|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Livros
As várias faces do eu
Influente, "A Verdade da Poesia" trata da relação entre o esteticismo e a direita
MARCOS SISCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA
P
ublicado originalmente em 1969, "A
Verdade da Poesia",
de Michael Hamburger, é uma das obras
mais influentes no estudo da
poesia moderna. Embora não
seja exatamente uma história
da poesia, o livro recobre um
espectro amplo de autores, no
período que vai das origens da
modernidade (Baudelaire) até
a poesia experimental das décadas de 1950 e 1960.
O internacionalismo é um
dos aspectos mais notáveis do
livro. Hamburger traça um painel da poesia ocidental que inclui línguas e países "periféricos", da Polônia à América Latina, incluindo o Brasil. Mas,
para quem espera um simples
panorama, o livro pode surpreender.
Embora comente um número considerável de textos e autores, aborda de modo mais enfático as relações que diferentes poetas mantiveram com a
"religião da poesia": a idéia de
poesia pura ou absoluta.
Em que pesem as singularidades de cada obra, a história
da poesia moderna, para Hamburger, é basicamente a história das contradições provocadas pelo esteticismo e pelo solipsismo poético, associados
não necessariamente, mas freqüentemente, ao conservadorismo político.
A situação se modifica, aqui e
ali, nem tanto pelo empenho
político dos autores quanto pela sua capacidade de privilegiar
a "experiência", de reativar
identidades plenas para além
da derivação das máscaras, de
não trair a concreção artística e
a visada pública da cultura
ameaçada pelo niilismo "pós-nietzschiano".
Para o crítico, a autonomia
poética pode significar também um afastamento da vida.
Ainda que freqüentemente
contraposta pelos poetas ao comercialismo e ao utilitarismo
burguês, a "verdade" poética
-seja definida como verdade
das idéias ou como verdade estética, intrínseca- é ela mesma
paradoxal, ou seja, revela as relações mal resolvidas entre eu
poético e eu empírico, entre
discurso poético e vida pública.
Com o auxílio de concessões
localizadas e estratégicas, especialmente estéticas, o caráter
retificador do julgamento crítico é notório.
As obras de poetas como Mallarmé, Rilke, Wallace Stevens,
Paul Celan, entre outros, são
sistematicamente lidas a contrapelo, com uso freqüente da
biografia, mesclada a elementos de análise poética e informações sobre história política
e literária.
Com a ambição teórica de
superar os equívocos tanto do
"formalismo" quanto do "materialismo", o livro é uma lição
de crítica dialética, passando
da percepção mais arguta das
dissimetrias entre dizer e fazer
ao atalho argumentativo mais
perverso, eventualmente irônico, produtor de equívocos.
Em termos mais amplos,
percebe-se que, ao rigor crítico,
associa-se uma curiosa e indisfarçada cautela em relação à
poesia e aos poetas franceses,
baseada em generalidades discutíveis que acabam confirmando para o leitor a matriz
parisiense dos percalços da
poesia absoluta ou do "hermetismo" modernos.
Ao repetir a tese de Hugo
Friedrich -segundo a qual a
poesia pós-baudelairiana, ao
voltar-se para si mesma, realiza
uma espécie de renúncia da
realidade-, o livro se recusa a
atribuir coerência ética, para
não dizer política, a obras que
há 150 anos vêm dramatizando, dando ênfase -à sua maneira, formulando- ao paradoxo propriamente crítico entre
beleza poética e verdade humana -que Hamburger considera
como o único traço "constante
e perene" da situação poética
moderna.
Nem por isso, o crítico -que
foi também poeta e tradutor,
inclusive de autores com os
quais mantinha distância ideológica- deixa de exprimir um
profundo encanto pela poesia,
uma espécie de disponibilidade
humanista para sua complexa
verdade, inclusive pelo fato de
manter em perspectiva as possibilidades abertas pela proximidade da poesia com a ciência, com a tecnologia e com a
indústria cultural.
Destaque-se, além do inegável interesse da obra, a edição
impecável, com informações
sobre o autor, um civilizado índice onomástico e um trabalho
de tradução que inclui boas
versões brasileiras dos poemas
citados no transcorrer do texto.
MARCOS SISCAR é professor de literatura na
Universidade Estadual Paulista, em São José do
Rio Preto.
A VERDADE DA POESIA
Autor: Michael Hamburger
Tradução: Alípio Correia de F. Neto
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/
3218-1444)
Quanto: R$ 65 (460 págs.)
Texto Anterior: + Livros: Roça em transe Próximo Texto: + Lançamentos Índice
|