São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997.

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A Bienal de São Paulo recebe a arte de Andy Warhol e Lichtenstein, e Oiticica monta `Tropicália', no Rio
Reprodução
" Marilyn", de 1967, uma das serigrafias da atriz feitas por Warhol


A pop-política

NELSON AGUILAR
especial para a Folha

Em 1967, a pop art, apresentada na 9¦ Bienal de São Paulo, consagra definitivamente os Estados Unidos como o centro mundial das artes plásticas. O pavilhão norte-americano abriga em seu núcleo retrospectiva de 40 óleos de Edward Hopper (1882-1967), envolvida pela produção de 21 artistas pop, entre os quais Johns, Lichtenstein, Oldenburg, Rauschenberg, Rosenquist, Ruscha, Warhol, Wesselmann, entre outros. A mostra tem cunho oficial, produzida pelo Smithsonian Institution, de Washington. Poucos percebem, sob o fulgurante glamour da figuração, a força crítica das imagens.
``Daí ser terrivelmente sinistra a mensagem de Andy Warhol quando representa, no `Desastre Alaranjado', a mesma cadeira elétrica, obstinadamente repetida, ameaçadora, à espera de um homem. É uma cadeira que não pode ser jogada fora, que não vai para o lixo, não vai para a fornalha. É uma cadeira que espera e que consome'' (Flávio Motta, ``Arte Cinética e Pop Art'', ``Jornal do Brasil'', 8/11/1967). O curador da mostra americana não trouxe os filmes de Warhol que sinalizam o abandono, pelo artista, do suporte tradicional da arte, a pintura. O desfile de personagens à margem dos padrões celebrados pelo Departamento de Estado, como os de ``Lonesome Cowboys'' ou de ``I, a Man'', desmotiva os organizadores.
Em Nova York, Sol Lewitt dá um passo decisivo em relação a um novo tipo de arte ao defini-la: ``Na arte conceitual, a idéia ou conceito é o aspecto mais importante do trabalho (em outras formas de arte, o conceito pode ser mudado no processo de execução). Quando um artista usa uma forma conceitual de arte, significa que todo o planejamento e todas decisões foram feitas anteriormente e a execução é um assunto secundário. A idéia se torna uma máquina que faz a arte...'' ("Artforum", verão de 67).
Em Paris, Buren, Mosset, Parmentier e Toroni espalham panfletos, no âmbito do Salão da Jovem Pintura, em que afirmam: ``Na medida em que pintura é um jogo... na medida em que pintar representa o exterior (ou interpreta, ou se apropria, ou disputa, ou apresenta)... Na medida em que pintar é uma função de esteticismo, flores, mulher, erotismo, o ambiente cotidiano, arte, dadá, psicanálise, a Guerra do Vietnã, NÃO SOMOS PINTORES''.
Em Darmstadt, Joseph Beuys apresenta a ação ``Corrente Principal Fluxus'', operando com elementos que possuem teor alquímico: a gordura, o feltro e o cobre. Trata-se de uma cerimônia de iniciação em que o artista, durante dez horas, age em estado de transe. Salta como lebre, lambuza-se de gordura, torna-se o transmissor de energias mediante coreografia que visa unir polaridades distantes, sempre usando o indefectível chapéu de feltro. Os objetos da performance adquirem uma segunda vida, carregam-se de significações. Não há cor em nenhum deles, persistem cinzas e brancos, interrompidos pelo vermelho sanguíneo que se configura em cruz, sacrifício e ressurreição. O comportamento de animal acena à redescoberta da natureza como potência vital, que com o tempo se canalizaria no Partido Verde. Onde quer que Beuys se locomova, cria-se uma clareira, reivindica-se um projeto no qual a arte invade a vida e adquire coloração revolucionária.
Em Milão, o crítico Germano Celant formula a arte povera usando a guerrilha como paradigma, sob o impacto da morte de Che Guevara. Para sair do circuito do consumo prega a arte pobre ligada à contingência, ao acontecimento, ao presente, e exalta a que rejeita o discurso unívoco e coerente e decepciona as expectativas. O artista privilegia o dado, a presença física do objeto, tomando de elementos como a tela, a cor, o espaço, antes que se organizem em sistema. Surgem várias revistas de arte politizadas, na Itália, que almejam inserir a arte no processo de contestação contra os valores e os comportamentos do mundo capitalista e a atividade artística na vida.
Hélio Oiticica percebe com acuidade essa poética sensorial ao comentar um dos filmes realizados em 67, ``Édipo Rei'', de Pasolini: ``Senti que tudo aquilo é como o nascer da sensibilidade, a descoberta e a síntese de tudo: quando Silvana Mangano olha para a câmera, num close que considero o mais genial do cinema depois da Falconetti, em `Joana d'Arc', amamentando o filho que seria seu futuro amante, sente-se que ela é tudo, amante e mãe de todos nós: que maravilha'' (Carta a Lygia Clark, 15/10/1968).
Hélio pertence à sagrada família dos desvendadores do futuro a partir da manifestação ambiental "Tropicália", na mostra ``Nova Objetividade Brasileira'', realizada no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro. A revolução que ocorria em doses homeopáticas por meio dos ``Relevos Espaciais'', placas suspensas por um fio; dos ``Bichos'', de Lygia Clark, formas manipuláveis que projetam o próprio apoio, explode de vez. Tal como uma fenomenologia da percepção enriquecida por Marshall McLuhan, "Tropicália" propõe ao iniciante a experimentação tátil da areia, a visualidade dos panos coloridos, o aroma das plantas, para culminar na intermodalidade do sentir: o aparelho de televisão. Numa só tacada conjuga os seis requisitos da nova poética: vontade construtiva; superação do quadro de cavalete; participação do espectador; abordagem e tomada de posição frente a problemas políticos, sociais e éticos, tendência a uma arte coletiva e ressurgimento da antiarte.
Como se vê, mesmo sem se conhecerem, os pioneiros participam de um mesmo mosaico disruptivo, só separados pela geopolítica das artes. O trabalho de reunião e de reparação só acontecerá na Europa 30 anos depois, na 10¦ Documenta de Kassel.


Nelson Aguilar é professor de história da arte na Universidade de Campinas (Unicamp); foi curador-geral das 22¦ e 23¦ Bienais Internacionais de São Paulo.

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