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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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A União Européia precisa superar o comodismo e assumir um papel de liderança para evitar que os EUA continuem julgando ser necessário zelar pela democracia no mundo

O VÁCUO NO PODER

por Richard Rorty

O presidente George W. Bush está desesperadamente contando com que suas ameaças ou venham a levar Saddam Hussein ao exílio na Suíça ou façam com que este seja deposto. Se uma dessas duas alternativas vier a acontecer, o presidente Chirac e o chanceler Schroeder parecerão fracos, e Bush entrará para a história como um sábio e corajoso estadista que iniciou as ações efetivas e necessárias que líderes europeus não tiveram coragem de iniciar. Se nenhuma das alternativas vier a ocorrer, Bush quase com certeza entrará em guerra, não importando o que a Europa ou a ONU achem disso. Pois, se ele não levar a cabo suas ameaças, terá muita dificuldade para explicar aos eleitores norte-americanos o motivo de ter enviado tantas tropas ao Oriente Médio. Ele se emaranhou em uma retórica que torna quase impossível para ele dizer "infelizmente a ONU não nos deixou prosseguir e portanto estou trazendo os rapazes de volta para casa".
O fato de deixar de cumprir suas ameaças contra o Iraque, combinado à circunstância de ter tido de retroceder em suas críticas anteriores contra a Coréia do Norte, faria com que Bush perdesse os votos daqueles que admiraram sua postura após o 11 de setembro. Por outro lado, ele perderá ainda mais votos se muitos soldados norte-americanos forem mortos ou se embaixadas dos EUA em capitais árabes forem ocupadas por turbas e os diplomatas norte-americanos forem usados como reféns -ou se a Al Qaeda tiver sucesso em outras megaatrocidades como resposta ao início da guerra.
A opinião pública norte-americana, incrivelmente, ainda não levou a sério a probabilidade de que uma guerra contra o Iraque venha a trazer dezenas de milhares de soldados norte-americanos para casa mortos, apesar de diversos generais reformados norte-americanos terem dito à imprensa o quanto esse perigo é real. É como se o público norte-americano assumisse que as baixas dos EUA serão tão raras desta vez como o foram durante a Guerra do Golfo (1991).
Mas vitória rápida e indolor parece improvável, já que Saddam pode seguir o ótimo conselho que lhe foi dado pela imprensa ocidental e adotar o que foi chamado de a estratégia do "cerco de Bagdá": ele pode deixar a cidade ser circundada por tropas norte-americanas e depois desafiá-las a avançar por ruas cheias de atiradores com balas que atravessam coletes. Ele pode também desafiar com segurança os EUA a bombardear por completo a cidade, sabendo que as mortes de civis que disso resultarão farão com que os Estados Unidos pareçam vis. Bush não pode deixar um cerco como esse durar para sempre, mas ninguém ainda sugeriu como o presidente poderia acabar com ele.
Ninguém deu uma explicação realmente convincente de por que Bush se colocou nessa posição extremamente complicada, a não ser que talvez os seus conselheiros o tenham convencido de que Saddam certamente vai fugir no último segundo ou de que a CIA (Agência Central de Inteligência) contratou assassinos confiáveis e bem localizados. Só que Bush colocou o mundo em uma posição complicada. Se uma guerra no Oriente Médio terminar somente após perdas norte-americanas maciças, sem nada parecido com o implausível Iraque democrático que Bush nos prometeu e com o Oriente Médio em turbilhão, será difícil para o resto do mundo ter alguma confiança que seja nos EUA.
Mas o enfraquecimento da hegemonia norte-americana dificilmente será um bem sem ressalvas. Há coisas piores do que a arrogância, e uma delas é um vácuo de poder. O mundo precisa tanto de policiamento quanto de liderança, e a Rússia e a China não são líderes alternativos atraentes. As Nações Unidas precisariam ser drasticamente transformadas para que pudessem vir a ser úteis. A União Européia neste momento não é capaz nem tem vontade de assumir um papel político, em vez de econômico, no cenário mundial.
O governo Bush assume calmamente que a hegemonia norte-americana é inquestionável e que durará para sempre, não importa o resultado da aventura no Iraque. A incredulidade e o ultraje com que o governo Bush saudou as recalcitrâncias francesa e alemã ilustram a profundidade da convicção de Washington de seu direito de tomar conta das questões mundiais. Os analistas políticos europeus, no entanto, se enganam ao ver a arrogância e a ambição imperialista como características não apenas do governo Bush, mas também dos Estados Unidos enquanto nação.
As pesquisas mostram que a parcela do público norte-americano que apoiaria a guerra com o Iraque com o consentimento das Nações Unidas é muito maior do que a que apoiaria a ação unilateral dos EUA. Se a esquerda norte-americana não tivesse sido fragmentada pela candidatura de Ralph Nader à Presidência em 2000, o presidente dos Estados Unidos seria hoje um homem que leu e ponderou sobre todos aqueles livros que descrevem a mutação dos EUA de república em império e que sonharia com a delegação gradual do poder norte-americano.
Mas pode haver, entretanto, um lado positivo na vitória eleitoral de um presidente republicano espantosamente reacionário, que considera a permanente hegemonia norte-americana um dado irrefutável. Pois o comportamento de Bush pode levar a União Européia a quebrar o seu hábito preguiçoso de assumir que os EUA vão dispor do dinheiro e das vidas necessárias para resolver qualquer crise, e a Europa poderá sempre assistir das laterais e deplorar o aventureirismo norte-americano. Ele pode forçar as nações européias a perceberem que, a não ser que elas estejam dispostas a simplesmente aceitar a hegemonia dos EUA e conviver com a arrogância norte-americana, elas não podem se dar ao luxo de ter políticas externas individuais. Apenas se a Europa falar com uma voz una ela terá alguma chance de influenciar as questões mundiais. A guerra no Iraque pode servir como um despertador, que diz à Europa que é mais tarde do que ela pensa.
Parte do desdém que Washington tem pela Europa é justificado. A Europa não quis tomar uma atitude para acabar com o genocídio na África e nos Bálcãs. A União Européia não pôs em pauta nenhum projeto próprio de longo prazo em busca de paz e segurança mundiais.
Qual é, por exemplo, a política européia com relação ao desarmamento nuclear? Será que a Europa está feliz, como o governo Bush aparentemente está, com o mundo vivendo para sempre sob uma espada de Dâmocles nuclear? A França e a Alemanha têm dúvidas justificáveis a respeito de uma guerra contra o Iraque, mas seus líderes pouco disseram o que deve ser feito quando tiranos loucos brandirem armas nucleares e nutrirem terroristas.
A não ser que a Europa pare de meramente reagir, favorável ou desfavoravelmente, às iniciativas norte-americanas e comece a tomar suas próprias atitudes, seu comportamento reforçará -e de fato justificará- a crença de que a defesa da democracia e a resistência contra a tirania devem continuar a ser responsabilidade dos EUA. Se as nações européias não estão dispostas a aceitar o que Michael Ignatieff chama de "imperialismo gentil" dos EUA (que pode não ser gentil para sempre), elas terão de se reunir e concordar sobre uma política externa de longo prazo, levantar o dinheiro necessário para agir militarmente de forma independente e demonstrar a habilidade e a vontade da União Européia de assumir responsabilidades políticas globais.


Richard Rorty é filósofo americano, professor na Universidade Stanford e autor de, entre outros, "Para Realizar a América" (DP&A).
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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