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Ponto de fuga
Jorge Coli
A cólera de Aquiles
A nitidez do embate, a limpidez controlada de seu caráter voluntário eleva a cena a uma beleza ética
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Jacques Drillon, francês, é
musicólogo, escritor e jornalista. Publicou, na revista "Le Nouvel Observateur",
um artigo sobre Zinedine Zidane. Foi em número do início de
junho, anterior à final da Copa
do Mundo. Drillon interroga-se sobre o que faz a beleza do
futebol de Zidane. Por que seus
lances são belos? Uma das respostas cruciais é a seguinte:
"Porque Zidane é econômico;
porque trabalha numa superfície muito reduzida; porque seu
gesto é raro. Como Matisse
[1869-1954]? Sim, é aquele que
desenha um traço perfeito.
Nunca exagera, fica no limite
da negligência. Sua maneira de
passar a bola com o exterior do
pé: uma batidinha desenvolta.
Um passe, para ele, é um gesto
pleno, a tal ponto que se torna
um código, um signo, como as
bocas de Matisse, precisamente, todas desenhadas da mesma
maneira. Não é mais um passe,
é o passe. Ele não nos oferece
suas "pequenas firulas", como
diz seu amigo Malek: alusão a
seus truques hábeis, realizados
com uma destreza miraculosa,
mas sem interesse; na verdade,
ele desenha traços sinuosos em
torno da assinatura desse objeto esférico, mas elástico, chamado bola. (...) Ser Zidane, ou
nada. Único dançarino em
meio a malabaristas, acrobatas
e brutos".
A metáfora que convoca Matisse seria afetada, se não fosse
tão justa. Drillon continua:
"Esse homem tenebroso, de
quem cada sorriso é uma recompensa, nunca fez nada em
sua vida que não fosse permitir
à elegância e à graça penetrarem em um meio que era totalmente desprovido delas...".
Aríete
Resta o último gesto, conclusivo de sua carreira, forte, inesperado e desconcertante. Ele é
contraditório com a imagem do
jogador apenas em aparência.
O adversário puxou-lhe a camisa, seguiu insultando. Zidane poderia conduzir-se dessa
mesma maneira, como fez o outro, como faz a maioria, no futebol e na vida, dando golpes baixos, dissimulados, covardes e,
assim, vingar-se.
Mas a cólera de Zidane não se
amesquinha. Ele prefere a exposição franca. Zidane adiantou-se com uma pequena corrida, traçando um semicírculo.
Voltou-se. Diante do mundo
inteiro, sem disfarce, sem vulgaridade, abaixou a cabeça e,
com precisão, golpeou o peito
do oponente. A nitidez do embate, a limpidez controlada de
seu caráter voluntário eleva a
cena a uma beleza ética.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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