São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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+ literatura

Salada turca

Chega às livrarias brasileiras nesta semana "Neve", romance do Prêmio Nobel turco Orhan Pamuk que retrata a cisão cultural e religiosa de seu país

STEPHEN O'SHEA
Para mim foi uma surpresa que, entre as muitas virtudes do romancista turco Orhan Pamuk, eu pudesse incluir também a presciência política. Elogiado como virtuose do equilibrismo pós-moderno -em companhia de Jorge Luis Borges, Italo Calvino e Umberto Eco-, Pamuk sempre propiciou delícias intelectuais aos seus leitores sem os preocupar demais quanto ao tempo em que eles vivem.
"Meu Nome É Vermelho" [Companhia das Letras] retratava uma disputa estética entre miniaturistas otomanos e foi elogiado como obra de gênio idiossincrático, e o mesmo pode ser dito sobre "O Castelo Branco" [Record], que gira em torno de um mestre muçulmano e seu escravo cristão que trocam de identidade.
Agora, com "Neve" [Companhia das Letras, trad. Luciano Vieira Machado, 488 págs., R$ 54], de 1996, portanto antes do 11 de Setembro, Pamuk oferece prova de que o artista solitário prevê melhor as viradas históricas do que qualquer especialista convidado habitualmente a proferir opiniões em programas de TV.
A história, que transcorre na parte leste da Anatólia [a porção asiática da Turquia], na década de 1990, trata da disputa que Ocidente e Oriente travam aos gritos hoje em dia -assunto que é uma espécie de segunda natureza para qualquer nativo de Istambul, qualificação que se aplica a Pamuk.

Farsa melancólica
"Neve" é uma farsa melancólica repleta de reviravoltas inesperadas de trama e, apesar do local em que se passa, apresenta semelhança espantosa com a lanterna mágica de enganos, negações e quedas deliberadas que enfeita os jornais todos os dias.
Como é que Pamuk poderia ter previsto isso tudo de sua escrivaninha? Até mesmo os espancamentos e humilhações parecem familiares.
A trama se desenrola durante três movimentados dias de fevereiro, em Kars, uma cidade trêmula e de rico passado localizada na fronteira entre a Turquia e a Armênia.
Uma tempestade de neve isolou o local, o que leva uma trupe de teatro itinerante a encetar um golpe político, em defesa dos velhos valores laicos impostos por Kemal Atatürk [o fundador do Estado turco moderno].
O líder do grupo de atores, um bêbado dado à reflexão cuja fama depende de sua semelhança física com Atatürk, está preocupado com os movimentos islâmicos militantes e com os separatistas curdos em Kars bem como com uma onda de suicídios entre as jovens religiosas da cidade, que usam o tradicional véu muçulmano.

Poeta no exílio
E é a essa altura que surge Ka, um poeta que voltou do exílio na Alemanha com a missão de escrever um artigo sobre os suicídios que será publicado no jornal "República" (ou "Cumhurriyet"), importante publicação de Istambul cuja base de leitores é formada por "turcos brancos", ocidentalizados como ele.
O que Ka descobre, enquanto a neve cai sobre as ruas ladeadas por mansões dilapidadas construídas na era czarista, é uma cidade de raiva articulada.
Furiosos por serem pobres, provincianos e desprezados pelos ímpios, os moradores de Kars confrontam o poeta e atacam sua sensação reflexa de superioridade, por meio de arengas das quais a mais memorável é a proferida por um jovem que sonha se tornar "o primeiro escritor de ficção científica islâmica do mundo".
O ocidental recém-chegado, que havia passado os 20 anos precedentes não escrevendo poesia, se dedicando à masturbação e a receber uma pensão como exilado político em Frankfurt, se encanta por estar atolado em uma pitoresca cidadezinha que parece vir diretamente do passado, de Turguêniev ou Dostoiévski, aos quais ele se refere liberalmente. A musa de Ka retorna, e sua libido renasce. No hotel em que está hospedado, gerenciado por um velho socialista que tem duas filhas lindas, as complicações romanescas se desenrolam, com um dos triângulos amorosos opondo o poeta ateu a um fundamentalista luxurioso.
Ka sai à rua repetidas vezes para se encontrar com esse líder islâmico perseguido -que atraiu atenção nacional depois do assassinato de um apresentador de "game show"-, com o objetivo de negociar assuntos políticos, sentimentais e, por fim, teatrais -decidir se uma das filhas do proprietário removerá ou não o véu no palco.
Na Turquia, o romance foi criticado pelo seu uso de caricaturas. Não os usuais retratos de paxás tolos que usualmente surgem da pena de escritores de viagens europeus pouco inspirados, mas caricaturas essencialmente turcas em termos de fonte e vítimas: o esquerdista desanimado, o policial idiota, a militante política furiosa que usa o véu como símbolo, o morador miserável da Anatólia.
É verdade que Pamuk opera com base em estereótipos, mas a força de "Neve" deriva de seus pontos fracos. Quanto menos os personagens parecem críveis, mais reais se nos assemelham. Pamuk merece crédito por ter percebido essa farsa muito antes de nós.


STEPHEN O'SHEA é autor de "A Heresia Perfeita" (ed. Record). Este texto foi publicado no jornal inglês "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.


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