São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ADAGIO MA NON TROPPO

por Antonio Arnoni Prado

Um dos riscos que Sérgio Buarque de Holanda sempre evitou foi o de seccionar a continuidade histórica dos estilos e dos temas sob a alegação, tão cara à crítica positivista, de que, assim demarcados, eles se destacavam de um conjunto harmônico que os ordenava de fora, permitindo dividir a evolução humana e a produção da cultura em seções independentes, imobilizadas para sempre "como se fossem estátuas de um museu".
A advertência vem a propósito de uma de suas discordâncias em relação ao domínio rococó, quando, num tempo em que se procurava isolar o Renascimento e o Barroco atrás de fronteiras inexpugnáveis inspiradas na história da arquitetura, a imaginação de alguns críticos e historiadores ("Ermatinger e principalmente Herbert Cysarz") acabou caindo no exagero oposto de transpor para as letras, em particular para o Barroco, "manifestações tão díspares na aparência" -nos diz ele- "quanto a pintura de Watteau e os quadros de Tiepolo, o estilo Luís 15 e o frívolo arcadismo, a música de Gluck e a franco-maçonaria, as comédias de Marivaux e o experimentalismo de Hume". Sérgio Buarque entendia que, para compreender a continuidade histórica de um estilo ou mesmo a predominância de uma tópica sobre outra no conjunto da obra de um determinado autor, é indispensável recorrer a uma pausa momentânea, que ele definia como "um adágio no curso dos acontecimentos, sem o qual mal se poderá perceber como neles se entrelaçam os pensamentos e as obras dos homens". Mas advertia que o grande perigo de um artifício como esse é que muitas vezes a limpidez da imagem acaba ofuscando a lucidez do crítico pelo excesso enganoso da nitidez dos contornos, convertendo a impressão em juízo, o comentário em dogma, a interpretação do documento em expressão de realidade. Sabemos hoje que a grande contribuição desse artifício hermenêutico para a crítica do modernismo foi ampliar a notação do recorte como traço integrador de contextos inconciliáveis, um desvio que, no âmbito de nossa tradição literária, permitiu revelar como formas distintas e muitas vezes opostas escondem "certas zonas de contato e mesmo laços secretos" que justificam e parecem reclamar um tratamento comum, quando não se explicam "pela própria contrariedade". No conjunto dos estudos literários sobre a colônia, um de seus efeitos mais surpreendentes foi desarticular o consenso dogmático que vinha de Sílvio Romero (1851-1914) e postulava, por exemplo, que o declínio do estilo alambicado da fase barroca, mais do que uma questão de voga literária, decorreu de uma imposição patriótica interessada em mostrar que o despojamento das excentricidades gongóricas do conceptismo correu paralelo ao declinar da influência espanhola nas letras portuguesas dos dois mundos.

Influências italianas
No horizonte oposto, o artifício livre da leitura de Sérgio Buarque veio recompor a persistência dos motivos hispânicos na configuração desigual da estrutura aparente de algumas composições genuinamente populares recolhidas por Matias Pereira da Silva na "Fênix Renascida" (1716) e, já no final do século 18, entre os árcades de Minas, a reafirmação dos mesmos motivos nos alexandrinos castelhanos utilizados por Alvarenga Peixoto na epístola poética em homenagem a Basílio da Gama.
Por esse desvio hermenêutico que imobiliza os tempos e os modos do poema à medida que os relê em adágio, em busca das ressonâncias ocultas e dos efeitos harmônicos imprescindíveis à compreensão do desarranjo natural das circunstâncias, a crítica de Sérgio Buarque afina a recusa modernista em tratar a literatura e a cultura brasileira como "um todo homogêneo dotado de contornos próprios", para mergulhar na particularidade contrastiva dos tons menores, sem perder de vista a figuração do conjunto.


ANÁLISE CERRADA DO POEMA ALIADA À PERSISTÊNCIA DOS MOTIVOS LITERÁRIOS NO TEMPO DERRUBOU DOGMAS E RENOVOU A CRÍTICA SOBRE O BRASIL COLÔNIA


Daí ter redefinido a persistência dos motivos hispânicos nas letras do Brasil Colônia não mais como uma imposição inevitável do critério político elaborado por Sílvio Romero, mas sim como um efeito recíproco que se integra à própria superação de sua voga, revelada de modo pioneiro quando Sérgio Buarque os identifica no interior das influências italianas da Arcádia.
Aqui, mais do que um traço de expressão nacionalista a definir a rotação dos estilos, o declínio do espanholismo se entremescla à expressão simultânea da realidade da Arcádia, naquele sentido original de que os árcades "tinham surgido para combater o mau gosto nas letras", um mau gosto que para os portugueses da época -nos diz ele- era sinônimo do mesmo gosto espanhol que a sua crítica acabaria pela primeira vez integrando aos enigmas góticos de um Silva Alvarenga, aos melodramas de Metastasio aqui parodiados por Cláudio Manuel da Costa e José Basílio da Gama, às ressonâncias de Paulo Rolli no esquema estrófico de Tomás Antônio Gonzaga e à autonomia da concepção do "Uraguai" em relação aos moldes camonianos.
Mais importante do que isso, no entanto, é perceber que esse movimento circular de integração e contraste, ao mesmo tempo em que desarticula a rigidez cientificista da velha crítica, alinha-se à visão mais ampla que antecipou, em "Raízes do Brasil" sobretudo, as últimas ressonâncias do "lento cataclismo" em que veio se desenhando "o aniquilamento das raízes ibéricas da nossa cultura", à busca de um estilo novo cada vez mais distante das formas tradicionais que definiram a nossa condição de país dependente.
A melhor forma de compreender a extensão dessa ruptura é percorrer o movimento simultâneo dos ciclos que se sucedem e ver como neles a literatura dos árcades brasileiros reaviva, a partir de Sérgio Buarque, um contraste emblemático com a "visão singela e tranquila da América Portuguesa" que vinha dos primeiros cronistas e que um crítico e historiador como Manuel de Oliveira Lima reintegra a um patrimônio espiritual comum sob a égide acadêmica das raízes latinas do nosso iberismo.
Ao contrário de Sérgio Buarque, que, na, esteira do modernismo, ampliava para os outros países da América Latina "a dissolução irrevogável das nossas sobrevivências arcaicas", Oliveira Lima faz recuar para a monarquia portuguesa o fato de o Brasil ter escapado das sérias crises que acometeram os países vizinhos, graças "à personificação da autoridade sem tirania, da força sem violência, da moralidade sem hipocrisia e da liberdade sem indisciplina".
Em seu livro "Aspectos da Literatura Colonial Brasileira", por exemplo, os poetas de Minas aparecem como "os mais ilustres da língua portuguesa" (a metrópole não poderia se orgulhar de ter outros semelhantes), apesar da ressalva de que a expressão "Escola Mineira" foi artificialmente construída para designar uma plêiade de escritores que, a seu ver, "não fundou absolutamente uma escola e não se organizou em nenhuma Arcádia de além-mar", impondo-se apenas pelo talento individual que se nutriu do patrimônio comum haurido nas reminiscências clássicas que fazem de Claudio Manuel da Costa um neoclássico europeu e de Gonzaga um lírico que se antecipa ao romantismo da metrópole, ficando para Silva Alvarenga a síntese de um estilo que se fecha sobre si mesmo à medida que resume "a forma excelente de Cláudio, o estremecimento amoroso de Gonzaga, a suntuosidade altaneira de Alvarenga Peixoto", acrescentando a todos esses atributos retóricos "um colorido mais particularista que jeitosamente sabe combinar com aqueles predicados gerais".
É no horizonte dessa dicção palavrosa, que define a continuidade da literatura brasileira como "um reflexo do pensamento europeu" e elege a Academia Brasileira como sentinela avançada da "árvore latina sob a luz dos trópicos", que a crítica renovadora de Sérgio Buarque produz os efeitos mais devastadores, fragmentando a linearidade simbólica da colônia e abrindo-a para o jogo livre das dissonâncias que ele depois harmoniza sob um código provisório como nas melhores páginas que escreveu sobre o modernismo.

Antonio Arnoni Prado é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas, organizador de "O Espírito e a Letra - Estudos de Crítica Literária" (1996), de Sérgio Buarque de Holanda, e "fellow" da Fundação Guggenheim em pesquisa na Oliveira Lima Library, na Universidade Católica da América, em Washington.


Texto Anterior: Testemunha ocular
Próximo Texto: Historiador é tema de livros, documentários, mostras e seminários
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.