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+ brasil 501 d.c.
O filósofo comenta "Certa Herança Marxista", de José Arthur Giannotti,
que acaba de ser lançado
Uma certa idéia da razão
por Bento Prado Jr.
Como fazer trabalho útil apresentando, nos limites de uma resenha, um livro tão complexo como o de José Arthur Giannotti ("Certa Herança
Marxista", Companhia das Letras)? É claro que
estamos condenados a ficar muito aquém do que espera a curiosidade do leitor diante de um livro de tantas
facetas e tão polêmico.
Mas talvez possamos dar uma contribuição mínima,
reduzindo nossa tarefa a apenas duas operações: em
primeiro lugar, oferecer uma radiografia sumária do livro (ou das múltiplas camadas estratigráficas de que se
compõe), dando pistas ao leitor, que poderá se sentir
desorientado percorrendo suas páginas; e, em segundo,
formulando uma questão geral que visa menos à obra
em si mesma que seus desdobramentos futuros, isto é,
seu "télos" último, sem o qual o seu sentido não se pode
esclarecer completamente. Arrisco-me mais, é claro, na
segunda operação, mas não poderia esquivá-la sem diminuir fortemente o interesse vivo que a discussão do
livro deve provocar. Sem um mínimo de polêmica,
principalmente entre amigos, nosso discurso perde
muito de seu peso eventual.
Comecemos pela primeira operação, menos difícil
para quem pode acompanhar o trabalho teórico de
Giannotti desde 1956 (!), primeiro como aluno e depois
como colega no departamento de filosofia da USP. E repitamos, desde o início, uma antiga observação minha,
relativa à continuidade de seu trabalho teórico desde
aqueles tempos longínquos ou ao caráter obsessivo de
sua reflexão que repete, a cada nova etapa, diante de
problemas sempre novos, um mesmo círculo reflexivo:
numa palavra, a história de uma reflexão que sempre se
renova para se aprofundar cada vez mais.
O que já nos permite introduzir uma curiosa observação estilística: penso na maneira como Giannotti dá novo destino aos estilos diferentes dos componentes da
"bella scuola", os membros do cânone a que se reporta
em permanência: Husserl, Hegel/Marx, Wittgenstein...
Mas que poderia haver de comum a autores tão diferentes? Algum estilo comum entre a "Ciência da Lógica" de
Hegel e o "Tractatus" de Wittgenstein (além do "frasismo" e da onipresença do paradoxo à maneira de Lichtenberg que podem ser encontrados em ambos)? O retorno constante ("reflexionante") do pensamento sobre si mesmo, na forma da circularidade do Saber hegeliano, ou a obsessiva reformulação do mesmo pensamento em Wittgenstein, na busca incessante da expressão mais clara daquilo que jamais é perfeitamente exprimível, a não ser poetischerweise (poeticamente)...
Mas o que importa não é o estilo em si mesmo (pensado como mera forma de expressão literária) e sim os
problemas teóricos e práticos que, por sua natureza,
impõem necessariamente essa forma de escrita. Mas
qual é esse problema? Nada mais e nada menos que a
questão da Razão ou da forma da racionalidade. Não é
por acaso que Giannotti começa sua carreira com uma
tese sobre (ou contra?) Stuart Mill, afinando com Husserl seus instrumentos conceituais no combate ao psicologismo. Eis aí fixada, desde início, a "bête noire" de
Giannotti, o psicologismo como o Outro ou o limite da
Razão. Ou como o contraponto que permite negativamente fixar "uma certa idéia da Razão".
Mas de que idéia falamos? Essencialmente da "camada do lógos", irredutível tanto ao referente empírico ou
natural quanto a operações psicológicas (um pouco como o "terceiro reino ou império" de Frege, que sempre
foi referência importante para Giannotti).
Ser social
Mas, ao mesmo tempo em que Giannotti
nos conduzia ao mundo celeste do fundamento transcendental da lógica, ele nos apontava, também, para a
instância do social ou para a reflexão sobre as categorias
fundamentais das ciências humanas (essencialmente
antropologia e economia, mas também Durkheim). O
que se esboçava, assim, paralelamente à filosofia da lógica, era uma visão do modo de ser do social irredutível
aos modelos de uma epistemologia positivista (ou "individualista", no sentido do chamado "individualismo
metodológico"). É assim que, resenhando criticamente
o belo livro de nosso mestre comum, Gilles Granger ("O
Pensamento Formal e as Ciências do Homem"), nos
anos 60, Giannotti não podia deixar de lhe opor o que
chamava de "autoprodutividade do social".
Nem será difícil entender essa passagem, aparentemente insólita, da filosofia da lógica para a ontologia do
social, se lembrarmos a origem husserliana e transcendental de nosso filósofo. Com efeito, não é a idéia de
constituição crucial no procedimento fenomenológico?
Não opera ela tanto no nível da lógica transcendental
como no das ontologias regionais? Mas a maior originalidade, nesse momento, e que distingue sua empresa
de outras semelhantes na tradição fenomenológica, é a
articulação que proporá entre a idéia de constituição e
aquilo que poderemos chamar de a "lógica" do Capital.
Nada mais distante da "Crítica da Economia Política"
do que a concepção da temporalidade das "Geisteswissenschaften" (ciências do espírito) de Dilthey, mas as
operações de Heidegger e de Giannotti, na exploração
da intersubjetividade ou do "Mitsein" (ser-com), não
deixam de ser isomórficas (e não é indiferente que o filósofo brasileiro ainda se interesse pelos escritos "lógicos" do pensador da floresta Negra).
O que fizemos até agora, muito caricaturalmente, foi
descrever o itinerário desenhado desde o doutoramento sobre Stuart Mill (anos 50) até "Trabalho e Reflexão"
(anos 70), passando pelas "Origens da Dialética do Trabalho" (anos 60). Mas, para bem compreender o livro
atual, é preciso, ainda, passar pela "Apresentação do
Mundo" (anos 90). Wittgenstein não é preocupação recente de Giannotti, mas é claro que até os anos 80 seu
Wittgenstein era o do "Tractatus", cuja tradução publicou no fim da década de 60. No prefácio que escreveu
então, depois de apresentar a filosofia tractariana, refere-se ao "segundo" Wittgenstein como responsável por
um desvio teórico que o teria levado, infelizmente, às
margens do pragmatismo (pág. 46).
É só mais tarde que descobre, na obra tardia do filósofo vienense, um novo instrumental a ser assimilado por
seu próprio trabalho. Uma nova leitura das idéias de
forma de vida e de jogo de linguagem, de regra e aplicação, permitir-lhe-á retrabalhar sua idéia de um lógos
prático. Com a "Apresentação do Mundo" estava dado
o passo final para uma retomada da tentativa de compreensão filosófica da "Crítica da Economia Política".
Idéias do segundo Wittgenstein (algumas perfeitamente "dialéticas", como a de que a aplicação da regra
é constitutiva da própria regra, ou a idéia de "projeção", retrabalhada em novo espírito) ajudam a repensar
a expressão do valor, seus pressupostos, sua posição e
sua reposição.
Trata-se novamente de compreender Marx e seus limites, bem como de esboçar as linhas que essa compreensão abre para a nossa prática, ética e política.
O eclipse da revolução
Falta-me a competência
necessária para acompanhar, passo a passo, sua tentativa de reconstrução categorial da "Crítica da Economia
Política". E confesso que minha leitura dos frankfurtianos não me leva a acompanhar as críticas que Giannotti
lhes endereça. Mas pouco importam as minhas "opiniões" mais ou menos (mais menos do que mais) bem
fundamentadas. Creio que, no que concerne a Marx, a
operação de Giannotti é dupla: mostrar o interesse (permanente) de sua obra crítica, que não teria sido tornada
perempta pela evolução da ciência econômica, e a morte da dimensão "política" do marxismo. No limite, a impossibilidade de pensar a idéia de revolução. Mas o essencial é que o eclipse da idéia de revolução não parece
derivar de um raciocínio propriamente histórico-político (digamos, na linguagem de Merleau-Ponty, a partir
da derrapagem do movimento operário ou da paralisia
da negatividade), mas antes lógico-categorial.
É assim que uma das suas críticas fundamentais aos
frankfurtianos diz respeito à renúncia à óptica da "Crítica da Economia Política" e sua substituição pela Crítica
da Cultura. É assim que essa retomada de uma certa tradição marxista, no que ela tem de mais clássico, se é que
é "O Capital" que fornece o coração do marxismo, acaba por inverter um de seus sentidos originais.
Qual é a conclusão final de Giannotti? Ele encerra seu
livro com a seguinte proposição: "Qual é, porém, o sentido da luta de classes, a luta pelo controle da norma,
numa sociedade em que a norma fibrilou, serve para
marcar intervalos cujo espaço intermediário, contudo,
é preenchido por decisões "ad hoc'?".
Como me falta, repito, a cultura econômica para discutir técnica e politicamente a tese assim exposta (escapa-me o sentido último da idéia de "fibrilação da norma"), deixo-a de lado para formular o meu problema,
que não parece ser externo ao livro. Refiro-me às duas
linhas de fuga divergentes que a obra projeta para o futuro, prometendo-nos uma futura "Crítica da Razão
Prática". Quais são essas duas linhas de fuga? São aquelas que se desdobram, sobre fundo de finitude e de intersubjetividade precária e que apontam, num caso, para uma ética da intimidade e, em outro, para uma moralidade objetiva.
Projeto de iluminismo modesto
Antes da redação de "Certa Herança Marxista", Giannotti já havia exprimido essas idéias, respondendo a uma questão de
Balthazar Barbosa Filho, por ocasião de um debate que
consagramos a seu livro anterior. A questão formulada
por Balthazar visava a algo como uma limitação necessária na descrição giannottiana da "racionalidade do
mundo contemporâneo". Grosso modo, haveria problema com o "projeto iluminista modesto" de Giannotti, já que o recurso a Wittgenstein implica o reconhecimento de um limite essencial no processo de "desalienação gramatical".
É claro que Giannotti não ignora (pelo contrário, teoriza) a idéia de algo como uma ilusão ao mesmo tempo
necessária e objetiva (que é, com efeito, a mercadoria?).
Mas é preciso reconhecer que parece difícil conceber,
como insiste Balthazar, um projeto iluminista, mesmo
modesto, "porque faz parte, eu penso, de qualquer gramática transcendental, a preservação da necessidade do
erro gramatical" (op. cit., pág. 232).
A saída de Giannotti parece ser reconhecer na parte
de sombra, de opacidade, isto é, da intimidade vivida ou
da autenticidade, o campo de uma ética que escapa à
aporia formulada. Mas que pode significar uma ética na
intimidade? Essa é minha questão, que sei ser perfeitamente ingênua. Não estaríamos aqui perto de algo semelhante a uma "linguagem privada"? Emprestar dinheiro a mim mesmo ou ser ético em segredo? De outro
lado, não parece a idéia de uma moral objetiva contradizer formalmente toda e qualquer oposição entre ser e
dever-ser? Santificação do que está aí?
Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade Federal de São
Carlos e professor emérito da USP, autor, entre outros, de "Presença e
Campo Transcendental" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 501 d.C.".
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