São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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UM CRÍTICO EM MUTAÇÃO

por Luiz Costa Lima

Sérgio Buarque de Holanda pertenceu a uma geração em que a vocação intelectual não supunha uma escolha profissional cedo estabelecida. Se isso apresentava o risco de criar um enciclopedismo parasitário, continha porém a vantagem de permitir que o letrado se familiarizasse com mais de uma área do saber.
Por não haver pertencido ao mundo dos homens-de-um-olho-só, Sérgio Buarque, embora seja justamente exaltado por seus colegas historiadores como um dos marcos da historiografia brasileira, não é leitura apenas para historiadores. Já o seu livro de estréia, "Raízes do Brasil", ainda que seja claramente uma interpretação sociohistórica, mostrava o amálgama dos interesses intelectuais que o respaldava.
Se desse amálgama resultariam obras inequivocamente historiográficas, seu profundo interesse pela literatura se concretizava tanto pelo livro que não concluiu, publicado postumamente por Antonio Candido, "Capítulos de Literatura Colonial", quanto pelos dois volumes de "O Espírito e a Letra", em que Antonio Arnoni Prado veio a editar a quase totalidade de ensaios e de crítica de rodapé que escrevera entre 1920 e 1959. É ele um dos documentos mais preciosos do modo como o fenômeno literário foi apreciado, entre nós, desde o modernismo até fins dos anos 50.
O primeiro Sérgio Buarque, de apenas 18 anos, mostra que seu entusiasmo pelo modernismo não esperou pela Semana de Arte Moderna. Em artigo de setembro de 1921, referindo-se a Palazzeschi, Marinetti e Apollinaire, caracterizava o futurismo como estimulador de todas as liberdades e afoitezas. E, em dezembro do mesmo ano, referia-se ao "futurismo paulista", dele dizendo ter mais pontos de contato com Max Jacob, Apollinaire, Picabia e Tzara do que com Marinetti. O modernismo paulista nascia combativo e otimista. Dois anos após seu surgimento oficial, em artigo de setembro de 1924, o crítico já era capaz de associá-lo ao "espírito moderno", o qual (se subentende que entre nós), se "não se revelou ainda por obras de mérito excepcional (...), valerá pelo menos como negação das negações".
Em artigo bem posterior, de 1948, reitera que seu endosso não significava adesão sem limites: "Tomado em bloco, o modernismo foi um movimento negativista -e não poderia deixar de sê-lo". Essa simpatia com reservas o habilitará a acompanhar em cima da hora as produções de Bandeira, Mário, Oswald e Alcântara Machado; a não menos instantaneamente compreender as rápidas conquistas do modernismo ("A gente de hoje", escreve em outubro de 1926, "aboliu escandalosamente [..." aquele ceticismo bocó, o idealismo impreciso e desajeitado, a poesia "bibelô", a retórica vazia, todos os ídolos de nossa intelligentsia"); a reconhecer o modernismo sem metas precisas e, em traços largos, caracterizado pelo realce da expressão nacional.
Assinale-se que Sérgio Buarque sempre viu esse realce sob restrições. Por isso não hesitará em criticar aqueles que, como diz em artigo de 1951 acerca de Vieira, supõem "que antes de nossa independência política já tínhamos uma expressão literária nacional"; ou os que esperam "que uma arte brasileira, com alcance universal, há de nascer inevitavelmente da simples valorização dos motivos nacionais" (artigo de abril de 1950). Adepto avant la lettre do modernismo, Sérgio Buarque nunca o mitificou. Soube por isso reagir com sensibilidade aos rumos que a literatura brasileira assumiu depois da Segunda Guerra.
Isso não só o abre para a apreciação da geração de 1945 mas também exige de si próprio uma reflexão aguda sobre o fenômeno da poesia. Pois Sérgio Buarque nunca confundiu crítica de jornal com mera apreciação judicativa. Daí, em artigo de fevereiro de 1930 sobre Thomas Mann, sua capacidade de relacionar a prosa ficcional como "poesia de situação" com a poesia, enquanto exploração da linguagem. Daí levantar-se a questão do que é intrínseco à crítica literária.


ENSAIOS E ARTIGOS PARA JORNAL PRODUZIDOS ENTRE 1920 E 1959 REVELAM UM ENTUSIASTA AVANT LA LETTRE DO MODERNISMO, EMBORA NUNCA TENHA CHEGADO A MITIFICAR O MOVIMENTO


A questão aparece tanto em artigo de agosto de 1941 -"o maior embaraço estaria provavelmente em determinar com exatidão e poucas palavras o que não é o intrínseco"- quanto, no auge de sua leitura dos "new critics", em dezembro de 1948: "Se houvesse do que estranhar na melhor crítica moderna da Inglaterra e dos Estados Unidos seria [...] menos o formalismo exclusivo do que a presença imoderada de pontos de vista históricos, biográficos, psicológicos, sociológicos e até econômicos". Quanto à poesia que então se publica, o vemos, em artigo de novembro de 1948, submeter a poesia de Bueno de Rivera a uma análise técnica, hoje impraticável em página de jornal, e concluir por sua limitação; e a destacar, em junho de 1951, a obra dos estreantes Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Mas, entre os poetas que então comenta, João Cabral de Melo Neto é o que mais lhe intriga. Dedicar-lhe três artigos seguidos (em 3, 10 e 17 de agosto de 1952) mostra a surpresa que lhe causava... Sem que tenha de todo vencido os enganos, Sérgio Buarque chega a comover quando reconhece, em 3 agosto de 1952: "Confesso bastante envergonhado que meus primeiros contatos com sua obra e, depois, o crescente interesse que ela pôde inspirar-me nem sempre me deixaram totalmente livre de hesitações e suspeitas". As apreciações de Cabral por Sérgio Buarque registram a ruptura introduzida pelo poeta. Sérgio Buarque sabe reconhecer o quanto o novo poeta dá inflexão bastante diversa ao automatismo psíquico dos surrealistas; quanto seu louvor do dinâmico e da palavra asperamente crítica se distancia da bela harmonia renascentista; quanto sua dicção se afasta não só do modernismo mas de toda a nossa tradição; nada disso contudo o impede de advertir, com razão, que toda aquela profunda repulsa da tradição poderá servir de "ponto de partida de uma nova convenção".

Desvendar o poema
A plasticidade de juízo que o crítico manifesta é correlata à auto-imposição que se fizera de pensar a linguagem poética. Para alguém educado sob o libertarismo anárquico modernista, o "formalismo" de 45 poderia provocar ou repulsa ou curiosidade. Para Sérgio Buarque, a opção nem sequer se põe. A curiosidade que cultiva o leva ao entusiasmo com que se refere a Auerbach e à leitura conflitiva do "new criticism". À procura, em suma, de entender melhor seu objeto. E, embora tivesse razão em reagir ao cordão sanitário que os "new critics" armaram em torno do poema, a posição a que chega não é satisfatória. "Através de alguns daqueles estudos", diz em artigo de maio de 1951, "[...] a ciência poderá, cada vez mais, aproximar-se da compreensão do mistério da poesia, embora sem a esperança de desvendá-lo em sua plenitude".
Em um misto de cavalheirismo e discreta reserva, Sérgio Buarque mostra sua boa vontade, reconhecendo que os "new critics" avançaram no que se propuseram, sem contudo atingir seu alvo. Mas algo aí não bate bem: o alvo, como o próprio Sérgio Buarque o percebia, não fora bem calculado. Independentemente dos limites dos "new critics", não há pleno desvendamento da poesia porque a poesia não é uma coisa -e isso se ainda se admitir que as coisas têm uma estrutura última. A mesma frustrada reflexão se repete adiante.
Em artigo de agosto de 1951, onde argumenta que, diante de certas análises, é difícil distinguir o que pertence ao objeto e o que "o crítico nela(s) introduziu de modo mais ou menos caprichoso". O engano resultava de que o autor supunha que a crítica ou é impressionista ou objetiva. Em suma, uma certa concepção "objetivista" de ciência dificultava seu avanço. Mas nisso o embaraço não era apenas seu. Ou apenas da década de 1950. Ele tende mesmo a permanecer enquanto se confundir ciência com técnica aplicada.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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