São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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Opção pelo romance epistolar para contar a história de uma paixão contrariada indica o desígnio dramático do autor
O solilóquio de Werther

FRANKLIN DE MATOS
especial para a Folha

Em outros tempos a experiência de ler um romance foi tão importante que chegou a ser associada à loucura ou à morte. Embora seja uma figura singular, Dom Quixote é igualmente o emblema de algo que há muito fustigava a imaginação da literatura: o leitor ávido, que enlouquece de tanto ler romances e perde desse modo o poder de distinguir ficção e realidade. O exemplo é talvez inigualável, mas pode-se dizer que Madame Bovary repete a história do leitor manchego num registro mais prosaico, porém quase trágico. Não é com efeito porque leu romances em demasia que Emma se desgosta do mundo que a cerca, mergulha em outro e acaba afinal precipitando-se na morte?
Que Dom Quixote e Madame Bovary não sejam apenas personagens fictícias, prova-o outro episódio da história do romance, no qual a exaltação e a morte não ficaram confinados ao domínio da imaginação. Em 1774, publicou-se em Leipzig um pequeno romance intitulado "Os Sofrimentos do Jovem Werther". A obra contava a história de uma paixão contrariada: perdidamente enamorado de Charlotte S..., noiva e em seguida esposa de Albert, o herói caía num desespero crescente e acabava estourando os miolos no final.
Quando as autoridades deram pela coisa e proibiram o livro, alegando apologia do suicídio, já era muito tarde, pois o "Werther" se tornara uma verdadeira mania. Os rapazes passaram a se vestir como o herói, de casaca preta, chapéu cinza, colete e calça amarela, e as moças imitavam Lotte, com vestido branco e laços cor-de-rosa nas mangas e corpete, tal como Werther a vê no famoso quadro que antecede a sequência do baile. Leques, tabaqueiras ou porcelanas começaram a estampar motivos wertherianos -por exemplo, Lotte depositando flores sobre o túmulo do amante infeliz-, e surgiu até mesmo um perfume ao qual se deu o nome de "água de Werther" (1). Mais inacreditável, porém, é que alguns leitores decidiram levar a devoção a um assombroso extremo e contaram-se então vários suicídios, "à maneira" de Werther.

O plano do "Werther"
Mas não é tudo. Há quem diga que a redação do romance impedira o próprio autor -o jovem poeta Johann Wolfgang Goethe, que anos atrás experimentara um idílio parecido- de antecipar-se ao gesto desesperado de seu herói.
Goethe nascera em Frankfurt, em 1749, formara-se em direito em 1771 e, no ano seguinte, partira para Wetzlar, onde estava instalada a Corte de Justiça Imperial. Lá conhecera Charlotte Buff, notoriamente o modelo de Lotte, e seu noivo Johann Christian Kestner, que inspirou Albert, e vivera com eles, entre junho e setembro, uma espécie de relação triangular. Mas a iminente nomeação de Kestner como adido de embaixada, da qual dependia seu casamento com Charlotte, determinara Goethe a partir. Que o caso não tenha sido insignificante, mostra-o aquilo que escreveu anos mais tarde em suas memórias: "Tomei a decisão de me afastar voluntariamente, antes de ser escorraçado por um espetáculo que não teria podido suportar" (2).
Aqui já estava metade do plano do "Werther", que afinal completou-se quando Goethe tomou conhecimento das circunstâncias da morte de Karl Wilhelm Jerusalem, seu antigo colega em Leipzig e então secretário de uma comissão na Corte de Wetzlar. Enamorado da esposa de um magistrado, repelido com veemência, Jerusalem tomara de empréstimo a caixa de pistolas de Kestner -Werther fará o mesmo pedido a Albert- e dera cabo da vida em outubro de 1772. A morte de Jerusalem, escreverá Goethe, "arrancou-me ao meu sonho; e, como eu abria os olhos para o que lhe tinha acontecido assim como a mim, (...) não pude deixar de derramar na obra que empreendia nessa ocasião toda a chama que não permite nenhuma distinção entre poesia e realidade" (3). Esse acontecimento talvez tenha feito Goethe compreender o risco que correra: não é de espantar que, ao concluir o "Werther", ele tivesse experimentado aquele alívio que todo mundo sente "após uma confissão geral".
Ao evocar essas circunstâncias, não quero convidar o leitor a apreciar o romance por intermédio de algo exterior a ele. A princípio, quero sugerir que a aderência ao real e o fascínio pela mais estrita atualidade -que sempre estiveram no âmago de qualquer romance- não são fatores desprezíveis para explicar o "Werther" como fenômeno sociológico. Mas aquilo que pretendo mesmo é insistir para a forma atribuída por Goethe àquela matéria, que de resto tampouco elucida o enigma, mas talvez nos leve a compreendê-lo um pouco melhor.

Um romance epistolar
Para contar a história da paixão de Werther, Goethe recorreu à fórmula do romance epistolar, gênero que desfrutava de enorme prestígio no século 18. A escolha deixa à vista desde logo o desígnio dramático do autor, pois não há forma romanesca mais próxima do drama quanto a do romance por cartas. Nele, como numa peça de teatro, o autor se oculta em benefício de suas personagens -um ou vários missivistas que ganham o primeiro plano-, recuando para a posição de mero editor das cartas e tomando a palavra em prefácios, advertências ou notas. No "Werther", o "editor" se dirige ao leitor no prólogo, dois enxutíssimos parágrafos que não excedem dez linhas e, em seguida, deixa falar as cartas do protagonista, limitando-se a pontuá-las por meio de poucas e breves notas de rodapé (apenas no desenlace, como se verá, o editor reassume privilégios mais efetivos como narrador).
A drástica redução da mediação narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática. Contrariamente à literatura memorialística, por exemplo, que costuma jogar com a distância entre o presente do narrador e o passado remoto da história, o romance por cartas -que por vezes, como no "Werther", se confunde com o diário íntimo- tende a identificar esses dois planos. Os missivistas são narradores mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, o que certamente aumenta a dramaticidade. Contam a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos, registrando, dia a dia, a vida de seus corações (por isso, Laclos definia a carta como "retrato da alma").
Nas "Reflexões" sobre as "Cartas Persas", Montesquieu atribuía o sucesso do romance epistolar à estrutura dramática do gênero e já advertia para seus efeitos: "Essas espécies de romance ordinariamente obtêm êxito porque as próprias personagens dão conta de sua situação atual; o que faz com que se sintam as paixões mais do que em todas as narrações que se poderiam fazer sobre elas". Como se vê, para esse rematado mestre da epístola, a maior consequência da estrutura desse gênero é suprimir as distâncias e mergulhar o leitor nas paixões das personagens. Em outras palavras, Montesquieu sustenta que o romance epistolar é o mais apropriado para identificar o leitor, convocado a participar da ação com uma tensão parecida com a do espectador teatral.

Forma monofônica
Goethe mobiliza todos esses recursos dramáticos no "Werther" e, certamente para concentrar ainda mais o interesse do leitor, recorre à forma monofônica do romance por cartas. Típica do século 18, sobretudo após a publicação da "Nouvelle Heloïse", de Rousseau (1761), é a obra polifônica, na qual múltiplos correspondentes tomam a palavra, remetendo uns aos outros as cartas que fazem progredir a ação -é o caso ainda das "Cartas Persas" (1721) e das "Ligações Perigosas", de Laclos (1784), incomparável obra-prima do gênero.
Quanto ao romance epistolar monofônico -para ficar num dos exemplos mais célebres, lembremos as "Cartas Portuguesas" (1669)-, um só missivista escreve em geral para o mesmo destinatário que, no caso de receber as cartas, reage e mantém a correspondência, sem que tenhamos acesso a suas respostas. Neste caso, estamos diante de "um duo do qual não ouvimos senão uma voz" (4): é precisamente o que ocorre no "Werther", em que o protagonista escreve quase sempre para Wilhelm, um amigo distante, cujas respostas só conhecemos obliquamente, por meio dos traços que deixam nas cartas de Werther.
Embora seja uma figura artificial, que com o tempo o romance epistolar aprendeu a evitar -o "destinatário estranho à ação e inventado apenas para as necessidades da confidência" (5)-, Wilhelm tem a vantagem de prevenir uma eventual objeção do leitor, com a qual o gênero sempre esteve às voltas: de que modo as cartas do protagonista teriam chegado às mãos do editor? No caso, a resposta é simples: por intermédio de Wilhelm, destinatário de quase todas elas (há três exceções, que não ameaçam a verossimilhança nesse ponto: duas cartas, uma enviada apenas a Charlotte, e outra a ela e a Albert, na segunda parte, e, ainda na primeira, um bilhete a Charlotte, aliás dispensável e talvez inverossímil).
Além de fazer o interesse recair sobre Werther, Goethe se preocupa em concentrar o tempo, o espaço e a ação, à maneira dos dramaturgos. O tempo do romance é bastante breve: as cartas são escritas entre 4 de maio de 1771 e as vésperas do Natal de 1772, sendo que as mais decisivas estão agrupadas em dois grandes blocos: junho/setembro de 71 e agosto/dezembro do ano seguinte.
O espaço por sua vez é quase único -a cidadezinha cujo nome é omitido pelo editor-, não fosse a partida de Werther, que se desloca por vários lugares no início do "Livro 2º". Mais decisivo, porém, é o tratamento que se dá à ação, de espantosa unidade e simplicidade. É como se Goethe acatasse os preceitos de Racine no prefácio de "Britannicus": partir de uma ação simples, carregada de pouca matéria, tomada o mais perto possível de seu desenlace, e conduzir o espectador, mediante a esperança e o temor, para a catástrofe (6).

A fim de tomar posse de uma herança, Werther instala-se numa pequena cidade, de onde passa a escrever para Wilhelm. Desde logo, sente calorosa afeição pela gente simples do lugar e mergulha num sentimento de comunhão com a natureza. Numa festa campestre, conhece Charlotte S..., filha do intendente da vila, e enamora-se dela. Passa a vê-la amiúde, e sua paixão torna-se cada vez mais intensa. É então que regressa de viagem Albert, para quem estava prometida Charlotte. Werther logo se torna amigo dele e, sob sua discreta vigilância, continua a frequentar Lotte (7). Entretanto, roído pelo ciúme, Werther parte sem dizer adeus.
Durante algum tempo, põe-se a serviço de um embaixador em D..., mas logo desentende-se com ele e a nobreza do lugar. Pede demissão, parte para o castelo de caça do Príncipe ***, a caminho do qual visita sua aldeia natal. Uma nova decisão repentina leva-o de volta para Charlotte, agora já esposa de Albert. As cartas de Werther, nas quais se adensam os motivos que antecipam a catástrofe, mostram o progresso fatal de seu desespero.
Na primeira parte, a trama é elaborada com espantosa economia; na segunda, pouco avança: em vez de desatar o nó, Goethe deixa a intriga, por assim dizer, cristalizada. Na última -na qual o editor assume a narração, nela intercalando cartas e bilhetes do protagonista- , a ação progride vertiginosamente para o desenlace, que é um grande achado de poeta trágico. A pedido de Werther, que parte em suposta viagem, um criado vem tomar emprestadas as pistolas de Albert. Albert pede à mulher que entregue as armas ao mensageiro e a este que transmita ao amo seus votos de boa viagem. A essas palavras, Charlotte estremece e hesita; Albert a olha interrogativamente. Ela acaba de compreender quase tudo, mas se recusa a formular por inteiro seu pensamento, receosa de revelar ao marido aquilo que descobrira em definitivo na noite anterior: seu amor por Werther. Trêmula, Charlotte entrega as pistolas ao criado.
Poucas vezes se viu tão notável destreza em lidar com as faces lírica e narrativa do gênero epistolar. No "Livro 1º", que mostra a origem e o crescimento da paixão de Werther, existe um notório equilíbrio entre os pólos. Em seguida, o "Livro 2º" se detém no desespero do herói, que ao se afastar tentara em vão desatar o nó: o equilíbrio se rompe assim em favor do lirismo. Já no desenlace, quando os eventos se precipitam, Goethe privilegia o filão narrativo, trazendo porém para o primeiro plano a figura até então discreta do editor. Ao proceder assim, contorna uma conhecida dificuldade do gênero, cuja verossimilhança sempre esteve ameaçada por uma objeção: como podem as personagens viver tantos acontecimentos e, ao mesmo tempo, escrever tão detidamente sobre eles?
Como se sabe, Goethe foi um consumado mestre da arte teatral, autor de várias peças decisivas, como o "Fausto" e o drama medieval "Götz von Berlichingen", este, aliás, composto ao mesmo tempo que o "Werther". Não é de espantar, pois, que, ao escrever o romance, recorresse tão largamente às técnicas dessa arte hipnótica por tradição. Sem sombra de dúvida, é devido ao uso dessas técnicas que o "Werther", contrariamente a seus modelos ingleses ou franceses, é tão enxuto -traço do qual depende em grande parte sua força, tanto no passado quanto ainda hoje.
"Werther" e "Götz" logo alcançaram muito êxito, mas não custa lembrar que nem todos apreciavam o que escrevia Goethe. O imperador Frederico 2º, que gostava de opor o amor da pátria ao cosmopolitismo de alguns filósofos, em matéria de literatura preferia entretanto os clássicos antigos e os franceses. Quanto aos alemães, perguntava, o que se pode esperar por enquanto de um povo que nem sequer uma língua possui? E respondia: obras como "Götz von Berlichingen", calcadas em Shakespeare, cujas tragédias não passam de "farsas ridículas, dignas dos selvagens do Canadá" (8). É fácil imaginar o que esse rei voltairiano diria do "Werther", que seu autor escrevera com os olhos voltados para Rousseau. O que ele ignorava é que, desde Lessing, os jovens escritores alemães andavam em busca de outros modelos, não para imitá-los servilmente, mas para emancipar-se.

Notas:
1. Ver o prefácio de Pierre Bertaux a "Les Souffrances du Jeune Werther", Paris, Gallimard, 1973 (tradução de Bernard Groethuysen).
2.Goethe. "Memórias - Poesia e Verdade", Brasília, Ed. da UnB/Hucitec, 1985, Tomo 2º, pág. 420.
3. Idem, ibidem, pág. 443.
4. Rosset, Jean. "Narcisse Romancier", Paris, Nizet, 1974, pág. 78.
5. Versini, Laurent. "Le Roman Epistolaire", Paris, PUF, 1979, pág. 72.
6. A idéia é de Jacques Chouillet, que a aplica ao romance "A Religiosa", de Diderot. Ver "La Formation des Idées Esthétiques de Diderot", Paris, Armand Colin, 1973, pág. 499.
7. O trio evoca fatalmente Saint-Preux, Julie e Wolmar, personagens de "La Nouvelle Heloïse", que anos antes alcançara êxito parecido.
8. Citado por Paul Hazard em "La Pensée Européenne au 18e. Siècle", Paris, Fayard, 1979, pág. 447.


Franklin de Matos é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "O Filósofo e o Comediante - Ensaios sobre Filosofia e Literatura no Século 18" (Iluminuras, a ser publicado).

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