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+(a)utores
Os exploradores
SEM DEPENDER DE CARGOS ACADÊMICOS,
DARWIN E ALEXANDER VON HUMBOLDT TRANSITARAM POR VÁRIAS ÁREAS DO SABER E DERAM
NOVO IMPULSO À CIÊNCIA
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Neste ano, em várias
partes do mundo,
estão sendo e serão promovidas
homenagens a
dois cientistas famosos do século 19, Charles Darwin (1809-82) e Alexander von Humboldt
(1769-1859).
No caso de Darwin, 2009 é
importante por ser o sesquicentenário da publicação de
seu célebre livro "A Origem das
Espécies" [ed. Itatiaia, trad.
Eugênio Amado, 382 págs.,
R$°70] e, no caso de Humboldt,
o que se celebra é o sesquicentenário de sua morte.
Muitos ensaios e artigos lembrando as realizações desses
dois homens já foram publicados neste ano, sem falar em exposições, filmes (sobretudo
"Creation" [Criação], cinebiografia de Darwin) e programas
de televisão.
Em lugar de repetir esses tributos, por mais merecidos que
possam ser, o que eu gostaria
de fazer aqui é levantar duas
questões gerais que emergem
do trabalho de ambos os estudiosos. Uma delas diz respeito
à segunda era das descobertas
e, a outra, ao papel do polímata.
A era das descobertas, por
volta de 1500, é associada a
Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama e
outros navegadores, e foi um
tempo de viagens marítimas e
explorações de regiões não
muito distantes da costa.
Contrastando com isso, a
chamada "segunda era das descobertas", no século 19, apesar
de ter incluído um elemento
marítimo, foi essencialmente
um período durante o qual os
exploradores concentraram
suas atenções no interior de
continentes: América do Norte
(Meriwether Lewis e William
Clark), Brasil (Johann Baptist
von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius), África
(Mungo Park e David Livingstone), Austrália (Robert Burke
e William Wills), Sibéria e assim por diante.
Pode-se dizer que essa segunda era das descobertas foi
inaugurada em 1799, quando
Humboldt e seu companheiro
de viagens Aimé Bompland iniciaram sua expedição de cinco
anos ao México e à América do
Sul. (Em um período posterior
de sua vida, Humboldt também
faria uma expedição ao interior
da Rússia.)
Quanto a Darwin, sua teoria
da evolução começou a germinar em sua mente após sua
passagem pelas ilhas Galápagos [território do Equador no
oceano Pacífico], no navio Beagle, em 1835, mas antes disso
ele já tinha passado seis meses
no Brasil (onde as florestas lhe
causaram forte impressão).
Cientistas e nobres
Seu rival -outro inglês, Alfred Wallace [1822-1913]- chegara a conclusões semelhantes
sobre a evolução das espécies
após fazer estudos de botânica
na região amazônica, no final
dos anos 1840.
Hoje, tendemos a enxergar
Darwin como zoólogo, mas o
uso desse rótulo revela menos
sobre o século 19 do que sobre a
fragmentação do conhecimento e a profissionalização da sociedade em nosso tempo.
Darwin não era um cientista
profissional, mas um cavalheiro dotado de recursos suficientes para sustentar tanto sua família quanto suas pesquisas no
campo conhecido, à época, como "história natural" -uma
descrição geral para o que, mais
tarde, passaria a ser conhecido
como mineralogia, geologia,
zoologia e botânica.
Ele não precisava se apressar
para publicar artigos com a finalidade de conseguir uma cadeira em uma universidade
nem se limitar a um único campo intelectual.
Na verdade, Darwin tinha
muita consciência das pesquisas que estavam sendo feitas e
das conclusões às quais estavam chegando os estudiosos
em vários campos tão distintos
e separados como economia
política, história, fisiologia, psicologia e literatura.
Cada uma dessas disciplinas
(como hoje chamamos), ao lado de todos os tipos diferentes
de história natural, deixou sua
marca em algum lugar do texto
de "A Origem das Espécies".
Seu autor escreveria livros
sobre a origem do homem, a expressão das emoções ["A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais", Cia. das
Letras] e o efeito das minhocas
sobre o solo em que vivem.
Humboldt também foi um
nobre diletante, dotado de recursos suficientes para financiar seus cinco anos de viagens
e a vida de estudioso que levou
após retornar a sua Alemanha
natal (ou, mais precisamente, à
Prússia, já que ele morreu antes da unificação da Alemanha,
em 1871).
Fim de uma espécie
Humboldt foi talvez o último
dos grandes polímatas. Ele
morreu justamente na época
em que as universidades europeias e norte-americanas começaram a fragmentar-se em
departamentos ou institutos
cada vez mais especializados.
Ele se queixou certa vez de
que "as pessoas frequentemente dizem que sou curioso sobre
coisas demais ao mesmo tempo", mas não precisava preocupar-se com as opiniões alheias.
Sua curiosidade intensa
abrangia geologia, astronomia,
meteorologia, botânica, fisiologia, química, geografia, arqueologia, economia política e etnografia. Por incrível que isso
possa parecer hoje, ele conseguiu fazer contribuições originais em todos esses campos.
Por exemplo, Humboldt e
Bompland descobriram espécies de plantas e pássaros até
então desconhecidas (do mundo acadêmico ocidental, mesmo que não o fossem aos habitantes indígenas das regiões
que explorou), além de terem
estudado o comportamento de
enguias elétricas.
Humboldt classificou vulcões, estudou o campo magnético da Terra, descobriu o uso
do guano como fertilizante e
descreveu os costumes de povos indígenas americanos como os maipures.
Seus "insights" sobre as razões da distribuição geográfica
de plantas foram incorporados
pela ecologia, uma disciplina
que ainda não existia em sua
época.
Não se satisfez em fazer contribuições dispersas ao conhecimento, mas também incentivou a cooperação científica internacional (a criação de uma
cadeia de estações meteorológicas, por exemplo).
Ele procurou enxergar as coisas como um todo e escrever
uma obra de síntese, muito
adequadamente intitulada
"Kosmos".
Não chegou a concluir esse livro ambicioso, baseado em palestras que fez na Universidade
de Berlim, mas os dois volumes
que publicou -em 1845 e 1847,
quando estava no final da casa
dos 70 anos- proporcionam a
seus leitores uma impressão vívida dos talentos de seu autor.
Divisão
Nos dias atuais, sabe-se muito mais sobre o mundo natural
do que se sabia no tempo de
Humboldt. O problema é que
esses conhecimentos estão divididos entre muitas pessoas
diferentes, pessoas que são especialistas, não generalistas.
Hoje, quando celebramos as
realizações de Darwin e Humboldt, é difícil deixar de sentir
pelo menos um pequeno toque
de nostalgia pela última era dos
diletantes.
Eram indivíduos de talento,
que não exerciam uma profissão definida que pudesse impedi-los de seguir o rumo de seus
interesses aonde quer que estes
os pudessem conduzir -da etnografia à geologia ou da Sibéria à Amazônia.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "A
Tradução Cultural" (ed. Unesp).
Tradução de Clara Allain.
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