São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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As várias faces do eu

Influente, "A Verdade da Poesia" trata da relação entre o esteticismo e a direita

MARCOS SISCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

P ublicado originalmente em 1969, "A Verdade da Poesia", de Michael Hamburger, é uma das obras mais influentes no estudo da poesia moderna. Embora não seja exatamente uma história da poesia, o livro recobre um espectro amplo de autores, no período que vai das origens da modernidade (Baudelaire) até a poesia experimental das décadas de 1950 e 1960.
O internacionalismo é um dos aspectos mais notáveis do livro. Hamburger traça um painel da poesia ocidental que inclui línguas e países "periféricos", da Polônia à América Latina, incluindo o Brasil. Mas, para quem espera um simples panorama, o livro pode surpreender. Embora comente um número considerável de textos e autores, aborda de modo mais enfático as relações que diferentes poetas mantiveram com a "religião da poesia": a idéia de poesia pura ou absoluta.
Em que pesem as singularidades de cada obra, a história da poesia moderna, para Hamburger, é basicamente a história das contradições provocadas pelo esteticismo e pelo solipsismo poético, associados não necessariamente, mas freqüentemente, ao conservadorismo político.
A situação se modifica, aqui e ali, nem tanto pelo empenho político dos autores quanto pela sua capacidade de privilegiar a "experiência", de reativar identidades plenas para além da derivação das máscaras, de não trair a concreção artística e a visada pública da cultura ameaçada pelo niilismo "pós-nietzschiano".
Para o crítico, a autonomia poética pode significar também um afastamento da vida. Ainda que freqüentemente contraposta pelos poetas ao comercialismo e ao utilitarismo burguês, a "verdade" poética -seja definida como verdade das idéias ou como verdade estética, intrínseca- é ela mesma paradoxal, ou seja, revela as relações mal resolvidas entre eu poético e eu empírico, entre discurso poético e vida pública.
Com o auxílio de concessões localizadas e estratégicas, especialmente estéticas, o caráter retificador do julgamento crítico é notório. As obras de poetas como Mallarmé, Rilke, Wallace Stevens, Paul Celan, entre outros, são sistematicamente lidas a contrapelo, com uso freqüente da biografia, mesclada a elementos de análise poética e informações sobre história política e literária.
Com a ambição teórica de superar os equívocos tanto do "formalismo" quanto do "materialismo", o livro é uma lição de crítica dialética, passando da percepção mais arguta das dissimetrias entre dizer e fazer ao atalho argumentativo mais perverso, eventualmente irônico, produtor de equívocos.
Em termos mais amplos, percebe-se que, ao rigor crítico, associa-se uma curiosa e indisfarçada cautela em relação à poesia e aos poetas franceses, baseada em generalidades discutíveis que acabam confirmando para o leitor a matriz parisiense dos percalços da poesia absoluta ou do "hermetismo" modernos.
Ao repetir a tese de Hugo Friedrich -segundo a qual a poesia pós-baudelairiana, ao voltar-se para si mesma, realiza uma espécie de renúncia da realidade-, o livro se recusa a atribuir coerência ética, para não dizer política, a obras que há 150 anos vêm dramatizando, dando ênfase -à sua maneira, formulando- ao paradoxo propriamente crítico entre beleza poética e verdade humana -que Hamburger considera como o único traço "constante e perene" da situação poética moderna.
Nem por isso, o crítico -que foi também poeta e tradutor, inclusive de autores com os quais mantinha distância ideológica- deixa de exprimir um profundo encanto pela poesia, uma espécie de disponibilidade humanista para sua complexa verdade, inclusive pelo fato de manter em perspectiva as possibilidades abertas pela proximidade da poesia com a ciência, com a tecnologia e com a indústria cultural.
Destaque-se, além do inegável interesse da obra, a edição impecável, com informações sobre o autor, um civilizado índice onomástico e um trabalho de tradução que inclui boas versões brasileiras dos poemas citados no transcorrer do texto.

MARCOS SISCAR é professor de literatura na Universidade Estadual Paulista, em São José do Rio Preto.


A VERDADE DA POESIA
Autor:
Michael Hamburger
Tradução: Alípio Correia de F. Neto
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 65 (460 págs.)



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