São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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+3 questões Sobre Kafka

1. Qual é o principal legado literário de Kafka?
2. É legítimo vê-lo como o profeta da desesperança absoluta?
3. Ele deixou seguidores?

Márcio Seligmann-Silva responde

1.
Pouquíssimos autores do século 20 conseguiram criar em sua obra um universo tão forte quanto Kafka. Ele está na origem de uma palavra que resume do melhor modo possível este século de totalitarismos -uma era antes de mais nada kafkiana. O legado literário de Kafka é, para sermos breves, a literatura deste século; o legado de Kafka tout court é o próprio século 20. Mas não enquanto uma era glamourosa. Kafka apresenta as entranhas deste século, a sua face doentia. Seu legado literário é também histórico: as gerações futuras lerão o século 20 a partir dele.
Em termos da literatura, ele abriu um campo novo na escrita (e nas artes) que não parou de se expandir: a literatura não mais apenas como encenação ornamentada e "figurada" do "outro", mas como espaço, vale dizer, local de uma metamorfose. A literatura para Kafka não é mais representação, mas sim manifestação, apresentação do ser -e da língua- como "ser exilado" (que habita o labirinto). É "Klage", lamento sóbrio, e proximidade (até o limite) da morte.

2.
Kafka não é o profeta da desesperança -muito menos absoluta. É verdade que ele afirmou uma vez a seu amigo Max Brod que "somos pensamentos niilistas e suicidas que surgem na cabeça de Deus". E ainda: "Há esperança suficiente, esperança infinita -mas não para nós". É verdade também que ele é autor de parábolas nas quais mensageiros nunca alcançam o seu destino, pessoas cavam sua própria cova, são torturadas ou são condenadas e esmagadas pelo "sistema judiciário". Mas sua própria literatura, por mais enigmática e densa que seja -e justamente por isso-, não pode ser resumida sob o signo da desesperança. Kafka fez uma literatura que é, a seu modo, engajada e política. Ele criou um universo poético que resiste à "prosa da vida" e a corrói.

3.
Os leitores/seguidores de Kafka são inúmeros: Sartre, Beckett, Brecht, Camus, Peter Handke, Canetti, Musil, Blanchot, Orwell, Klossowski, Borges... Este, aliás, afirmou que "cada escritor cria seus precursores" e enumera desse modo outra estirpe de "seguidores" de Kafka, tais como Zenão de Eléia, Han Yu e Kierkegaard. Poderíamos acrescentar: Kleist, Chamisso, Hoffmann, Poe...

Kathrin Rosenfield responde

1.
O legado de Kafka é duplo. Ele é artístico, literário, embora sua obra esteja hoje mergulhada em ponderações filosóficas e ideológicas, psicológicas ou místico-metafísicas. A arte de Kafka conferiu importância e "realidade" a estados e sensações marginais. Ela dá autonomia ao jogo com irrealidades fugazes, subliminares. As "coisas" que ele (d)escreve -sensações, sombras de sentimentos ou idéias- são como migalhas que caem do banquete complicado da vida. Elas caberiam num aforismo, num gesto, num suspiro. Kafka, porém, nos convence de que essas coisinhas valem contos, novelas e romances. "Eu exploro de modo calculado a atenção do leitor concentrado na morte", diz Kafka aos seus cúmplices, leitores artisticamente exigentes: "Eu me queixava à minha mãe de males que, de longe, não eram tão intensos quanto minhas queixas faziam crer. Mas minha mãe não me exigia uma arte tão considerável quanto meu leitor". Nesses engodos artísticos, o conteúdo é diminuto e tende a se aproximar do zero.
Por isso, a interpretação, a atribuição de um sentido, torna-se um problema na arte de Kafka. Eis por que convém distinguir entre o sentido de uma obra e a importância de seu tom, senão Kafka começa a "despencar" para o lado do "místico", do "sádico", do "filósofo" ou do "caso" que ele não é, pelo menos enquanto artista que maneja soberanamente certas tonalidades sutis da alma.

2.
Nessa perspectiva, Kafka não é necessariamente o profeta da desesperança, e isso me leva ao segundo sentido do "legado". A obra que Kafka quis publicar oscila entre diferentes tons. Há aí uma melancolia suave e cândida e todo um dégradé para tonalidades mais sombrias e sádicas, para o horror das contaminações do corpo e da alma. A obra de Kafka seria muito menor e muito mais equilibrada se Max Brod tivesse respeitado a vontade do defunto, destruindo os papéis que Kafka não julgava bons para a publicação.
Quando se faz essa divisão, é possível perceber um equilíbrio de tonalidades. Não há apenas dor, sofrimento absurdo e desesperança. Há também os sentimentos da infância, daquelas pequenas sensações "ingênuas" e magníficas que se perdem com a idade. Kafka nos traz de volta a coisa mais preciosa e pura: os sentimentos diretos (o pendor ingênuo), que Nietzsche opõe ao ressentimento.

3.
Kafka tem seguidores? Sim e não. Os "seguidores" -de Philip Roth a Carver, Wim Wenders e tantos outros-, ao desdobrarem um determinado aspecto, isolando-o, também se afastam de Kafka. Eles rompem o equilíbrio entre o cândido e o desesperado.

quem são

Márcio Seligmann-Silva
É professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de, entre outros, "Ler o Livro do Mundo" (Iluminuras). Traduziu obras de Benjamin, G.E. Lessing e Jürgen Habermas.

Kathrin Rosenfield
É professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (Editora L&PM) e "Os Descaminhos do Demo" (Imago), entre outros livros.



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