São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE

por Alcir Pécora

Se, de acordo com os antigos aristotélicos, devemos chamar "comédia" às histórias que começam mal e terminam bem, parece justo incluirmos no gênero os sucessos passados nestes cem anos de Sérgio Buarque de Holanda. Pois, hoje, de maneira quase unânime, ele é reconhecido como um dos grandes das ciências humanas no Brasil e, há bem pouco tempo atrás, não era assim. Nos anos 70, por exemplo, era comum apresentar-se graves reparos a suas idéias, sintetizadas preferencialmente no tópico da cordialidade brasileira.
Elas tanto mascarariam, internamente, as contradições dos interesses de classe quanto, externamente, a ruptura radical entre o Brasil e a antiga metrópole portuguesa, na passagem da condição de colônia para a de país independente. A naturalidade com que Sérgio Buarque empregava o híbrido luso-brasileiro era uma das evidências apresentadas do caráter ideológico conservador de suas formulações. E, se ele nunca chegou a ser despachado para as mesmas fossas infernais em que ardia Gilberto Freyre, desqualificado como ideólogo do conservadorismo oligárquico, não será exagero afirmar que andou pelas redondezas.
Pois o mesmo Sérgio Buarque, hoje, parece alçado a um panteão de intocáveis. Por quê? O que mudou? Vou arriscar duas hipóteses. Uma boa, outra nem tanto. Primeiro, a boa, manifesta expressão de meu desejo. Vou formulá-la nos limites de minha atividade de crítico literário e, para isso, retomar brevemente duas formulações de Sérgio Buarque a respeito da produção letrada da colônia: uma relativa a Vieira, no século 17; outra, ao arcadismo, no 18.
Quanto ao primeiro, gostaria aqui, por um instante, de considerar a atenção que Sérgio Buarque confere ao exame de uma questão aparentemente secundária: a abrupta mudança de posição do pregador em relação ao rei a que presta obediência, no momento da chamada Revolução de Dezembro, que devolveu a autonomia política a Portugal, após os 60 anos da monarquia dual (1580-1640). A Bahia, contudo, levou alguns meses para ter notícia do ocorrido, de modo que Vieira, em seus sermões, continuava a reconhecer Filipe 4º como rei de Portugal. Ao inteirar-se afinal da peripécia ocorrida na Península, o jesuíta passou, de pronto, a defensor do novo soberano português.
A maneira como Sérgio Buarque aborda esse ponto é muito elucidativa do interesse que ele pode despertar entre os pesquisadores mais jovens, não fora, ainda, a agudeza de tomar um aspecto secundário da questão e dele extrair uma figura capaz de revelar a sua forma mais geral. Evitando toda facilidade interpretativa imediata e os anacronismos mais grosseiros decorrentes dela, Sérgio Buarque refuta a acusação comum de "incoerência" ou de "oportunismo" do jesuíta, para tentar situar a mudança de sua posição nos termos de um verossímil histórico distinto do que rege o presente.
Assim, propõe que a "coerência pessoal" e as "convicções próprias" não são valores que possam responder adequadamente à questão da "verdade" no século 17 católico, uma vez que, nele, tal questão não se põe sem a consideração de categorias como a de "tradição" e de "autoridade".
Alheio ao cartesianismo que faz da própria mente condição de "verdade", Vieira, segundo Sérgio Buarque, considera que os meios para o seu conhecimento se encontram sobretudo fora e acima de nós. Fundar-se "unicamente em si mesmo, naquilo a que depois se chamaria enfaticamente de "razão natural'", possivelmente equivale, em Vieira, a fundar-se "não na razão, mas na opinião, insuflada em grande parte pelos afetos", parcialíssimos e dispostos a conferir e retirar ser, sem mais consideração de substância, que a do desejo pessoal.
Ou seja, para Sérgio Buarque, apenas conhecendo o verossímil que opera a credibilidade no período, poder-se-ia avaliar corretamente o sentido da mudança nas ações do jesuíta, que, de outra maneira, seria falseado por uma sobredeterminação indevida dos conceitos do individualismo e do racionalismo laicos admitidos genericamente no pós-cartesianismo.
Uma vez reposta em seus termos históricos, a mudança do jesuíta deveria interpretar-se como reta prudência, que visa à participação na verdade sem a deformação dos afetos desordenados, nada tendo a ver com incoerência política ou pessoal. Tal prudência, historicamente concebida, explicaria com maior eficácia os diferentes discursos públicos de Vieira, devidamente ajustados às autoridades definidas institucionalmente.


ABORDAGEM INOVADORA SOBRE PADRE VIEIRA DESVENDOU A NOÇÃO DE VERDADE NO SÉCULO 17 E DESAUTORIZOU INTERPRETAÇÕES ROMÂNTICAS BASEADAS EM 'CONVICÇÕES PRÓPRIAS'


O andamento que Sérgio Buarque dá à questão é duplamente importante. Primeiro, enquanto crítica da história ou da análise literária, aqui mapeadas como domínios que demandam uma metodologia que não pode ignorar os limites rigorosamente históricos das interpretações e de seus objetos. Segundo, enquanto construção verossímil do quadro de valores vigente no século 17 ibérico, pois a referência à categoria da prudência engata uma série estratégica de peças no "puzzle" dos argumentos eficazes do período, como o da dissimulação civil e o da razão de Estado, apropriações históricas da "phronesis" aristotélica.
Isso basta quanto a Vieira e ao século 17. Passemos ao 18. Aqui, a dissonância de Sérgio Buarque em relação aos lugares da tradição crítica que ata românticos e modernistas é patente, à medida que, ao contrário da posição comum a ambos, ressalta as diferenças entre as tendências individualizadoras e realistas cultivadas pelos românticos e aquelas prezadas pelos árcades. Por exemplo, em relação a Gonzaga, Sérgio Buarque observa que a sua concepção de Marília nada tem de realista ou particular, mas sim de típico e de ideal, a prevalecer "em todas as circunstâncias sobre o individual, o contingente, o sensível". Numa passagem elucidativa a propósito da aparente contradição dos "retratos de Marília", descrita às vezes como loira, outras, como morena, Sérgio Buarque anota que a "contradição" tão observada pela crítica posterior deixaria perfeitamente "indiferentes ou insensíveis os contemporâneos de Gonzaga". As supostas notas realistas dos árcades, muito valorizadas pelos pós-românticos, não passam, para Sérgio Buarque, de "convenção e afetação bucólica", índice da "adesão a um ideal de vida eternamente válido" e do desejo de "restaurar na esfera da arte uma espécie de paraíso perdido".
Assim Sérgio Buarque se resguarda das leituras teleológicas da poesia setecentista e o faz de forma especialmente interessante ao considerar os seus modelos internacionais, sobretudo os italianos, permitindo-lhe adotar uma crítica convincente do vocabulário usualmente empregado no tratamento dos árcades. Em se tratando destes, noções como as de "livre inspiração" e de "espontaneidade" teriam de ser abandonadas em favor de outras, como as de "estudo" e "esforço"; o levantamento de "valores universais" deveria prevalecer sobre o de "verdades particulares, únicas, inefáveis"; nenhuma relevância deveria ser atribuída à idéia de "personalidade" e mesmo à concepção de obras "originais" em contraposição à decidida recriação de matrizes da tradição antiga.
Tal ajuste de conceitos impediria igualmente que se entendesse a produção arcádica mineira como associada a algum tipo de "sentimento revolucionário" ou de "brasilidade" única e original; os seus melhores versos, no máximo, trariam reivindicações "paroquialistas" ou "localistas", nas quais seria aleatório pleitear traços nacionalistas: "E não será deformar o passado chamar de impulso autonômico certas manifestações de incipiente nativismo que encontramos em toda a nossa história colonial? Manifestações que, em geral, não exprimem mais que uma fidelidade instintiva ao próprio lar, à parentela, à vizinhança, à terra natal, e que têm seu correlativo necessário na aversão ao adventício, ao que fala língua diversa ou pronuncia diversamente a mesma língua, ao que tem costumes, preconceitos e -quem sabe?- credos exóticos".
Ou seja, nos termos aplicados por Sérgio Buarque, seria um erro de perspectiva pretender equiparar tal "fidelidade ao pequeno rincão" ou "patriotismo de espécie paroquial" ao que o século 19 chamaria, com sentido muito diverso, de "consciência nacional".
Avançando o cerco às posições românticas, tantas vezes adotadas pelos modernistas, que se sentiram tentados a fincar o seu padrão de Brasil em Minas Gerais, Sérgio Buarque observa que a literatura brasileira dos tempos coloniais é "prolongamento da literatura portuguesa" e, enquanto tal, "não pode ser caprichosamente separada do conjunto a que pertence". Nesse ponto, a meu ver, fica especialmente claro por que as posições de Sérgio Buarque se mostram tão frutíferas para historiadores e críticos desapegados de um projeto nacionalista para o passado, mas interessados em notar diferenças importantes atuando nos regimes interpretativos das obras produzidas em tempos diferentes.
Os dois exemplos levantados aqui, Vieira e os árcades, ajudam a realçar o mesmo: a preocupação de Sérgio Buarque em evitar que a mão pesada do presente deforme -é o termo que usa- as delicadas provas que restam das diferenças do passado, sobretudo as traduzidas nas obras literárias. Vem daí o meu palpite bom sobre a alta consideração de que goza Sérgio Buarque atualmente. Num momento em que se foram as certezas dos paradigmas revolucionários do século 19 e, com elas, a naturalização das teorias e a absolutização do espírito no presente como prova essencial da perspectiva histórica, as muitas faces de um passado não mais infantilizado ou preparatório, não mais ontologicamente subsidiado pelo que o ultrapassa, surgem com uma complexidade estranha, esquisita, que a pecha de ideológica ou de irracional não resolve mais nem sequer neutraliza.
Em época assim insegura, quando o passado parece sacudir-se e oferecer alternativas distintas das que pareciam óbvias para os futuros acordos a ser arbitrados, intelectuais como Sérgio Buarque, atentos às diferenças dos tempos e dos objetos, sem tratar logo de canibalizá-los e orgulhar-se disso, acabam sendo relembrados e legitimamente comemorados.
Essa a hipótese boa, eu havia dito. Agora, a menos. Nela, o atual prestígio de Sérgio Buarque pouco tem a ver com o desejo de discutir seriamente as suas idéias, que é afinal a verdadeira homenagem, senão a única, que pode dignificar o intelectual. O que contaria seria mais a sua função de "auctoritas", como título legitimador de discursos, a que passaria a ter direito por simples envelhecimento e institucionalização de suas idéias. Portanto, Sérgio Buarque, assim, celebrar-se-ia como se celebra uma instituição de prestígio e, na melhor das hipóteses, uma instituição genericamente sadia como a das ciências humanas ou a da universidade.
As idéias estariam aposentadas, mas bem viva a instituição. É possível? Nesse caso, se não temos brasilidade precoce, temos ao menos longa duração: estaríamos funcionando na mesma base da tradição e da autoridade que Sérgio Buarque apontava como regimento da prudência em Vieira. Mas, sendo assim, ainda teríamos direito de atribuir final feliz à história dos seus primeiros cem anos?

Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).


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