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Relação de Goethe com os autores que o sucederam foi às vezes conflituosa
MÁRCIO SUZUKI
especial para a Folha
Goethe foi o Espinosa da poesia.
Heinrich Heine
No 16º livro de "Poesia e Verdade", Goethe fala do sentimento de
paz e tranquilidade que lhe proporcionava a leitura dos escritos
de Espinosa. Com o autor da "Ética" diz ter aprendido algo que lhe
serviu por toda a vida, pois ele não
só lhe revelou o modo de proceder da natureza, como também o
da própria criação poética: arte e
natureza seriam produtos análogos de um mesmo fenômeno primordial, de uma mesma necessidade inexorável, que não se pauta
pelos desígnios dos homens, nem
depende da vontade e do arbítrio
humano para se manifestar.
Depois de falar sobre a descoberta de Espinosa na juventude,
Goethe procura mostrar como a
visão espinosana da natureza encontrava confirmação na própria
forma de gestação de suas poesias. Ele conta que várias vezes
acordara à noite dizendo em voz
alta alguma canção que lhe vinha
como que espontaneamente ao
espírito, que "irrompia sem mandar aviso prévio". Não podendo
depois reconstituir a canção,
criou então o hábito de correr até
a escrivaninha e, sem ter nem
mesmo tempo de arrumar direito
o papel e sem mudar sequer de
posição, escrevia o poema do início ao fim. Nessas ocasiões, passou inclusive a utilizar o lápis,
pois às vezes o ranger da pena e o
salpicar da tinta acabavam por
despertá-lo de seu "sonambulismo poético".
O poema que se insinua por inteiro em sonho não é, naturalmente, uma prerrogativa goethiana. Peculiar a ele é, no entanto, a
maneira quase simplista de explicar o processo criativo. A produção artística não foge à lógica inapelável que rege o curso do universo: "A natureza atua por leis
eternas, necessárias e de tal modo
divinas, que a divindade mesma
nada poderia mudar nelas. Todos
os homens estão, inconscientemente, em pleno acordo sobre isso".
Ainda que imaginem agir por
vontade própria, na arte os homens se limitam a obedecer inconscientemente às leis eternas da
natureza, leis que, como afirma a
passagem, nem mesmo um poder
divino pode modificar. Essa última observação é importante, pois
indica como Goethe concebeu o
fatalismo, que nele não redundou
em paralisia, mas, ao contrário,
numa junção particular de panteísmo e paganismo, era pensado
como um dos principais fatores
de emulação para o artista. Se
nem mesmo os deuses escapam
às leis eternas da Natureza, se
nem eles mesmos podem se furtar
ao Destino, homens e deuses se
encontram em pé de igualdade
diante dessa força maior que
igualmente os supera. Eis aí, em
termos bem sucintos, o modo como o pré-romantismo alemão
também se apropriou de alguns
elementos da tragédia antiga.
É verdade que boa parte dessas
formulações já se encontra em
Shaftesbury, filósofo britânico
que, desse ponto de vista, é possivelmente a maior fonte de inspiração de Herder e Goethe, os
principais teóricos do pré-romantismo. Para o conde de Shaftesbury, não havendo, de acordo
com Espinosa, possibilidade de
criação do mundo por uma causa
extrínseca a ele, a diferença que
separa o criador do universo e o
criador de coisas particulares é
uma mera diferença de grau. Ou
como diz uma passagem muito
divulgada do seu "Solilóquio": o
artista é uma "natureza plástica
universal", capaz de produzir sozinho uma totalidade orgânica, e
por isso pode ser considerado
"um segundo criador ("a second
maker'), um verdadeiro Prometeu abaixo de Júpiter".
Como é sabido, na juventude
Goethe começou a escrever um
drama intitulado "Prometeu", no
qual exprime idéias muito parecidas. Ali, o protagonista, ligando-se a Minerva, desafia o poder de
Júpiter e se pretende capaz de
criar obras de arte que são imagens vivas dos seres humanos. A
força de Prometeu e a do deus supremo se igualam, pois um e outro são impotentes diante do poder mais alto: "É do Destino, não
dos deuses/ Conceder e tirar a vida" ("Ato 1", versos 198-9). O poema não foi concluído, nem a parte
escrita chegou a ser publicada,
mas por um episódio envolvendo
duas personagens de destaque na
época se pode imaginar que consequências a sua publicação poderia ter para o autor. Foi um manuscrito desse fragmento dramático que revelou ao filósofo Jacobi
a verdadeira religião de Lessing,
dando ensejo à "querela do panteísmo" na Alemanha.
Goethe sempre foi muito cauteloso nessa questão, mantendo-se
a uma distância verdadeiramente
olímpica de tudo o que pudesse
causar escândalo -e nem sempre se mostrou muito aberto aos
jovens que queriam seguir o caminho aberto por ele. É o caso,
por exemplo, de Hölderlin (leia
abaixo). Numa carta a Schiller,
Goethe afirma ter dúvidas sobre
se o jovem poeta compreendeu o
verdadeiro sentido da "natureza".
Uma reformulação interessante, uma radicalização do panteísmo de Goethe, uma revisão, por
assim dizer, de sua assimilação ao
mito prometéico se deve a outro
iniciado nos mistérios, Heinrich
Heine. Para Heine, poeta de uma
geração posterior, era enfim chegada a hora de dizer a verdade que
até então se guardava de maneira
mais ou menos velada. Quem foi,
afinal, Johann Wolfgang Goethe?
A resposta de Heine (leia texto
ao lado) tem, antes de mais nada,
um aspecto polêmico. Goethe representa para ele um ponto estratégico na luta contra a hegemonia
do romantismo católico na Alemanha e na França. Diferentemente das feições taciturnas e da
atitude submissa com que Heine
pinta os românticos, Goethe é rigorosamente descrito por ele segundo o padrão clássico da nobre
simplicidade e serena grandeza
que Winckelmann atribuía às esculturas gregas. O importante, como se pode facilmente perceber, é
marcar o antagonismo entre duas
formas de conceber o mundo, entre duas concepções religiosas,
em suma, entre duas mitologias
distintas.
Para Heine, que nisso divergiria
de seu amigo "impenitente",
Marx, a luta entre a nova e a velha
ordem social só pode se exprimir
na forma do conflito mitológico.
Para ele, somente mediante o
confronto entre duas visões mitológicas se pode revelar a contradição real, a diferença ideológica
entre os adversários. Não importa
se em Heine a compreensão disso
se deve ao Idealismo Alemão ou
aos hegelianos de esquerda: o fundamental aqui é que, segundo ele,
esse antagonismo não é apenas
uma idéia abstrata, mas uma contradição que foi vivida concretamente pelo autor do "Fausto".
Goethe não é apenas Prometeu,
nem apenas o "grande pagão"
(nome que se dava a ele na época),
mas também o pagão que conheceu e superou o cristianismo por
dentro (1). É assim que se poderia
entender a enigmática epígrafe
que escolheu como mote da última parte de "Poesia e Verdade":
"Nemo contra deum nisi deus ipse" (Ninguém [pode" contra [um"
deus, a não ser [um" deus mesmo).
Goethe tinha razão: os próprios
deuses estão sujeitos ao Destino e
também terão, portanto, o seu
crepúsculo. "Les dieux s'en vont",
dirá Heine, num misto de saudosismo e ironia, mas onde também
se podem perceber sinais de esperança, já que em sua visão histórica foi necessário ter havido um
deus em Weimar para que outros
pudessem futuramente surgir
-outros, sem dúvida, bem mais
prosaicos e bem menos aristocráticos que aquele. Mesmo já convertido e tendo trocado de partido, Heine continuou pensando
segundo essa lógica do embate
mítico. É o que se pode observar
quando se refere, em tom de censura, a seus ex-aliados Ruge,
Feuerbach, Daumer, Bruno Bauer
e Marx, tratando-os de "ímpios
deuses de si mesmos" ("gottlose
Selbstgötter").
Os deuses se vão, serão precipitados no Tártaro da história, porque outros devem entrar em cena.
Se é assim, talvez se possa então
fazer uma última pergunta: no
modo como Heine caracteriza
Goethe, este já não teria preparado o terreno também para Nietzsche?
Nota:
1. É o que se pode ler na "Contribuição à
História da Religião e Filosofia na Alemanha"; tradução brasileira, Editora Iluminuras, 1981, pág. 109.
Márcio Suzuki é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "O Gênio Romântico - Crítica e História da Filosofia em
Friedrich Schlegel" (Iluminuras).
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