São Paulo, domingo, 22 de novembro de 2009

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Os exploradores

SEM DEPENDER DE CARGOS ACADÊMICOS, DARWIN E ALEXANDER VON HUMBOLDT TRANSITARAM POR VÁRIAS ÁREAS DO SABER E DERAM NOVO IMPULSO À CIÊNCIA

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Neste ano, em várias partes do mundo, estão sendo e serão promovidas homenagens a dois cientistas famosos do século 19, Charles Darwin (1809-82) e Alexander von Humboldt (1769-1859).
No caso de Darwin, 2009 é importante por ser o sesquicentenário da publicação de seu célebre livro "A Origem das Espécies" [ed. Itatiaia, trad. Eugênio Amado, 382 págs., R$°70] e, no caso de Humboldt, o que se celebra é o sesquicentenário de sua morte.
Muitos ensaios e artigos lembrando as realizações desses dois homens já foram publicados neste ano, sem falar em exposições, filmes (sobretudo "Creation" [Criação], cinebiografia de Darwin) e programas de televisão.
Em lugar de repetir esses tributos, por mais merecidos que possam ser, o que eu gostaria de fazer aqui é levantar duas questões gerais que emergem do trabalho de ambos os estudiosos. Uma delas diz respeito à segunda era das descobertas e, a outra, ao papel do polímata.
A era das descobertas, por volta de 1500, é associada a Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e outros navegadores, e foi um tempo de viagens marítimas e explorações de regiões não muito distantes da costa.
Contrastando com isso, a chamada "segunda era das descobertas", no século 19, apesar de ter incluído um elemento marítimo, foi essencialmente um período durante o qual os exploradores concentraram suas atenções no interior de continentes: América do Norte (Meriwether Lewis e William Clark), Brasil (Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius), África (Mungo Park e David Livingstone), Austrália (Robert Burke e William Wills), Sibéria e assim por diante.
Pode-se dizer que essa segunda era das descobertas foi inaugurada em 1799, quando Humboldt e seu companheiro de viagens Aimé Bompland iniciaram sua expedição de cinco anos ao México e à América do Sul. (Em um período posterior de sua vida, Humboldt também faria uma expedição ao interior da Rússia.)
Quanto a Darwin, sua teoria da evolução começou a germinar em sua mente após sua passagem pelas ilhas Galápagos [território do Equador no oceano Pacífico], no navio Beagle, em 1835, mas antes disso ele já tinha passado seis meses no Brasil (onde as florestas lhe causaram forte impressão).
Cientistas e nobres
Seu rival -outro inglês, Alfred Wallace [1822-1913]- chegara a conclusões semelhantes sobre a evolução das espécies após fazer estudos de botânica na região amazônica, no final dos anos 1840.
Hoje, tendemos a enxergar Darwin como zoólogo, mas o uso desse rótulo revela menos sobre o século 19 do que sobre a fragmentação do conhecimento e a profissionalização da sociedade em nosso tempo.
Darwin não era um cientista profissional, mas um cavalheiro dotado de recursos suficientes para sustentar tanto sua família quanto suas pesquisas no campo conhecido, à época, como "história natural" -uma descrição geral para o que, mais tarde, passaria a ser conhecido como mineralogia, geologia, zoologia e botânica.
Ele não precisava se apressar para publicar artigos com a finalidade de conseguir uma cadeira em uma universidade nem se limitar a um único campo intelectual.
Na verdade, Darwin tinha muita consciência das pesquisas que estavam sendo feitas e das conclusões às quais estavam chegando os estudiosos em vários campos tão distintos e separados como economia política, história, fisiologia, psicologia e literatura.
Cada uma dessas disciplinas (como hoje chamamos), ao lado de todos os tipos diferentes de história natural, deixou sua marca em algum lugar do texto de "A Origem das Espécies".
Seu autor escreveria livros sobre a origem do homem, a expressão das emoções ["A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais", Cia. das Letras] e o efeito das minhocas sobre o solo em que vivem.
Humboldt também foi um nobre diletante, dotado de recursos suficientes para financiar seus cinco anos de viagens e a vida de estudioso que levou após retornar a sua Alemanha natal (ou, mais precisamente, à Prússia, já que ele morreu antes da unificação da Alemanha, em 1871).

Fim de uma espécie
Humboldt foi talvez o último dos grandes polímatas. Ele morreu justamente na época em que as universidades europeias e norte-americanas começaram a fragmentar-se em departamentos ou institutos cada vez mais especializados.
Ele se queixou certa vez de que "as pessoas frequentemente dizem que sou curioso sobre coisas demais ao mesmo tempo", mas não precisava preocupar-se com as opiniões alheias.
Sua curiosidade intensa abrangia geologia, astronomia, meteorologia, botânica, fisiologia, química, geografia, arqueologia, economia política e etnografia. Por incrível que isso possa parecer hoje, ele conseguiu fazer contribuições originais em todos esses campos.
Por exemplo, Humboldt e Bompland descobriram espécies de plantas e pássaros até então desconhecidas (do mundo acadêmico ocidental, mesmo que não o fossem aos habitantes indígenas das regiões que explorou), além de terem estudado o comportamento de enguias elétricas.
Humboldt classificou vulcões, estudou o campo magnético da Terra, descobriu o uso do guano como fertilizante e descreveu os costumes de povos indígenas americanos como os maipures.
Seus "insights" sobre as razões da distribuição geográfica de plantas foram incorporados pela ecologia, uma disciplina que ainda não existia em sua época.
Não se satisfez em fazer contribuições dispersas ao conhecimento, mas também incentivou a cooperação científica internacional (a criação de uma cadeia de estações meteorológicas, por exemplo).
Ele procurou enxergar as coisas como um todo e escrever uma obra de síntese, muito adequadamente intitulada "Kosmos".
Não chegou a concluir esse livro ambicioso, baseado em palestras que fez na Universidade de Berlim, mas os dois volumes que publicou -em 1845 e 1847, quando estava no final da casa dos 70 anos- proporcionam a seus leitores uma impressão vívida dos talentos de seu autor.

Divisão
Nos dias atuais, sabe-se muito mais sobre o mundo natural do que se sabia no tempo de Humboldt. O problema é que esses conhecimentos estão divididos entre muitas pessoas diferentes, pessoas que são especialistas, não generalistas.
Hoje, quando celebramos as realizações de Darwin e Humboldt, é difícil deixar de sentir pelo menos um pequeno toque de nostalgia pela última era dos diletantes.
Eram indivíduos de talento, que não exerciam uma profissão definida que pudesse impedi-los de seguir o rumo de seus interesses aonde quer que estes os pudessem conduzir -da etnografia à geologia ou da Sibéria à Amazônia.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "A Tradução Cultural" (ed. Unesp).
Tradução de Clara Allain.


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