São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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O coração do capitalismo

"A BOLSA NO ROMANCE DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 19" AFIRMA QUE DUMAS, PROUDHON E ZOLA ANTECIPARAM A VISÃO APOCALÍPTICA DAS BOLSAS E DIZ QUE A FICÇÃO AJUDA A ENTENDER AS CRISES FINANCEIRAS

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

O cai-não-cai que vivem as Bolsas de Valores de todo o mundo desde o fim de 2007 e que se agravou nos últimos dias teve seu primeiro e impactante ensaio, na economia e na literatura, na primeira metade do século 19.
Essa é a tese que defende o crítico francês Christophe Reffait em "La Bourse dans le Roman du Second 19e Siècle -Discours Romanesque et Imaginaire Social de la Speculation" (A Bolsa no Romance da Segunda Metade do Século 19 -Discurso Romanesco e Imaginário Social da Especulação, ed. Honoré Champion, 640 págs., 105, R$ 281), que acaba de sair na França.
Maior praça financeira do século 19, Paris encontrou nas emissões de ações a forma de financiar a industrialização tardia do país, criando companhias para erguer canais e ferrovias, para explorar minas e pavimentar ruas.
A partir daí, com o surgimento da figura do especulador, enriquecimento e ruína passaram a se suceder em velocidade jamais vista na sociedade francesa. Para Reffait, é esse momento embrionário do capitalismo globalizado que escritores como Alexandre Dumas, Proudhon e Émile Zola irão incorporar de modo premonitório em suas comédias, seus romances e panfletos. São eles que irão lançar mão de termos que penetrariam no imaginário e se tornariam centrais para definir a Bolsa no século seguinte, tratada ora como besta-fera (a Bolsa é "cassino" ou "abismo"), ora como redenção ("Pela própria natureza das coisas, a especulação [...] é, em uma palavra, aquilo que pode haver de mais livre", diria Proudhon).
De cartão-postal a monstro do Apocalipse, a Bolsa tem seu percurso mental e cultural refeito pelo crítico francês e professor na Universidade da Picardia, em Amiens. Na entrevista a seguir, Reffait também fala da aproximação entre especulação e erotismo, feita por Zola no clássico da literatura da Bolsa, o romance "O Dinheiro".
E hoje, quando a tese do "descolamento" dos países emergentes da crise iniciada nos EUA [leia na pág. 6] começa a fazer água, quando ações de "blue chips" brasileiras como Vale e Petrobras despencam nos pregões da Bovespa, Reffait provoca: "O romance não poderia ter uma pertinência maior do que os modelos utilizados na economia?".

FOLHA - Por que estudar esse tema? Qual é sua importância para a economia e a literatura?
CHRISTOPHE REFFAIT -
Porque analisar a emergência do discurso literário sobre a Bolsa no século 19 remete à nossa atualidade. Na minha opinião, existe similaridade entre o modo como representamos a globalização financeira hoje e o modo como os franceses o faziam nos anos 1850.
Eles já se davam conta da circulação de capitais permitida pelo desenvolvimento da Bolsa. Também já havia o mesmo sentimento de abstração dos assuntos financeiros, o mesmo temor diante das operações, a mesma apreensão de que o dinheiro invadisse tudo. O discurso contemporâneo sobre a globalização financeira já era articulado pelos literatos franceses de 150 anos atrás.
Uma boa parte do arsenal metafórico que empregamos hoje, sobre a "Bolsa-cassino" ou sobre "o abismo da Bolsa", foi forjada naquela época. Essa é, de resto, uma das funções sociais da literatura: ela pode desenvolver uma construção imaginária, consciente ou inconsciente, a partir de uma realidade, no fim das contas, apenas embrionária. De fato, os historiadores nos dizem que a economia francesa do século 19 estava longe de privilegiar os negócios da Bolsa. Mas isso não impedia os escritores de exclamar que todo mundo havia se tornado especulador.
A razão por que a literatura de então era tão fascinada pela Bolsa é dupla: de um lado, ela percebia o florescimento das finanças como negação da arte. Era esse, por exemplo, o discurso de Sainte-Beuve contra a "literatura industrial", contra uma literatura invadida pela temática financeira e contra escritores corrompidos pela busca do dinheiro.
Por outro lado, os escritores também viam a especulação financeira, em sua sua abstração e vigor criativo, como rival da ficção e do "gênio" literário.

FOLHA - Por que a Bolsa não existia para a literatura antes do século 19?
REFFAIT -
Simplesmente porque ela não era uma realidade muito visível antes disso -digamos, antes de 1820. Desde a Antigüidade, já havia na Europa locais em que era possível encontrar oferta e procura e especular financeiramente. Sabe-se também da importância das Bolsas holandesas a partir da Renascença.
Enfim, sabe-se, no que diz respeito à França, da importância do escocês Law, nos anos 1720 [que propôs a criação de companhias de comércio por meio da emissão de ações, mas elas foram à bancarrota].
Lembremos, de resto, que o escritor Paul Féval, quando publicou "Le Bossu", em 1857, colocou em cena a febre especulativa de seu tempo (os anos de 1852-56 saudaram o golpe de Estado de Luís Bonaparte por meio do lançamento de ações nas Bolsas), embora deslocando-a para o século precedente.
Mas a atividade das Bolsas só se tornou plenamente visível -sobretudo em Paris (primeira praça financeira do mundo à época)- quando foi necessário financiar grandes empreendimento industriais, além da construção de canais, ferrovias e mineradoras.
Vê-se bem, quando se analisa a construção do discurso social sobre a Bolsa por meio da literatura, que 1826 representou mais ou menos o ano inaugural, quando foi concluído o palácio Brongniart [que seria a sede da Bolsa de Paris]. Juntamente com o banqueiro, o tipo literário do especulador começou a aparecer nos vaudevilles e nas comédias de costumes.
Dez anos mais tarde, o número de ações cotadas na Bolsa de Paris cresceu de maneira exponencial, e passou-se a especular sobre empreendimentos industriais: além de canais, ferrovias e minas, também fábricas de betume, usado para a pavimentação das ruas, atividade que então se iniciava.
Da febre especulativa dos anos 1830 até os escândalos financeiros dos anos 1880 e 1890, a Bolsa foi uma realidade bem visível aos olhos dos contemporâneos, e a literatura (em princípio o teatro, depois o panfleto, enfim os romances) iria forjar esse mito.

FOLHA - Quais os mais importantes "romances" e "peças da Bolsa"?
REFFAIT -
É difícil dizer, porque os mais conhecidos hoje talvez não sejam os mais significativos. Evidentemente, somos tentados a evocar Balzac, ainda que, olhando de perto, seja impossível caracterizar suas narrativas de negócio como "intrigas de Bolsa" stricto sensu (penso em "Cesar Birotteau" ou "A Casa Nucingen"). Sem dúvida, é preciso citar "L'Argent" (O Dinheiro, 1891), de Zola, que é o ápice da literatura francesa de Bolsa no século 19.
Mas há muitas outras obras, agora totalmente esquecidas, que eram lidas então do mesmo modo como assistimos hoje às telenovelas. São, portanto, de grande importância para o leitor que procura identificar a ideologia de uma época.
Limito-me a citar quatro textos sintomáticos e hoje quase desconhecidos, escritos em 1857. A peça "La Question d'Argent" (A Questão do Dinheiro),
de Alexandre Dumas Filho, o romance "Les Pigeons de la Bourse" [Os Bobos da Bolsa], de Paul Deltuf, e os panfletos "Le Manuel du Speculateur à la Bourse" (O Manual do Especulador na Bolsa), de Proudhon, e "L'Argent, par un Homme de Lettres Devenu Homme de Bourse" (O Dinheiro, por um Homem de Letras Que Se Tornou um Homem da Bolsa), de J. Vallès.
Mas há também vaudevilles e romances obscuros, e às vezes bastante medíocres, que formam o fundo da literatura de Bolsa no século 19 -e que permitem compreender a importância desse tema.

FOLHA - Como explicar a relação entre especulação e prazer físico?
REFFAIT -
Quem a estabeleceu foi Zola, em "O Dinheiro". Nele, o protagonista, Saccard, diretor de banco e especulador inveterado, explica a madame Caroline, que encarna todas os temores do homem e da mulher comuns em relação à Bolsa, que a especulação a prazo é comparável à excitação erótica: "As energias são decuplicadas, e a agitação é tamanha que, suando unicamente em vista de seu próprio prazer, as pessoas chegam a fazer filhos, coisas vivas, grandes e belas [...]".
Ou: "Por que, diabos, você quer que eu disponha de meu dinheiro, que coloque em risco minha fortuna, se você não me promete um prazer extraordinário?", ele pergunta a uma jovem, que enrubesce.
Essa metáfora da luxúria desenvolvida por Zola não era completamente anedótica. Ao articular desejo e criação, esse discurso derrubou a argumentação que prevalecia no discurso literário francês havia meio século e que consistia em opor metaforicamente a especulação à vista, mãe virtuosa, à especulação a prazo, sua filha viciosa. A aproximação entre prostituição e Bolsa foi uma constante.
De certo modo, o discurso de Saccard, que é endossado pelo conjunto do romance, é liberal, no sentido atribuído a essa palavra hoje em dia.
Zola exprimiu por meio de uma imagem um argumento que Proudhon havia utilizado pouco mais de 30 anos antes em seu panfleto: não se pode separar, como queriam os moralistas, a especulação séria da aposta pura e simples. Era por causa disso que Proudhon pregava o fim da Bolsa!

FOLHA - Tomando como pano de fundo a oposição entre campo e cidade, que marcou a ficção do século 19, pode-se dizer que a Bolsa representava a quintessência da vida urbana de então?
REFFAIT -
Perfeitamente. Pode-se ver isso muito bem nos pequenos romances que, dos anos 1850 aos anos 1880, retratavam um herói provinciano e virtuoso que desembarca em Paris e aí descobre a Bolsa. Essas obras permitem ora adotar uma postura de ingenuidade, ora vituperar a corrupção da capital em oposição à pureza da província.
Assim, em certos romances, vemos se opor o banco da província, virtuoso (que faz empréstimos a agricultores ou a industriais honestos) e o banco parisiense, vicioso, que se ocupa em assegurar a emissão de títulos na Bolsa.
O que é certo é que a Bolsa, desde a literatura dos anos 1850, aparecia como o coração de Paris, a bomba que aspira e expira, assegurando a circulação do dinheiro na capital. E, por extensão, era também ela que promovia a corrupção da babilônia que era Paris, para os literatos do século 19. O palácio Brongniart, construído a partir da destruição de ruas de seu entorno, despontava como o centro de um intenso círculo vital e social.
Vallès vira isso muito bem, ativando todas as metáforas da circulação sangüínea e social. E Zola exploraria à perfeição esse motivo, que estaria a serviço de seu imaginário.
Basta ler as primeiras páginas de seu romance, sobre as carruagens que invadem a praça da Bolsa no início da tarde. Ela também era um topoi dos cartões-postais da época.

FOLHA - As Bolsas de todo o mundo têm oscilado muito devido à crise com as hipotecas subprime nos EUA. O que a literatura pode ensinar à economia?
REFFAIT -
Sua pergunta sugere que a literatura poderia nos consolar das perdas ou, então, nos advertir sobre os desastres nas Bolsas. De fato, a dimensão moral da literatura da Bolsa no século 19 é clara: as peças de teatro ou os romances que nós podemos ler colocam em questão os valores, em todos os sentidos.
Elas se interrogam sobre o que resta àqueles que perdem tudo na Bolsa e opõem os arruinados e os especuladores.
Fazem a caricatura dos investidores como os "otimistas", que investem quando as ações estão em alta, e os "pessimistas", que o fazem quando estão em baixa. Esses comportamentos são uma simbolização intermediária, a meio caminho da abstração do indivíduo racional, segundo os economistas, e dos seres complexos que de fato somos.
Era como se os romances sobre a Bolsa oferecessem uma simulação, em pequena dimensão, da alquimia dos comportamentos humanos em uma situação de crise, por exemplo.
Mas me parece mais convincente a relação íntima que existe entre a ficção literária, em termos gerais, e a ficção sobre a Bolsa, na medida em que ambas implicam uma narrativa (pode-se jogar com os dois sentidos da palavra "ação": o de intriga e o de título da Bolsa). A narrativa também tem um fim, ela também é uma especulação, sobretudo quando trabalha com efeitos da distância, dos pontos de vista e do suspense -uma espécie de delito de iniciados.
A resposta é, sim, a literatura pode instruir a economia, por meio de suas estruturas e figuras. [O filósofo francês] Michel Serres mostrou que as metáforas e os motivos de Julio Verne [escritor pioneiro da ficção científica] poderiam representar conceitos científicos futuros. Do mesmo modo, o romance não poderia ter uma pertinência maior do que os modelos utilizados na economia?

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