São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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Relação de Goethe com os autores que o sucederam foi às vezes conflituosa

MÁRCIO SUZUKI
especial para a Folha

 Goethe foi o Espinosa da poesia.
Heinrich Heine

No 16º livro de "Poesia e Verdade", Goethe fala do sentimento de paz e tranquilidade que lhe proporcionava a leitura dos escritos de Espinosa. Com o autor da "Ética" diz ter aprendido algo que lhe serviu por toda a vida, pois ele não só lhe revelou o modo de proceder da natureza, como também o da própria criação poética: arte e natureza seriam produtos análogos de um mesmo fenômeno primordial, de uma mesma necessidade inexorável, que não se pauta pelos desígnios dos homens, nem depende da vontade e do arbítrio humano para se manifestar.
Depois de falar sobre a descoberta de Espinosa na juventude, Goethe procura mostrar como a visão espinosana da natureza encontrava confirmação na própria forma de gestação de suas poesias. Ele conta que várias vezes acordara à noite dizendo em voz alta alguma canção que lhe vinha como que espontaneamente ao espírito, que "irrompia sem mandar aviso prévio". Não podendo depois reconstituir a canção, criou então o hábito de correr até a escrivaninha e, sem ter nem mesmo tempo de arrumar direito o papel e sem mudar sequer de posição, escrevia o poema do início ao fim. Nessas ocasiões, passou inclusive a utilizar o lápis, pois às vezes o ranger da pena e o salpicar da tinta acabavam por despertá-lo de seu "sonambulismo poético".
O poema que se insinua por inteiro em sonho não é, naturalmente, uma prerrogativa goethiana. Peculiar a ele é, no entanto, a maneira quase simplista de explicar o processo criativo. A produção artística não foge à lógica inapelável que rege o curso do universo: "A natureza atua por leis eternas, necessárias e de tal modo divinas, que a divindade mesma nada poderia mudar nelas. Todos os homens estão, inconscientemente, em pleno acordo sobre isso".
Ainda que imaginem agir por vontade própria, na arte os homens se limitam a obedecer inconscientemente às leis eternas da natureza, leis que, como afirma a passagem, nem mesmo um poder divino pode modificar. Essa última observação é importante, pois indica como Goethe concebeu o fatalismo, que nele não redundou em paralisia, mas, ao contrário, numa junção particular de panteísmo e paganismo, era pensado como um dos principais fatores de emulação para o artista. Se nem mesmo os deuses escapam às leis eternas da Natureza, se nem eles mesmos podem se furtar ao Destino, homens e deuses se encontram em pé de igualdade diante dessa força maior que igualmente os supera. Eis aí, em termos bem sucintos, o modo como o pré-romantismo alemão também se apropriou de alguns elementos da tragédia antiga.
É verdade que boa parte dessas formulações já se encontra em Shaftesbury, filósofo britânico que, desse ponto de vista, é possivelmente a maior fonte de inspiração de Herder e Goethe, os principais teóricos do pré-romantismo. Para o conde de Shaftesbury, não havendo, de acordo com Espinosa, possibilidade de criação do mundo por uma causa extrínseca a ele, a diferença que separa o criador do universo e o criador de coisas particulares é uma mera diferença de grau. Ou como diz uma passagem muito divulgada do seu "Solilóquio": o artista é uma "natureza plástica universal", capaz de produzir sozinho uma totalidade orgânica, e por isso pode ser considerado "um segundo criador ("a second maker'), um verdadeiro Prometeu abaixo de Júpiter".
Como é sabido, na juventude Goethe começou a escrever um drama intitulado "Prometeu", no qual exprime idéias muito parecidas. Ali, o protagonista, ligando-se a Minerva, desafia o poder de Júpiter e se pretende capaz de criar obras de arte que são imagens vivas dos seres humanos. A força de Prometeu e a do deus supremo se igualam, pois um e outro são impotentes diante do poder mais alto: "É do Destino, não dos deuses/ Conceder e tirar a vida" ("Ato 1", versos 198-9). O poema não foi concluído, nem a parte escrita chegou a ser publicada, mas por um episódio envolvendo duas personagens de destaque na época se pode imaginar que consequências a sua publicação poderia ter para o autor. Foi um manuscrito desse fragmento dramático que revelou ao filósofo Jacobi a verdadeira religião de Lessing, dando ensejo à "querela do panteísmo" na Alemanha.
Goethe sempre foi muito cauteloso nessa questão, mantendo-se a uma distância verdadeiramente olímpica de tudo o que pudesse causar escândalo -e nem sempre se mostrou muito aberto aos jovens que queriam seguir o caminho aberto por ele. É o caso, por exemplo, de Hölderlin (leia abaixo). Numa carta a Schiller, Goethe afirma ter dúvidas sobre se o jovem poeta compreendeu o verdadeiro sentido da "natureza".
Uma reformulação interessante, uma radicalização do panteísmo de Goethe, uma revisão, por assim dizer, de sua assimilação ao mito prometéico se deve a outro iniciado nos mistérios, Heinrich Heine. Para Heine, poeta de uma geração posterior, era enfim chegada a hora de dizer a verdade que até então se guardava de maneira mais ou menos velada. Quem foi, afinal, Johann Wolfgang Goethe?
A resposta de Heine (leia texto ao lado) tem, antes de mais nada, um aspecto polêmico. Goethe representa para ele um ponto estratégico na luta contra a hegemonia do romantismo católico na Alemanha e na França. Diferentemente das feições taciturnas e da atitude submissa com que Heine pinta os românticos, Goethe é rigorosamente descrito por ele segundo o padrão clássico da nobre simplicidade e serena grandeza que Winckelmann atribuía às esculturas gregas. O importante, como se pode facilmente perceber, é marcar o antagonismo entre duas formas de conceber o mundo, entre duas concepções religiosas, em suma, entre duas mitologias distintas.
Para Heine, que nisso divergiria de seu amigo "impenitente", Marx, a luta entre a nova e a velha ordem social só pode se exprimir na forma do conflito mitológico. Para ele, somente mediante o confronto entre duas visões mitológicas se pode revelar a contradição real, a diferença ideológica entre os adversários. Não importa se em Heine a compreensão disso se deve ao Idealismo Alemão ou aos hegelianos de esquerda: o fundamental aqui é que, segundo ele, esse antagonismo não é apenas uma idéia abstrata, mas uma contradição que foi vivida concretamente pelo autor do "Fausto". Goethe não é apenas Prometeu, nem apenas o "grande pagão" (nome que se dava a ele na época), mas também o pagão que conheceu e superou o cristianismo por dentro (1). É assim que se poderia entender a enigmática epígrafe que escolheu como mote da última parte de "Poesia e Verdade": "Nemo contra deum nisi deus ipse" (Ninguém [pode" contra [um" deus, a não ser [um" deus mesmo).
Goethe tinha razão: os próprios deuses estão sujeitos ao Destino e também terão, portanto, o seu crepúsculo. "Les dieux s'en vont", dirá Heine, num misto de saudosismo e ironia, mas onde também se podem perceber sinais de esperança, já que em sua visão histórica foi necessário ter havido um deus em Weimar para que outros pudessem futuramente surgir -outros, sem dúvida, bem mais prosaicos e bem menos aristocráticos que aquele. Mesmo já convertido e tendo trocado de partido, Heine continuou pensando segundo essa lógica do embate mítico. É o que se pode observar quando se refere, em tom de censura, a seus ex-aliados Ruge, Feuerbach, Daumer, Bruno Bauer e Marx, tratando-os de "ímpios deuses de si mesmos" ("gottlose Selbstgötter").
Os deuses se vão, serão precipitados no Tártaro da história, porque outros devem entrar em cena. Se é assim, talvez se possa então fazer uma última pergunta: no modo como Heine caracteriza Goethe, este já não teria preparado o terreno também para Nietzsche?


Nota:
1. É o que se pode ler na "Contribuição à História da Religião e Filosofia na Alemanha"; tradução brasileira, Editora Iluminuras, 1981, pág. 109.

Márcio Suzuki é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "O Gênio Romântico - Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel" (Iluminuras).




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