|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O coração do capitalismo
"A BOLSA NO ROMANCE DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 19" AFIRMA QUE DUMAS, PROUDHON E ZOLA ANTECIPARAM A VISÃO APOCALÍPTICA DAS BOLSAS E DIZ QUE A FICÇÃO AJUDA A ENTENDER AS CRISES FINANCEIRAS
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
O cai-não-cai que vivem as Bolsas de
Valores de todo o
mundo desde o
fim de 2007 e que
se agravou nos últimos dias teve seu primeiro e impactante
ensaio, na economia e na literatura, na primeira metade do
século 19.
Essa é a tese que defende o
crítico francês Christophe Reffait em "La Bourse dans le Roman du Second 19e Siècle -Discours Romanesque et Imaginaire Social de la Speculation"
(A Bolsa no Romance da Segunda Metade do Século 19
-Discurso Romanesco e Imaginário Social da Especulação,
ed. Honoré Champion, 640
págs., 105, R$ 281), que acaba
de sair na França.
Maior praça financeira do
século 19, Paris encontrou nas
emissões de ações a forma de
financiar a industrialização
tardia do país, criando companhias para erguer canais e ferrovias, para explorar minas e
pavimentar ruas.
A partir daí, com o surgimento da figura do especulador,
enriquecimento e ruína passaram a se suceder em velocidade
jamais vista na sociedade francesa. Para Reffait, é esse momento embrionário do capitalismo globalizado que escritores como Alexandre Dumas,
Proudhon e Émile Zola irão incorporar de modo premonitório em suas comédias, seus romances e panfletos.
São eles que irão lançar mão
de termos que penetrariam no
imaginário e se tornariam centrais para definir a Bolsa no século seguinte, tratada ora como
besta-fera (a Bolsa é "cassino"
ou "abismo"), ora como redenção ("Pela própria natureza das
coisas, a especulação [...] é, em
uma palavra, aquilo que pode
haver de mais livre", diria
Proudhon).
De cartão-postal a monstro
do Apocalipse, a Bolsa tem seu
percurso mental e cultural refeito pelo crítico francês e professor na Universidade da Picardia, em Amiens.
Na entrevista a seguir, Reffait também fala da aproximação entre especulação e erotismo, feita por Zola no clássico
da literatura da Bolsa, o romance "O Dinheiro".
E hoje, quando a tese do
"descolamento" dos países
emergentes da crise iniciada
nos EUA [leia na pág. 6] começa a fazer água, quando ações
de "blue chips" brasileiras como Vale e Petrobras despencam nos pregões da Bovespa,
Reffait provoca: "O romance
não poderia ter uma pertinência maior do que os modelos
utilizados na economia?".
FOLHA - Por que estudar esse tema? Qual é sua importância para a
economia e a literatura?
CHRISTOPHE REFFAIT - Porque
analisar a emergência do discurso literário sobre a Bolsa no
século 19 remete à nossa atualidade. Na minha opinião, existe
similaridade entre o modo como representamos a globalização financeira hoje e o modo
como os franceses o faziam nos
anos 1850.
Eles já se davam conta da circulação de capitais permitida
pelo desenvolvimento da Bolsa. Também já havia o mesmo
sentimento de abstração dos
assuntos financeiros, o mesmo
temor diante das operações, a
mesma apreensão de que o dinheiro invadisse tudo.
O discurso contemporâneo
sobre a globalização financeira
já era articulado pelos literatos
franceses de 150 anos atrás.
Uma boa parte do arsenal metafórico que empregamos hoje,
sobre a "Bolsa-cassino" ou sobre "o abismo da Bolsa", foi forjada naquela época.
Essa é, de resto, uma das funções sociais da literatura: ela
pode desenvolver uma construção imaginária, consciente
ou inconsciente, a partir de
uma realidade, no fim das contas, apenas embrionária. De fato, os historiadores nos dizem
que a economia francesa do século 19 estava longe de privilegiar os negócios da Bolsa. Mas
isso não impedia os escritores
de exclamar que todo mundo
havia se tornado especulador.
A razão por que a literatura
de então era tão fascinada pela
Bolsa é dupla: de um lado, ela
percebia o florescimento das finanças como negação da arte.
Era esse, por exemplo, o discurso de Sainte-Beuve contra a "literatura industrial", contra
uma literatura invadida pela temática financeira e contra escritores corrompidos pela busca do dinheiro.
Por outro lado, os escritores
também viam a especulação financeira, em sua sua abstração
e vigor criativo, como rival da
ficção e do "gênio" literário.
FOLHA - Por que a Bolsa não existia
para a literatura antes do século 19?
REFFAIT - Simplesmente porque ela não era uma realidade
muito visível antes disso -digamos, antes de 1820. Desde a
Antigüidade, já havia na Europa locais em que era possível
encontrar oferta e procura e especular financeiramente. Sabe-se também da importância das
Bolsas holandesas a partir da
Renascença.
Enfim, sabe-se, no que diz
respeito à França, da importância do escocês Law, nos anos
1720 [que propôs a criação de
companhias de comércio por
meio da emissão de ações, mas
elas foram à bancarrota].
Lembremos, de resto, que o
escritor Paul Féval, quando publicou "Le Bossu", em 1857, colocou em cena a febre especulativa de seu tempo (os anos de
1852-56 saudaram o golpe de
Estado de Luís Bonaparte por
meio do lançamento de ações
nas Bolsas), embora deslocando-a para o século precedente.
Mas a atividade das Bolsas só
se tornou plenamente visível
-sobretudo em Paris (primeira praça financeira do mundo à
época)- quando foi necessário
financiar grandes empreendimento industriais, além da
construção de canais, ferrovias
e mineradoras.
Vê-se bem, quando se analisa
a construção do discurso social
sobre a Bolsa por meio da literatura, que 1826 representou
mais ou menos o ano inaugural,
quando foi concluído o palácio
Brongniart [que seria a sede da
Bolsa de Paris]. Juntamente
com o banqueiro, o tipo literário do especulador começou a
aparecer nos vaudevilles e nas
comédias de costumes.
Dez anos mais tarde, o número de ações cotadas na Bolsa de
Paris cresceu de maneira exponencial, e passou-se a especular
sobre empreendimentos industriais: além de canais, ferrovias e minas, também fábricas
de betume, usado para a pavimentação das ruas, atividade
que então se iniciava.
Da febre especulativa dos
anos 1830 até os escândalos financeiros dos anos 1880 e 1890,
a Bolsa foi uma realidade bem
visível aos olhos dos contemporâneos, e a literatura (em princípio o teatro, depois o panfleto, enfim os romances) iria forjar esse mito.
FOLHA - Quais os mais importantes
"romances" e "peças da Bolsa"?
REFFAIT - É difícil dizer, porque
os mais conhecidos hoje talvez
não sejam os mais significativos. Evidentemente, somos
tentados a evocar Balzac, ainda
que, olhando de perto, seja impossível caracterizar suas narrativas de negócio como "intrigas de Bolsa" stricto sensu
(penso em "Cesar Birotteau"
ou "A Casa Nucingen"). Sem
dúvida, é preciso citar "L'Argent" (O Dinheiro, 1891), de Zola, que é o ápice da literatura
francesa de Bolsa no século 19.
Mas há muitas outras obras,
agora totalmente esquecidas,
que eram lidas então do mesmo modo como assistimos hoje
às telenovelas. São, portanto,
de grande importância para o
leitor que procura identificar a
ideologia de uma época.
Limito-me a citar quatro textos sintomáticos e hoje quase
desconhecidos, escritos em
1857. A peça "La Question d'Argent" (A Questão do Dinheiro),
de Alexandre Dumas Filho, o
romance "Les Pigeons de la
Bourse" [Os Bobos da Bolsa],
de Paul Deltuf, e os panfletos
"Le Manuel du Speculateur à
la Bourse" (O Manual do Especulador na Bolsa), de Proudhon, e "L'Argent, par un
Homme de Lettres Devenu
Homme de Bourse" (O Dinheiro, por um Homem de
Letras Que Se Tornou um Homem da Bolsa), de J. Vallès.
Mas há também vaudevilles
e romances obscuros, e às vezes bastante medíocres, que
formam o fundo da literatura
de Bolsa no século 19 -e que
permitem compreender a importância desse tema.
FOLHA - Como explicar a relação
entre especulação e prazer físico?
REFFAIT - Quem a estabeleceu
foi Zola, em "O Dinheiro". Nele, o protagonista, Saccard, diretor de banco e especulador
inveterado, explica a madame
Caroline, que encarna todas
os temores do homem e da
mulher comuns em relação à
Bolsa, que a especulação a
prazo é comparável à excitação erótica: "As energias são
decuplicadas, e a agitação é
tamanha que, suando unicamente em vista de seu próprio prazer, as pessoas chegam a fazer filhos, coisas vivas, grandes e belas [...]".
Ou: "Por que, diabos, você
quer que eu disponha de meu
dinheiro, que coloque em risco minha fortuna, se você não
me promete um prazer extraordinário?", ele pergunta a
uma jovem, que enrubesce.
Essa metáfora da luxúria
desenvolvida por Zola não era
completamente anedótica.
Ao articular desejo e criação, esse discurso derrubou a
argumentação que prevalecia
no discurso literário francês
havia meio século e que consistia em opor metaforicamente a especulação à vista,
mãe virtuosa, à especulação a
prazo, sua filha viciosa. A
aproximação entre prostituição e Bolsa foi uma constante.
De certo modo, o discurso
de Saccard, que é endossado
pelo conjunto do romance, é
liberal, no sentido atribuído a
essa palavra hoje em dia.
Zola exprimiu por meio de
uma imagem um argumento
que Proudhon havia utilizado
pouco mais de 30 anos antes
em seu panfleto: não se pode
separar, como queriam os
moralistas, a especulação séria da aposta pura e simples.
Era por causa disso que Proudhon pregava o fim da Bolsa!
FOLHA - Tomando como pano de
fundo a oposição entre campo e cidade, que marcou a ficção do século 19, pode-se dizer que a Bolsa representava a quintessência da vida urbana de então?
REFFAIT - Perfeitamente. Pode-se ver isso muito bem nos
pequenos romances que, dos
anos 1850 aos anos 1880, retratavam um herói provinciano e virtuoso que desembarca
em Paris e aí descobre a Bolsa.
Essas obras permitem ora
adotar uma postura de ingenuidade, ora vituperar a corrupção da capital em oposição
à pureza da província.
Assim, em certos romances,
vemos se opor o banco da província, virtuoso (que faz empréstimos a agricultores ou a
industriais honestos) e o banco parisiense, vicioso, que se
ocupa em assegurar a emissão
de títulos na Bolsa.
O que é certo é que a Bolsa,
desde a literatura dos anos
1850, aparecia como o coração
de Paris, a bomba que aspira e
expira, assegurando a circulação do dinheiro na capital. E,
por extensão, era também ela
que promovia a corrupção da
babilônia que era Paris, para
os literatos do século 19.
O palácio Brongniart, construído a partir da destruição
de ruas de seu entorno, despontava como o centro de um
intenso círculo vital e social.
Vallès vira isso muito bem,
ativando todas as metáforas
da circulação sangüínea e social. E Zola exploraria à perfeição esse motivo, que estaria
a serviço de seu imaginário.
Basta ler as primeiras páginas
de seu romance, sobre as carruagens que invadem a praça
da Bolsa no início da tarde.
Ela também era um topoi
dos cartões-postais da época.
FOLHA - As Bolsas de todo o mundo têm oscilado muito devido à crise com as hipotecas subprime nos
EUA. O que a literatura pode ensinar à economia?
REFFAIT - Sua pergunta sugere
que a literatura poderia nos
consolar das perdas ou, então,
nos advertir sobre os desastres nas Bolsas. De fato, a dimensão moral da literatura da
Bolsa no século 19 é clara: as
peças de teatro ou os romances que nós podemos ler colocam em questão os valores,
em todos os sentidos.
Elas se interrogam sobre o
que resta àqueles que perdem
tudo na Bolsa e opõem os arruinados e os especuladores.
Fazem a caricatura dos investidores como os "otimistas",
que investem quando as ações
estão em alta, e os "pessimistas", que o fazem quando estão em baixa.
Esses comportamentos são
uma simbolização intermediária, a meio caminho da abstração do indivíduo racional,
segundo os economistas, e
dos seres complexos que de
fato somos.
Era como se os romances
sobre a Bolsa oferecessem
uma simulação, em pequena
dimensão, da alquimia dos
comportamentos humanos
em uma situação de crise, por
exemplo.
Mas me parece mais convincente a relação íntima que
existe entre a ficção literária,
em termos gerais, e a ficção
sobre a Bolsa, na medida em
que ambas implicam uma
narrativa (pode-se jogar com
os dois sentidos da palavra
"ação": o de intriga e o de título da Bolsa).
A narrativa também tem
um fim, ela também é uma especulação, sobretudo quando
trabalha com efeitos da distância, dos pontos de vista e
do suspense -uma espécie de
delito de iniciados.
A resposta é, sim, a literatura pode instruir a economia,
por meio de suas estruturas e
figuras. [O filósofo francês]
Michel Serres mostrou que as
metáforas e os motivos de Julio Verne [escritor pioneiro da
ficção científica] poderiam representar conceitos científicos futuros.
Do mesmo modo, o romance não poderia ter uma pertinência maior do que os modelos utilizados na economia?
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
pelo site
www.alapage.com
Texto Anterior: + Comportamento: O não essencial Próximo Texto: Inadimplência gerou quebras nos Estados Unidos Índice
|