São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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Nascidos das cinzas

O historiador britânico Timothy Garton Ash defende os ataques de Israel e diz que só uma "nova modernização" dos países árabes pode resolver os conflitos no Oriente Médio

O que está claro é que o Hizbollah estava muito bem preparado para ações militares, e o momento do início dos ataques foi muito conveniente para o Irã


DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

O Exército israelense ataca o território libanês. É guerra, mas não mais entre dois Estados, e sim entre um Estado e um grupo terrorista sediado num Estado semifalido, conforme avalia o historiador britânico Timothy Garton Ash.
Para ele, no atual mundo multipolarizado pós-Guerra Fria -contextualizado pela luta contra o terrorismo, pelo debate sobre armas nucleares no Irã e lutas territoriais na Palestina- vê-se um novo tipo de conflito desde o dia 12, quando o Hizbollah matou oito soldados israelenses e capturou dois.
Em represália, desde então o Exército de Israel ataca o Líbano, país onde está sediado o grupo terrorista, matando mais de 300 pessoas até a última quinta-feira. O Hizbollah, por sua vez, intensificou os ataques ao território inimigo.
Em entrevista à Folha, o diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford afirma que o ataque israelense é justificável, embora tanto ele quanto a ação do Hizbollah sejam desproporcionais, pois, diz, ambos vitimizam civis inocentes. Embora Israel o faça em número muito maior, pondera friamente, "se tivesse armamentos mais potentes, o Hizbollah estaria atacando Israel
de forma mais violenta". É muito pouco provável, avalia, entretanto, que a ofensiva israelense consiga algum resultado, podendo, ao contrário, fortalecer o braço armado do grupo terrorista no Líbano. A solução do atual conflito, diz, é a comunidade internacional exigir o fim das hostilidades e coordenar uma relação diplomática. No longo prazo, seria preciso pensar uma "nova modernização" a ser aplicada nos principais países da região.

 

FOLHA - Pode-se chamar de guerra o atual conflito no Oriente Médio?
TIMOTHY GARTON ASH -
Sim. Ninguém declarou formalmente -como a Inglaterra declarou guerra à Alemanha nazista, por exemplo-, mas isso é uma "guerra". O Hizbollah está claramente guerreando contra Israel, e Israel está guerreando contra o Hizbollah, mas não contra o Líbano. Essa é uma característica específica deste conflito. Não se trata mais de um conflito de um Estado contra outro Estado.

FOLHA - Pode-se relacionar o atual conflito com o ataque dos EUA ao Afeganistão, quando a intenção era derrubar um grupo específico dentro do Estado?
GARTON ASH -
Sim, pois foi quando começou a existir um tipo de embate semelhante ao atual, visto que os EUA lutaram contra uma rede terrorista, a Al Qaeda, mas num conflito que aconteceu dentro de um Estado falido, o Afeganistão.

FOLHA - E qual a situação do Estado do Líbano?
GARTON ASH -
Não é exatamente um Estado falido, mas não é um Estado em pleno funcionamento. O governo libanês não controla todo o seu território, especialmente o sul do país. Acho que o principal objetivo no momento atual seria o de fortalecer o Estado e o governo libaneses. De forma geral, para o funcionamento de um mundo com segurança, precisa ser um mundo de Estados em pleno funcionamento, e digo que o Líbano é um Estado semifalido. O Hizbollah é praticamente um Estado dentro do Estado. Acima de tudo, no caso atual, o governo libanês não pode parecer ter sido apoiado pelos EUA, o que não seria bom para a restituição e fortalecimento do Estado e do governo libanês.

FOLHA - O ataque de Israel se deu realmente pela morte e seqüestro de seus soldados ou há outras razões envolvidas?
GARTON ASH -
Não temos como saber com certeza. No meio de tantas especulações, de participação do Irã, de participação da Síria, de iniciativa autônoma do Hizbollah, não temos como saber. O que está claro é que o Hizbollah estava muito bem preparado para ações militares, e que o momento foi muito conveniente para o Irã. Exatamente quando o G8 [grupo das oito nações mais poderosas do mundo, que se reuniram nos últimos dias 15, 16 e 17 em São Petersburgo, na Rússia] começaria a pressionar o país por seu programa nuclear, o Hizbollah inicia uma pressão sobre Israel, e a atenção do mundo se afasta do Irã. Mas não se pode dizer que o que está havendo tenha ocorrido só para deslocar o centro das atenções.

FOLHA - E a resposta militar de Israel se justifica?
GARTON ASH -
Sim, sem dúvida. É justificável pelo seqüestro de soldados israelenses. Proporcional? Aí é outra questão. Eu diria que, neste caso, os dois lados estão agindo de forma desproporcional: civis inocentes estão morrendo dos dois lados, e não se pode duvidar de que, se tivesse armamentos mais potentes, o Hizbollah estaria atacando Israel de forma mais violenta, matando mais israelenses -trata-se de um movimento dedicado à erradicação do Estado de Israel.

FOLHA - O sr. publicou um artigo no "New York Review of Books" (novembro/2001) com o título "Existe um Terrorista Bom?", investigando a mecânica dos grupos terroristas. Qual o objetivo e a forma de funcionamento do Hizbollah?
GARTON ASH -
O que defendo é que o terrorismo é uma ferramenta utilizada por diferentes grupos e com objetivos variados. Entender os objetivos e o funcionamento do Hizbollah é muito complicado, pois é um grupo com bancadas política e militar, que pode atuar das duas formas. Há pessoas vinculadas ao grupo que atuam de forma política e pessoas que atuam de forma violenta, militar. Não é possível simplificar a forma de atuar do grupo. Uma grande parcela dos membros do Hizbollah pensa no futuro do grupo como uma força política dentro do Líbano, mas há o outro lado, mais fiel à ideologia dos fundadores iranianos, que pensam que o Estado de Israel deve ser apagado do planeta.

FOLHA - O ataque de Israel ao Hizbollah pode significar a derrota do terrorismo no Oriente Médio?
GARTON ASH -
Falando como europeu, sempre é preciso lembrar que não haveria o Estado de Israel sem o Holocausto. A determinação dos israelenses é compreensível para mim, pois eles não aceitam voltar a ser vítimas, como no passado. Então dão muito valor a cada vida de cada indivíduo israelense e acabam reagindo dessa forma. Se vai funcionar? Duvido muito. Israel está calculando que pode nocautear militarmente o Hizbollah e depois voltar às negociações. Pelas reações internas no Líbano, parece-me que os ataques atuais podem, pelo contrário, fortalecer o Hizbollah. Temo que a ação militar, além de desproporcional, seja contraproducente.

FOLHA - Qual seria uma opção producente, então?
GARTON ASH -
Lamento muito o fato de ainda não ter havido uma resposta clara e forte da Europa. É um conflito no qual a Europa tem relações melhores e mais fortes que os EUA com os dois lados envolvidos. Acho que a comunidade internacional deveria exigir a imediata interrupção das hostilidades. Todos os países mais poderosos deveriam usar todas as suas conexões, seja com Israel, com a Síria, com o Irã ou com o próprio Líbano, por meio de mediações diplomáticas dirigidas por Condoleezza Rice [secretária de Estado dos EUA], alcançar a troca simultânea de prisioneiros entre os dois envolvidos no conflito, que se apresenta como o problema imediato. Depois é preciso manter essa negociação diplomática, para evitar conflitos futuros.

FOLHA - O sr. acha que a comunidade internacional, especialmente os EUA, teria se comportado da mesma forma caso fosse o território israelense que tivesse sido atacado?
GARTON ASH -
A verdade é que, a partir do momento em que são lançados foguetes de Beirute que atingem o Estado de Israel e lançados foguetes de Israel no território do Líbano, cada um matando inocentes do lado oposto, ambos os envolvidos estão invadindo o território inimigo. Então, essa não é uma questão importante.

FOLHA - E qual é a questão importante?
GARTON ASH -
Evitar o que poderia ser uma rápida explosão da violência. Não acredito que o caso atual possa criar uma guerra regional mais ampla, mas certamente pode acentuar enormemente a insegurança em toda a região.

FOLHA - Em que o atual conflito se diferencia dos que aconteceram entre os mesmos países no passado?
GARTON ASH -
Acho que o fato de acontecer dentro de um novo contexto, a chamada "guerra contra o terrorismo", desde o 11 de Setembro, além, claro da questão das armas nucleares no Irã, que fazem a diferença na atual geopolítica. Por outro lado, nos anos 50, 60, 70 e 80, o conflito se dava num contexto de um mundo bipolar, se encaixando de alguma forma na política da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética. Hoje o conflito evidencia claramente a multipolaridade do mundo, no qual os EUA não podem decidir tudo sozinhos. Se olharmos a diplomacia desse conflito, não apenas a Europa mas a Rússia e a China estão sendo quase tão importantes quanto os EUA.

FOLHA - Em seu livro mais recente, "Free World - America, Europe, and the Surprising Future of the West" [Mundo Livre - América, Europa e o Surpreendente Futuro do Ocidente], o sr. arrisca previsões sobre o futuro do mundo ocidental. Qual o futuro do Oriente Médio?
GARTON ASH -
Muitas das questões na região são ligadas à idéia de modernização. Se pudermos encontrar a forma de pensar uma "nova modernização", em vez de impor a modernização ocidental em ao menos algumas dessas sociedades, poderíamos obter a única solução de longa duração para o problema. A solução diplomática e territorial entre Israel e a Palestina já se sabe que pode acontecer se os dois lados cederem um pouco.
Uma vez resolvida a questão territorial, a chave para a pacificação estará na modernização de alguns países árabes. Essa é a chave para o futuro na região.


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