilégios mais efetivos como narrador).
A drástica redução da mediação
narrativa dá ao romance epistolar
uma temporalidade essencialmente dramática. Contrariamente à literatura memorialística, por
exemplo, que costuma jogar com
a distância entre o presente do
narrador e o passado remoto da
história, o romance por cartas
-que por vezes, como no "Werther", se confunde com o diário
íntimo- tende a identificar esses
dois planos. Os missivistas são
narradores mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, o que certamente aumenta a dramaticidade.
Contam a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos, registrando, dia a dia, a vida
de seus corações (por isso, Laclos
definia a carta como "retrato da
alma").
Nas "Reflexões" sobre as "Cartas Persas", Montesquieu atribuía
o sucesso do romance epistolar à
estrutura dramática do gênero e
já advertia para seus efeitos: "Essas espécies de romance ordinariamente obtêm êxito porque as
próprias personagens dão conta
de sua situação atual; o que faz
com que se sintam as paixões
mais do que em todas as narrações que se poderiam fazer sobre
elas". Como se vê, para esse rematado mestre da epístola, a maior
consequência da estrutura desse
gênero é suprimir as distâncias e
mergulhar o leitor nas paixões das
personagens. Em outras palavras,
Montesquieu sustenta que o romance epistolar é o mais apropriado para identificar o leitor,
convocado a participar da ação
com uma tensão parecida com a
do espectador teatral.
Forma monofônica
Goethe mobiliza todos esses recursos dramáticos no "Werther"
e, certamente para concentrar
ainda mais o interesse do leitor,
recorre à forma monofônica do
romance por cartas. Típica do século 18, sobretudo após a publicação da "Nouvelle Heloïse", de
Rousseau (1761), é a obra polifônica, na qual múltiplos correspondentes tomam a palavra, remetendo uns aos outros as cartas
que fazem progredir a ação -é o
caso ainda das "Cartas Persas"
(1721) e das "Ligações Perigosas",
de Laclos (1784), incomparável
obra-prima do gênero.
Quanto ao romance epistolar
monofônico -para ficar num
dos exemplos mais célebres, lembremos as "Cartas Portuguesas"
(1669)-, um só missivista escreve em geral para o mesmo destinatário que, no caso de receber as
cartas, reage e mantém a correspondência, sem que tenhamos
acesso a suas respostas. Neste caso, estamos diante de "um duo do
qual não ouvimos senão uma
voz" (4): é precisamente o que
ocorre no "Werther", em que o
protagonista escreve quase sempre para Wilhelm, um amigo distante, cujas respostas só conhecemos obliquamente, por meio dos
traços que deixam nas cartas de
Werther.
Embora seja uma figura artificial, que com o tempo o romance
epistolar aprendeu a evitar -o
"destinatário estranho à ação e inventado apenas para as necessidades da confidência" (5)-, Wilhelm tem a vantagem de prevenir
uma eventual objeção do leitor,
com a qual o gênero sempre esteve às voltas: de que modo as cartas
do protagonista teriam chegado
às mãos do editor? No caso, a resposta é simples: por intermédio
de Wilhelm, destinatário de quase
todas elas (há três exceções, que
não ameaçam a verossimilhança
nesse ponto: duas cartas, uma enviada apenas a Charlotte, e outra a
ela e a Albert, na segunda parte, e,
ainda na primeira, um bilhete a
Charlotte, aliás dispensável e talvez inverossímil).
Além de fazer o interesse recair
sobre Werther, Goethe se preocupa em concentrar o tempo, o espaço e a ação, à maneira dos dramaturgos. O tempo do romance é
bastante breve: as cartas são escritas entre 4 de maio de 1771 e as
vésperas do Natal de 1772, sendo
que as mais decisivas estão agrupadas em dois grandes blocos: junho/setembro de 71 e agosto/dezembro do ano seguinte.
O espaço por sua vez é quase
único -a cidadezinha cujo nome
é omitido pelo editor-, não fosse
a partida de Werther, que se desloca por vários lugares no início
do "Livro 2º". Mais decisivo, porém, é o tratamento que se dá à
ação, de espantosa unidade e simplicidade. É como se Goethe acatasse os preceitos de Racine no
prefácio de "Britannicus": partir
de uma ação simples, carregada
de pouca matéria, tomada o mais
perto possível de seu desenlace, e
conduzir o espectador, mediante
a esperança e o temor, para a catástrofe (6).
A fim de tomar posse de uma
herança, Werther instala-se numa pequena cidade, de onde
passa a escrever para Wilhelm.
Desde logo, sente calorosa afeição pela gente simples do lugar
e mergulha num sentimento de
comunhão com a natureza. Numa festa campestre, conhece
Charlotte S..., filha do intendente da vila, e enamora-se dela.
Passa a vê-la amiúde, e sua paixão torna-se cada vez mais intensa. É então que regressa de
viagem Albert, para quem estava prometida Charlotte. Werther logo se torna amigo dele e,
sob sua discreta vigilância, continua a frequentar Lotte (7). Entretanto, roído pelo ciúme,
Werther parte sem dizer adeus.
Durante algum tempo, põe-se
a serviço de um embaixador em
D..., mas logo desentende-se
com ele e a nobreza do lugar.
Pede demissão, parte para o
castelo de caça do Príncipe ***,
a caminho do qual visita sua aldeia natal. Uma nova decisão
repentina leva-o de volta para
Charlotte, agora já esposa de Albert. As cartas de Werther, nas
quais se adensam os motivos
que antecipam a catástrofe,
mostram o progresso fatal de
seu desespero.
Na primeira parte, a trama é
elaborada com espantosa economia; na segunda, pouco
avança: em vez de desatar o nó,
Goethe deixa a intriga, por assim dizer, cristalizada. Na última -na qual o editor assume a
narração, nela intercalando cartas e bilhetes do protagonista-
, a ação progride vertiginosamente para o desenlace, que é
um grande achado de poeta trágico. A pedido de Werther, que
parte em suposta viagem, um
criado vem tomar emprestadas
as pistolas de Albert. Albert pede à mulher que entregue as armas ao mensageiro e a este que
transmita ao amo seus votos de
boa viagem. A essas palavras,
Charlotte estremece e hesita; Albert a olha interrogativamente.
Ela acaba de compreender quase tudo, mas se recusa a formular por inteiro seu pensamento,
receosa de revelar ao marido
aquilo que descobrira em definitivo na noite anterior: seu
amor por Werther. Trêmula,
Charlotte entrega as pistolas ao
criado.
Poucas vezes se viu tão notável destreza em lidar com as faces lírica e narrativa do gênero
epistolar. No "Livro 1º", que
mostra a origem e o crescimento da paixão de Werther, existe
um notório equilíbrio entre os
pólos. Em seguida, o "Livro 2º"
se detém no desespero do herói,
que ao se afastar tentara em vão
desatar o nó: o equilíbrio se
rompe assim em favor do lirismo. Já no desenlace, quando os
eventos se precipitam, Goethe
privilegia o filão narrativo, trazendo porém para o primeiro
plano a figura até então discreta
do editor. Ao proceder assim,
contorna uma conhecida dificuldade do gênero, cuja verossimilhança sempre esteve ameaçada por uma objeção: como
podem as personagens viver
tantos acontecimentos e, ao
mesmo tempo, escrever tão detidamente sobre eles?
Como se sabe, Goethe foi um
consumado mestre da arte teatral, autor de várias peças decisivas, como o "Fausto" e o drama
medieval "Götz von Berlichingen", este, aliás, composto ao
mesmo tempo que o "Werther". Não é de espantar, pois,
que, ao escrever o romance, recorresse tão largamente às técnicas dessa arte hipnótica por
tradição. Sem sombra de dúvida, é devido ao uso dessas técnicas que o "Werther", contrariamente a seus modelos ingleses
ou franceses, é tão enxuto
-traço do qual depende em
grande parte sua força, tanto no
passado quanto ainda hoje.
"Werther" e "Götz" logo alcançaram muito êxito, mas não
custa lembrar que nem todos
apreciavam o que escrevia Goethe. O imperador Frederico 2º,
que gostava de opor o amor da
pátria ao cosmopolitismo de alguns filósofos, em matéria de literatura preferia entretanto os
clássicos antigos e os franceses.
Quanto aos alemães, perguntava, o que se pode esperar por
enquanto de um povo que nem
sequer uma língua possui? E
respondia: obras como "Götz
von Berlichingen", calcadas em
Shakespeare, cujas tragédias
não passam de "farsas ridículas,
dignas dos selvagens do Canadá" (8). É fácil imaginar o que
esse rei voltairiano diria do
"Werther", que seu autor escrevera com os olhos voltados para
Rousseau. O que ele ignorava é
que, desde Lessing, os jovens escritores alemães andavam em
busca de outros modelos, não
para imitá-los servilmente, mas
para emancipar-se.
Notas:
1. Ver o prefácio de Pierre Bertaux a
"Les Souffrances du Jeune Werther",
Paris, Gallimard, 1973 (tradução de
Bernard Groethuysen).
2.Goethe. "Memórias - Poesia e Verdade", Brasília, Ed. da UnB/Hucitec, 1985,
Tomo 2º, pág. 420.
3. Idem, ibidem, pág. 443.
4. Rosset, Jean. "Narcisse Romancier",
Paris, Nizet, 1974, pág. 78.
5. Versini, Laurent. "Le Roman Epistolaire", Paris, PUF, 1979, pág. 72.
6. A idéia é de Jacques Chouillet, que a
aplica ao romance "A Religiosa", de Diderot. Ver "La Formation des Idées Esthétiques de Diderot", Paris, Armand
Colin, 1973, pág. 499.
7. O trio evoca fatalmente Saint-Preux,
Julie e Wolmar, personagens de "La
Nouvelle Heloïse", que anos antes alcançara êxito parecido.
8. Citado por Paul Hazard em "La Pensée Européenne au 18e. Siècle", Paris,
Fayard, 1979, pág. 447.
Franklin de Matos é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Filosofia e Literatura no Século 18" (Iluminuras, a ser publicado).
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