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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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O corpo mutante

Paula Sibilia
especial para a Folha

Uma imagem persistente chegou até nós, convertida em um dos símbolos mais cabais da Renascença: a estampa daquele homem de proporções ideais desenhado por Leonardo da Vinci. Com sua harmonia quase geométrica e sua proposta de beleza viril, essa figura encarna a ordem tranquilizadora de uma época que descobrira a face do seu verdadeiro amo: o homem. Assim, confiante nos ditados da razão e disposto a tomar o caminho seguro do aperfeiçoamento tecnocientífico, nascia o digno soberano do mundo ocidental.
Mas isso foi há muito tempo. Prenunciada pelas inquietações e pelos desvarios românticos, a modernidade deflagrou outras forças arrasadoras. Nem mesmo aquela silhueta estática e robusta, que desafiava toda e qualquer escuridão com sua límpida regularidade, pôde se esquivar aos novos ventos: ela também foi tomada de assalto. Uma a uma, todas as suas leis foram burladas; seus firmes alicerces tremeram e se desmancharam no ar. O imaginário modernista estilhaçou o corpo humano, jogando-o num turbilhão de metamorfoses, fragmentações e cruzamentos espúrios. Um projeto de decomposição que, certamente, não contemplou apenas as artes plásticas e a literatura, mas também o nível físico e químico do próprio organismo, a partir das perscrutações endoscópicas promovidas pelas ciências médicas e humanas.
Junto dos restos desses corpos flagelados e esquadrinhados, os artistas do século 20 deixaram um rastro de enigmas que ainda permanecem sem reposta e cuja força está longe de se extinguir. Esse é o tema do belo livro de Eliane Robert Moraes, "O Corpo Impossível". Com uma clareza cativante, enquanto as páginas percorrem o frondoso itinerário da estética modernista, a autora desvela os processos que acabaram evidenciando a condição informe e instável da "coisa humana".
Georges Bataille é um guia privilegiado nessa pesquisa. Ecos de Sade, Lautréamont e Nietzsche assombram um texto que invoca vários representantes das vanguardas européias: artistas e pensadores que, tendo constatado a decadência do humanismo e o esmaecimento da velha crença numa identidade fixa e estável, operaram incisões na pele e farejaram as vísceras do Homo sapiens, sem medo da violência nem dos humores que poderiam expelir. "Tudo acontece como se, no mundo moderno, o dilaceramento do homem tivesse se tornado a única saída a permitir reencontrá-lo por inteiro", conclui a autora, "não mais na sua ilusória completude antropomórfica, mas em seu permanente inacabamento".
Saborosa em si, esta obra pode inspirar novas torções e desdobramentos se a sua problemática for deslocada para o cotidiano do nosso século 21. Com a conquista do nível molecular, hoje o corpo humano abre suas entranhas às sondagens genômicas, nanotecnológicas e ultrassonográficas. Submete-se às experiências transgênicas e se inscreve em temerários projetos de clonagem. Entra em caleidoscópicas espirais transexuais e se arrisca a mergulhar, ainda, nas vertigens bulímico-anoréxicas que resumem a tentativa de afinar sua imagem teimosamente material com os tirânicos ideais da era virtual. Apesar de toda essa profusão técnica e de toda a indagação estética e filosófica que a vem acompanhando, a pergunta pelo sentido parece agonizar, mas nunca morre.
Como uma ferida aberta que não cicatriza, a questão finamente dissecada por Eliane Robert Moraes ultrapassa o prolífico século 20 e irrompe no cenário atual, tão insidiosa e perturbadora quanto outrora. E o corpo ainda se ergue: instável, em constante decomposição, cada vez mais híbrido, fragmentado, mutante. Bestialmente impossível.


Paula Sibilia é mestre em comunicação pela Universidade Federal Fluminense e autora de "O Homem Pós-Orgânico - Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais" (ed. Relume-Dumará).


O Corpo Impossível
249 págs., R$ 35,00 de Eliane Robert Moraes. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3068-9433).


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