São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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Cultura

A pobreza criadora da folkmídia

IVANA BENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante anos a televisão brasileira parecia refém de um imaginário caro a alguns grupos sociais, com uma restrição rigorosa para tudo o que fosse "popular", nos vários sentidos da palavra: cultura popular, pobreza, popularesco.
Só muito recentemente, o popular foi saindo dos núcleos secundários da ficção, o "núcleo pobre" das novelas, com suas lições de honestidade e conformismo, e adquirindo status de protagonista.
"O povo quer se ver na TV", o slogan dos programas de TV sensacionalistas que faziam uma sociologia à quente e involuntária desse mundo kitsch, brega, marcado por certo imaginário rural e que foram migrando e sendo adaptados para uma estética do "bom gosto": de "Cidade Alerta" a "Linha Direta", do Ratinho ao Faustão, da mexicana Maria do Bairro à nordestina Maria do Carmo, programas muito distintos, mas com alguns conceitos e preconceitos partilhados, na passagem do "choque" ao "padrão de qualidade".
A televisão aberta foi criando um novo popular televisivo, combinando os elementos da cultura de massa (subcelebridades, triunfos científicos, teste de DNA, dramas eternos e crimes hediondos) com elementos da cultura popular pré-televisiva: o circo, a feira, a festa, o grotesco, as histórias de assombrações, o que restou do imaginário "rural", gestando novos monstros chupa-cabras, ETs de Varginha e celebridades instantâneas.

Discursos afirmativos
Também o folclore urbano se renovou. Com a visibilidade social e o debate político em torno da pobreza, a televisão e o cinema descobriram novos sujeitos do discurso: pobres, subempregados, artistas precários, rappers, gente das periferias que têm uma fala sobre si e sua condição e exigem visibilidade, além de mudanças reais. Personagens que povoam as novelas, videoclipes, institucionais, filmes, não mais tão humildes e conformados ou como figuras do risco, mas como portadores de discursos afirmativos e de reivindicação.
É que certa pobreza urbana desabusada (a atitude política do hip hop, o funk hipersexualizado de Tati Quebra-Barraco ensinando que "não adianta senão eu esculacho, fama de putona só porque como teu macho") e certo Brasil rural cult se tornaram objetos do desejo social, como potência do novo e signo de desmassificação. "Brasil Legal", "Brasil Total", "Turma do Gueto", "Cidade dos Homens" são programas de TV que encarnaram esse desejo de uma pobreza criadora.
Fascínio pela cultura popular, pelo "primitivo" que alimentou vanguardas históricas e modernismos. Uma linha que no Brasil fundiu experimentação estética e folclore em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, "Macunaíma", livro e filme, no cinema marginal, nos antidocumentários sobre Carnaval e congada, chegando como tendência às bienais de arte.
Já a TV raras vezes avançou nesse terreno. A minissérie "Hoje É Dia de Maria", de Luis Fernando Carvalho, é uma exceção, produto sofisticado de um novo momento da "folkmídia", folclore + cultura de massa, entendida não como manifestações fossilizadas da cultura (o "conteúdo brasileiro"), mas como imaginário vivo, capaz de incorporar temas e estéticas transnacionais.
Um popular recenseado por Câmara Cascudo, Romero, Mário de Andrade que floresce em cenários inspirados em Portinari com elementos dos contos de fadas europeus, produzindo uma familiaridade dissonante. Rabeca e Villa-Lobos, prosódia caipira e teatro inventivo à Robert Lepage, caboclos e negros imersos numa visualidade feérica e luxuriante ("A Viagem do Capitão Tornado", "O Mágico de Oz", "A Bela e a Fera", este de Cocteau, são referências), atores contracenando com imagens metálicas de uma animação.
"Hoje é Dia de Maria" aponta um caminho possível, desde que não se confunda com o discurso de defesa da "identidade nacional", retórica dominante no mercado que aposta em um nacionalismo institucional. Só assim o audiovisual brasileiro pode produzir uma outra iconografia de Brasil, mais arriscada e menos previsível, um folclore-mundo.


Ivana Bentes é professora de cinema e coordenadora-adjunta da pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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