São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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Ponto de fuga

Jorge Coli

A cólera de Aquiles

A nitidez do embate, a limpidez controlada de seu caráter voluntário eleva a cena a uma beleza ética

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Jacques Drillon, francês, é musicólogo, escritor e jornalista. Publicou, na revista "Le Nouvel Observateur", um artigo sobre Zinedine Zidane. Foi em número do início de junho, anterior à final da Copa do Mundo. Drillon interroga-se sobre o que faz a beleza do futebol de Zidane. Por que seus lances são belos? Uma das respostas cruciais é a seguinte: "Porque Zidane é econômico; porque trabalha numa superfície muito reduzida; porque seu gesto é raro. Como Matisse [1869-1954]? Sim, é aquele que desenha um traço perfeito.
Nunca exagera, fica no limite da negligência. Sua maneira de passar a bola com o exterior do pé: uma batidinha desenvolta.
Um passe, para ele, é um gesto pleno, a tal ponto que se torna um código, um signo, como as bocas de Matisse, precisamente, todas desenhadas da mesma maneira. Não é mais um passe, é o passe. Ele não nos oferece suas "pequenas firulas", como diz seu amigo Malek: alusão a seus truques hábeis, realizados com uma destreza miraculosa, mas sem interesse; na verdade, ele desenha traços sinuosos em torno da assinatura desse objeto esférico, mas elástico, chamado bola. (...) Ser Zidane, ou nada. Único dançarino em meio a malabaristas, acrobatas e brutos".
A metáfora que convoca Matisse seria afetada, se não fosse tão justa. Drillon continua: "Esse homem tenebroso, de quem cada sorriso é uma recompensa, nunca fez nada em sua vida que não fosse permitir à elegância e à graça penetrarem em um meio que era totalmente desprovido delas...".

Aríete
Resta o último gesto, conclusivo de sua carreira, forte, inesperado e desconcertante. Ele é contraditório com a imagem do jogador apenas em aparência. O adversário puxou-lhe a camisa, seguiu insultando. Zidane poderia conduzir-se dessa mesma maneira, como fez o outro, como faz a maioria, no futebol e na vida, dando golpes baixos, dissimulados, covardes e, assim, vingar-se.
Mas a cólera de Zidane não se amesquinha. Ele prefere a exposição franca. Zidane adiantou-se com uma pequena corrida, traçando um semicírculo. Voltou-se. Diante do mundo inteiro, sem disfarce, sem vulgaridade, abaixou a cabeça e, com precisão, golpeou o peito do oponente. A nitidez do embate, a limpidez controlada de seu caráter voluntário eleva a cena a uma beleza ética.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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