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+ literatura
Salada turca
Chega às livrarias brasileiras nesta semana "Neve",
romance do Prêmio Nobel turco Orhan Pamuk
que retrata a cisão cultural e religiosa de seu país
STEPHEN O'SHEA
Para mim foi uma surpresa que, entre as
muitas virtudes do
romancista turco Orhan Pamuk, eu pudesse incluir também a presciência política. Elogiado como
virtuose do equilibrismo pós-moderno -em companhia de
Jorge Luis Borges, Italo Calvino e Umberto Eco-, Pamuk
sempre propiciou delícias intelectuais aos seus leitores sem
os preocupar demais quanto ao
tempo em que eles vivem.
"Meu Nome É Vermelho"
[Companhia das Letras] retratava uma disputa estética entre
miniaturistas otomanos e foi
elogiado como obra de gênio
idiossincrático, e o mesmo pode ser dito sobre "O Castelo
Branco" [Record], que gira em
torno de um mestre muçulmano e seu escravo cristão que
trocam de identidade.
Agora, com "Neve" [Companhia das Letras, trad. Luciano
Vieira Machado, 488 págs., R$
54], de 1996, portanto antes do
11 de Setembro, Pamuk oferece
prova de que o artista solitário
prevê melhor as viradas históricas do que qualquer especialista convidado habitualmente
a proferir opiniões em programas de TV.
A história, que transcorre na
parte leste da Anatólia [a porção asiática da Turquia], na década de 1990, trata da disputa
que Ocidente e Oriente travam
aos gritos hoje em dia -assunto que é uma espécie de segunda natureza para qualquer nativo de Istambul, qualificação
que se aplica a Pamuk.
Farsa melancólica
"Neve" é uma farsa melancólica repleta de reviravoltas
inesperadas de trama e, apesar
do local em que se passa, apresenta semelhança espantosa
com a lanterna mágica de enganos, negações e quedas deliberadas que enfeita os jornais todos os dias.
Como é que Pamuk poderia
ter previsto isso tudo de sua escrivaninha? Até mesmo os espancamentos e humilhações
parecem familiares.
A trama se desenrola durante
três movimentados dias de fevereiro, em Kars, uma cidade
trêmula e de rico passado localizada na fronteira entre a Turquia e a Armênia.
Uma tempestade de neve isolou o local, o
que leva uma trupe de teatro
itinerante a encetar um golpe
político, em defesa dos velhos
valores laicos impostos por Kemal Atatürk [o fundador do Estado turco moderno].
O líder do grupo de atores,
um bêbado dado à reflexão cuja
fama depende de sua semelhança física com Atatürk, está
preocupado com os movimentos islâmicos militantes e com
os separatistas curdos em Kars
bem como com uma onda de
suicídios entre as jovens religiosas da cidade, que usam o
tradicional véu muçulmano.
Poeta no exílio
E é a essa altura que surge Ka,
um poeta que voltou do exílio
na Alemanha com a missão de
escrever um artigo sobre os suicídios que será publicado no
jornal "República" (ou "Cumhurriyet"), importante publicação de Istambul cuja base de
leitores é formada por "turcos
brancos", ocidentalizados como ele.
O que Ka descobre, enquanto
a neve cai sobre as ruas ladeadas por mansões dilapidadas
construídas na era czarista, é
uma cidade de raiva articulada.
Furiosos por serem pobres,
provincianos e desprezados pelos ímpios, os moradores de
Kars confrontam o poeta e atacam sua sensação reflexa de superioridade, por meio de arengas das quais a mais memorável
é a proferida por um jovem que
sonha se tornar "o primeiro escritor de ficção científica islâmica do mundo".
O ocidental recém-chegado,
que havia passado os 20 anos
precedentes não escrevendo
poesia, se dedicando à masturbação e a receber uma pensão
como exilado político em
Frankfurt, se encanta por estar
atolado em uma pitoresca cidadezinha que parece vir diretamente do passado, de Turguêniev ou Dostoiévski, aos quais
ele se refere liberalmente. A
musa de Ka retorna, e sua libido renasce.
No hotel em que está hospedado, gerenciado por um velho
socialista que tem duas filhas
lindas, as complicações romanescas se desenrolam, com um
dos triângulos amorosos opondo o poeta ateu a um fundamentalista luxurioso.
Ka sai à rua repetidas vezes
para se encontrar com esse líder islâmico perseguido -que
atraiu atenção nacional depois
do assassinato de um apresentador de "game show"-, com o
objetivo de negociar assuntos
políticos, sentimentais e, por
fim, teatrais -decidir se uma
das filhas do proprietário removerá ou não o véu no palco.
Na Turquia, o romance foi
criticado pelo seu uso de caricaturas. Não os usuais retratos de
paxás tolos que usualmente
surgem da pena de escritores
de viagens europeus pouco inspirados, mas caricaturas essencialmente turcas em termos de
fonte e vítimas: o esquerdista
desanimado, o policial idiota, a
militante política furiosa que
usa o véu como símbolo, o morador miserável da Anatólia.
É verdade que Pamuk opera
com base em estereótipos, mas
a força de "Neve" deriva de seus
pontos fracos. Quanto menos
os personagens parecem críveis, mais reais se nos assemelham. Pamuk merece crédito
por ter percebido essa farsa
muito antes de nós.
STEPHEN O'SHEA é autor de "A Heresia Perfeita" (ed. Record). Este texto foi publicado no
jornal inglês "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.
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