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PONTO DE FUGA
Triste, rígido e cerimonial
JORGE COLI
especial para a Folha,
em Nova York
György Ligeti foge de qualquer frieza mental em suas
obras. Carrega pulsões românticas, num fascínio por células
simples e expressivas. É, por isto, um herdeiro tanto de Chopin quanto de Bartók. No final
de sua vida, percebeu afinidades com o minimalismo. Compôs um "Auto-Retrato com
Reich e Riley (com Chopin ao
Fundo)". São afinidades circunscritas, porém: ao contrário desses novos americanos,
sua intrincada densidade européia, musical e histórica não
desliza apenas em superfície. A
segunda das 11 "Musica Ricercata", que compôs entre 1951-3, "Mesto, Rigido e Cerimoniale", enrola-se, no piano, em
torno de apenas quatro notas
que se seguem na escala cromática: fá sustenido, sol, sol
sustenido e, na oitava acima,
um lá, luminoso e lancinante,
que se repete, implacável. É esse o tema sonoro principal de
"Eyes Wide Shut". Kubrick escolheu músicas para seus filmes de modo tão justo que elas
adquiriram uma simbiose definitiva com as imagens. O início de "Assim Falava Zaratustra" ou o "Danúbio Azul", Beethoven ou Rossini, parecem
não mais poder se separar de
"2001" ou de "Laranja Mecânica". Do mesmo modo, a obra
de Ligeti define o grande clima,
eloquente e nobre, desse filme.
Estão ali assimilados ainda
uma valsa de Shostakovich,
soando estranha e perigosa; os
"Nuages Gris", de Liszt, secreto apogeu da música pianística
do século passado, fruto de
uma velhice meditativa e precursora; "Strangers in the
Night"; Oscar Peterson; Chris
Isaak e as oníricas composições de Jocelyn Pook.
Road movie - Se o público dos concertos e óperas,
nos Estados Unidos, comporta-se de modo irritante, fazendo barulho, incomodando os vizinhos, os
motoristas americanos, ao
contrário, são certamente
os mais civilizados do
mundo. A conduta é calma, respeitosa, mantendo
os limites de velocidade e
largas distâncias entre um
carro e outro. Percorrer
mil quilômetros nos EUA
significa menos cansaço e
estresse do que enfrentar,
digamos, os cem, pela
Bandeirantes, que unem
São Paulo a Campinas.
Uma viagem de uns 15
dias, indo de Nova York a
San Francisco, apresenta
apenas uma dificuldade: a
escolha do trajeto, já que
todos são bons. Da histórica "Route 66", não resta
tanto. Ela sobrevive apenas em alguns trechos residuais, engolida pela rede
rodoviária mais moderna.
Mas, na verdade, os caminhos não importam. Em
todo lugar, além da natureza grandiosa, a paisagem humana reconstitui,
no real, os ambientes tantas vezes sonhados e sentidos diante das telas dos cinemas.
Bobagem - "Eyes Wide
Shut" não faz exceção dentre
os filmes de Kubrick. Como os
outros, ele conduz à perplexidade. Certos jornalistas que se
querem mais espertos -gênero "comigo não, violão"- decidiram atacá-lo, porque seu
erotismo decepciona, porque
mostra uma Nova York inverossímil, ou porque se preocupa com as infidelidades de um
casal rico e bonito. Na verdade,
o filme situa-se entre o ato sexual puramente físico e simples e a desvairada complexidade imaginária que o envolve.
Longe do realismo, da análise
psicológica e de uma esperada
sacanagem, ele plana a léguas
de distância dessa crítica rasteira.
Efeito - Há 100 ou 80 anos,
milionários americanos concorriam entre si, com fúria, colecionando objetos de arte.
Graças a isso, hoje, nos EUA,
cada cidade, média ou grande,
possui pelo menos um museu
com obras essenciais. A coleção de expressionistas alemães
em St. Louis, o "S. João Batista", do Caravaggio, em Kansas
City, ou o retrato de Antonin
Proust, por Manet, em Toledo,
Ohio, por si só, compensam a
visita.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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