São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005 |
Texto Anterior | Índice
+ cultura Aproveitando-se do colapso das empresas pontocom, mercado de arte vive um boom sem precedentes, atraindo grandes investidores e colecionadores que querem fazer história Dividendos da arte
BEN LEWIS
Se a obra de arte entra para uma coleção boa, seu valor e o valor do artista aumentam. O inverso é igualmente verdadeiro, e o que os donos de galerias querem evitar a todo custo é que alguém compre a peça e a ponha em leilão apenas para auferir lucro (prática chamada "flipping"). Quando isso acontece em grande escala, pode ser um escândalo. A nova abundância de donos de galerias e de artistas contemporâneos reforçou o domínio destes sobre o mercado. Em novembro passado, após o desentendimento público entre Charles Saatchi e Damien Hirst, Saatchi vendeu grande parte de sua coleção de peças de Hirst. Elas foram adquiridas por Jay Joplin, diretor da galeria White Cube e marchand do próprio Damien Hirst, ao que consta por 10 milhões de libras [R$ 50 milhões]. A lógica do mercado de arte dita que o colecionador tinha interesse em vender de volta à galeria. Saatchi ainda possui obras de Hirst, e, mesmo que não as tivesse, por que quereria inundar o mercado e deixar que os preços afundassem? Isso daria a impressão de que ele cometera um grande erro. É claro que não é incomum, no mundo da arte, que um artista e sua galeria tentem recomprar um dos primeiros trabalhos do artista. A diferença, hoje, é de escala. O que o boom está fazendo é conferir poder a uma minúscula elite de artistas de primeira linha e a suas galerias, capacitando-as a controlar de maneira inusitada a venda de suas obras. O mundo da arte gosta de explicar o boom em termos simples. Há menos arte antiga por aí, e ela custa muito mais caro. Mesmo entre os ricos, são poucos os que hoje têm cacife financeiro para comprar arte impressionista. Mas há muito mais pessoas abastadas que querem comprar arte de algum tipo. A arte contemporânea está disponível e, como arte, é recompensadora. Escrevendo a história Esse é o argumento que costuma ser apresentado -e é bobagem pura. Embora os velhos mestres e os impressionistas sejam raros, não há nada que impeça os colecionadores de colecionar outra coisa -vasos pré-colombianos, automóveis clássicos, pratarias etc. E, embora os trabalhos dos modernistas custem caro, os colecionadores poderiam, mesmo assim, preferir adquirir suas gravuras e seus desenhos menos caros. Mas não o fazem. Eles não querem arte velha. Não querem nem mesmo, necessariamente, grande arte. Querem arte nova. Mas por que a idéia do contemporâneo teria se tornado mais valiosa agora do que era? A resposta é que os colecionadores ganharam algo novo: a impressão de que, ao preencher cheques, estão escrevendo a história. Antigamente, os galeristas promoviam suas obras de arte, dizendo que possuíam poder espiritual. Mas, no mundo da arte dos dias de hoje, a obra de arte não costuma mais ser descrita seriamente como algo dotado de poder espiritual. Em lugar disso, é promovida como um pedaço de história cultural em processo de ser criada. A consultora de arte novaiorquina Thea Westreich me explicou a questão assim: "É uma investigação intuitiva, intelectual, conceitual sobre o que significa viver num tempo determinado. E o tempo em que vivemos é tremendamente complexo. Os artistas estão pensando "o que isso significa? E como posso exprimir algo deste momento?'". O novaiorquino Adam Lindemann é mais típico da nova geração de colecionadores. Ele fez fortuna com uma cadeia de estações de rádio de língua espanhola e agora está aplicando o mesmo princípio à atividade de colecionar. Eu o visitei em sua casa, onde as paredes são repletas de obras dos artistas que todo colecionador de alto nível precisa ter. Havia fotos do ciclo "Cremaster", de Matthew Barney, os mangá-cartuns zen de Takashi Murakami, um busto de Jeff Koons e a placa "Forever", de Sue Webster, feita de lâmpadas que acendem e apagam. "São os maiores sucessos, você sabe -como as "top 20" nas estações de rádio", disse Lindemann. "Mas o que é mais interessante, para mim, não é tanto a obra de arte, mas as teorias, as reações pessoais e também as reações do mercado ao artista e ao trabalho dele. Cada objeto é um pedaço da cultura contemporânea, um pedaço do que está acontecendo." Processo de validação Os colecionadores Raymond Learsy e Melva Bucksbaum levaram esse fascínio pelo contemporâneo um passo à frente, tornando explícita sua própria participação nele. Visitei o loft deles em Tribeca, onde eles espalharam obras de arte ligadas à temática do 11 de Setembro. Havia um bronze em tamanho maior que o natural de uma mulher caindo, de Eric Fischl, e um óleo grande de Jennifer Bartlett mostrando as torres se desintegrando numa geometria abstrata colorida. "Você nos perguntou por que colecionamos arte contemporânea, e a resposta é que ela é um reflexo de nossas vidas", eles me disseram. "O World Trade Center fica a apenas oito quadras de distância. Estávamos aqui naquele dia, vimos as torres caírem, e colecionar arte contemporânea é nossa maneira de enfrentar os acontecimentos daquele dia." Learsy e Bucksbaum reagiram à catástrofe atuando como "connoisseurs". Mas o objetivo deles não é apenas comprar um pedaço da história, mas antecipá-la, colecionando artistas que estão em início de carreira. Learsy explicou: "O aspecto instigante de colecionar arte contemporânea é que não existe nenhuma instância que valide suas escolhas. Você mesmo pode tornar-se parte do processo de validação". Assim, um artista só passa a ser reconhecido como importante a partir do momento em que seu trabalho é seriamente colecionado. Ao comprar uma obra de arte e elevar seu preço, o colecionador influi sobre a história. Livros e CDs também fazem parte da história cultural, mas qualquer pessoa pode comprar o livro ou o CD. Trabalhos de arte, por outro lado, são únicos ou são publicados em edições muito restritas, e colecionar arte contemporânea proporciona aos ricos um poder que nenhuma outra aquisição lhes pode conferir. O que estamos vivendo hoje é um aumento enorme no número de pessoas endinheiradas interessadas em intervir dessa maneira na história cultural. É um mundo novo, e apenas um tolo ousaria prever quanto tempo ele irá durar. Falando em bases puramente quantificáveis, teríamos que concluir que a arte contemporânea não é tão significativa hoje quanto já foi, simplesmente porque existem mais meios de comunicação visuais entre os quais escolher: fotografia, cinema, televisão, videogames. Esses meios de comunicação desempenham em nossa cultura um papel maior do que as obras de arte. O mundo da arte responderia, dizendo que os artistas fazem comentários muito mais inteligentes, até mesmo filosóficos, sobre o mundo do que fazem os diretores de televisão e os criadores de consoles. Mas os artistas, de modo geral, não são especialmente instruídos, e a arte visual não é uma mídia que se presta muito bem ao exame de problemas filosóficos ou morais complexos, que normalmente exigem a precisão da linguagem. O mundo da arte também aponta para o número crescente de pessoas que freqüentam galerias de arte. Entretanto, tendo passado muito tempo nesses lugares, ouvindo as conversas de outras pessoas, tenho a impressão de que a maioria delas estão lá por curiosidade, mais do que por devoção intelectual. A galeria de arte contemporânea é a versão moderna do "freak show", um lugar para onde as pessoas vão numa tarde chuvosa para percorrer os objetos expostos com olhos arregalados e dar risada. O mercado de arte contemporânea é apenas um mercado. Vivemos num mundo em que os ricos têm mais tempo livre e dedicam uma parte maior dele a tarefas criativas. Seria preciso, provavelmente, que acontecesse outra grande recessão mundial para que os colecionadores fossem obrigados a vender suas imensas coleções por menos do que pagaram por elas, e isso não parece ser iminente. No momento, o mercado da arte contemporânea é uma profecia que cumpre a si mesma, na qual valor de mercado e valor cultural se fundiram e dissolveram um dentro do outro. Ben Lewis é especialista em arte e apresentador do documentário "Why Do People Buy Art?" (Por Que as Pessoas Compram Arte?) e da série "Art Safari", da TV inglesa. Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: + réplica: Uma alma singela Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |