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Nascidos das cinzas
O historiador britânico Timothy Garton Ash defende
os ataques de Israel e diz que só uma "nova modernização"
dos países árabes pode resolver os conflitos no Oriente Médio
O que está claro é que o Hizbollah estava
muito bem preparado para ações militares, e o momento do início dos ataques foi muito conveniente para o Irã
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
O Exército israelense ataca o território libanês. É guerra, mas não mais
entre dois Estados, e sim entre um Estado e
um grupo terrorista sediado
num Estado semifalido, conforme avalia o historiador britânico Timothy Garton Ash.
Para ele, no atual mundo
multipolarizado pós-Guerra
Fria -contextualizado pela luta contra o terrorismo, pelo debate sobre armas nucleares no
Irã e lutas territoriais na Palestina- vê-se um novo tipo de
conflito desde o dia 12, quando
o Hizbollah matou oito soldados israelenses e capturou dois.
Em represália, desde então o
Exército de Israel ataca o Líbano, país onde está sediado o
grupo terrorista, matando mais
de 300 pessoas até a última
quinta-feira. O Hizbollah, por
sua vez, intensificou os ataques
ao território inimigo.
Em entrevista à Folha, o diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford afirma que o ataque israelense é justificável, embora
tanto ele quanto a ação do Hizbollah sejam desproporcionais,
pois, diz, ambos vitimizam civis inocentes.
Embora Israel o faça em número muito maior, pondera
friamente, "se tivesse armamentos mais potentes, o Hizbollah estaria atacando Israel
de forma mais violenta".
É muito pouco provável, avalia, entretanto, que a ofensiva
israelense consiga algum resultado, podendo, ao contrário,
fortalecer o braço armado do
grupo terrorista no Líbano.
A solução do atual conflito,
diz, é a comunidade internacional exigir o fim das hostilidades
e coordenar uma relação diplomática. No longo prazo, seria
preciso pensar uma "nova modernização" a ser aplicada nos
principais países da região.
FOLHA - Pode-se chamar de guerra
o atual conflito no Oriente Médio?
TIMOTHY GARTON ASH - Sim. Ninguém declarou formalmente
-como a Inglaterra declarou
guerra à Alemanha nazista, por
exemplo-, mas isso é uma
"guerra". O Hizbollah está claramente guerreando contra Israel, e Israel está guerreando
contra o Hizbollah, mas não
contra o Líbano. Essa é uma característica específica deste
conflito. Não se trata mais de
um conflito de um Estado contra outro Estado.
FOLHA - Pode-se relacionar o atual
conflito com o ataque dos EUA ao
Afeganistão, quando a intenção era
derrubar um grupo específico dentro do Estado?
GARTON ASH - Sim, pois foi
quando começou a existir um
tipo de embate semelhante ao
atual, visto que os EUA lutaram
contra uma rede terrorista, a Al
Qaeda, mas num conflito que
aconteceu dentro de um Estado falido, o Afeganistão.
FOLHA - E qual a situação do Estado
do Líbano?
GARTON ASH - Não é exatamente
um Estado falido, mas não é um
Estado em pleno funcionamento. O governo libanês não
controla todo o seu território,
especialmente o sul do país.
Acho que o principal objetivo
no momento atual seria o de
fortalecer o Estado e o governo
libaneses. De forma geral, para
o funcionamento de um mundo
com segurança, precisa ser um
mundo de Estados em pleno
funcionamento, e digo que o Líbano é um Estado semifalido.
O Hizbollah é praticamente
um Estado dentro do Estado.
Acima de tudo, no caso atual, o
governo libanês não pode parecer ter sido apoiado pelos EUA,
o que não seria bom para a restituição e fortalecimento do Estado e do governo libanês.
FOLHA - O ataque de Israel se deu
realmente pela morte e seqüestro
de seus soldados ou há outras razões envolvidas?
GARTON ASH - Não temos como
saber com certeza. No meio de
tantas especulações, de participação do Irã, de participação da
Síria, de iniciativa autônoma do
Hizbollah, não temos como saber. O que está claro é que o
Hizbollah estava muito bem
preparado para ações militares,
e que o momento foi muito
conveniente para o Irã.
Exatamente quando o G8
[grupo das oito nações mais poderosas do mundo, que se reuniram nos últimos dias 15, 16 e
17 em São Petersburgo, na Rússia] começaria a pressionar o
país por seu programa nuclear,
o Hizbollah inicia uma pressão
sobre Israel, e a atenção do
mundo se afasta do Irã. Mas
não se pode dizer que o que está
havendo tenha ocorrido só para
deslocar o centro das atenções.
FOLHA - E a resposta militar de Israel se justifica?
GARTON ASH - Sim, sem dúvida.
É justificável pelo seqüestro de
soldados israelenses. Proporcional? Aí é outra questão.
Eu diria que, neste caso, os
dois lados estão agindo de forma desproporcional: civis inocentes estão morrendo dos dois
lados, e não se pode duvidar de
que, se tivesse armamentos
mais potentes, o Hizbollah estaria atacando Israel de forma
mais violenta, matando mais israelenses -trata-se de um movimento dedicado à erradicação do Estado de Israel.
FOLHA - O sr. publicou um artigo
no "New York Review of Books"
(novembro/2001) com o título
"Existe um Terrorista Bom?", investigando a mecânica dos grupos terroristas. Qual o objetivo e a forma de
funcionamento do Hizbollah?
GARTON ASH - O que defendo é
que o terrorismo é uma ferramenta utilizada por diferentes
grupos e com objetivos variados. Entender os objetivos e o
funcionamento do Hizbollah é
muito complicado, pois é um
grupo com bancadas política e
militar, que pode atuar das
duas formas. Há pessoas vinculadas ao grupo que atuam de
forma política e pessoas que
atuam de forma violenta, militar. Não é possível simplificar a
forma de atuar do grupo.
Uma grande parcela dos
membros do Hizbollah pensa
no futuro do grupo como uma
força política dentro do Líbano,
mas há o outro lado, mais fiel à
ideologia dos fundadores iranianos, que pensam que o Estado de Israel deve ser apagado
do planeta.
FOLHA - O ataque de Israel ao Hizbollah pode significar a derrota do
terrorismo no Oriente Médio?
GARTON ASH - Falando como europeu, sempre é preciso lembrar que não haveria o Estado
de Israel sem o Holocausto. A
determinação dos israelenses é
compreensível para mim, pois
eles não aceitam voltar a ser vítimas, como no passado. Então
dão muito valor a cada vida de
cada indivíduo israelense e acabam reagindo dessa forma.
Se vai funcionar? Duvido
muito. Israel está calculando
que pode nocautear militarmente o Hizbollah e depois voltar às negociações. Pelas reações internas no Líbano, parece-me que os ataques atuais podem, pelo contrário, fortalecer
o Hizbollah. Temo que a ação
militar, além de desproporcional, seja contraproducente.
FOLHA - Qual seria uma opção producente, então?
GARTON ASH - Lamento muito o
fato de ainda não ter havido
uma resposta clara e forte da
Europa. É um conflito no qual a
Europa tem relações melhores
e mais fortes que os EUA com
os dois lados envolvidos. Acho
que a comunidade internacional deveria exigir a imediata interrupção das hostilidades.
Todos os países mais poderosos deveriam usar todas as suas
conexões, seja com Israel, com
a Síria, com o Irã ou com o próprio Líbano, por meio de mediações diplomáticas dirigidas
por Condoleezza Rice [secretária de Estado dos EUA], alcançar a troca simultânea de prisioneiros entre os dois envolvidos no conflito, que se apresenta como o problema imediato.
Depois é preciso manter essa
negociação diplomática, para
evitar conflitos futuros.
FOLHA - O sr. acha que a comunidade internacional, especialmente os
EUA, teria se comportado da mesma
forma caso fosse o território israelense que tivesse sido atacado?
GARTON ASH - A verdade é que, a
partir do momento em que são
lançados foguetes de Beirute
que atingem o Estado de Israel
e lançados foguetes de Israel no
território do Líbano, cada um
matando inocentes do lado
oposto, ambos os envolvidos
estão invadindo o território inimigo.
Então, essa não é uma questão importante.
FOLHA - E qual é a questão importante?
GARTON ASH - Evitar o que poderia ser uma rápida explosão
da violência. Não acredito que o
caso atual possa criar uma
guerra regional mais ampla,
mas certamente pode acentuar
enormemente a insegurança
em toda a região.
FOLHA - Em que o atual conflito se
diferencia dos que aconteceram entre os mesmos países no passado?
GARTON ASH - Acho que o fato de
acontecer dentro de um novo
contexto, a chamada "guerra
contra o terrorismo", desde o 11
de Setembro, além, claro da
questão das armas nucleares
no Irã, que fazem a diferença na
atual geopolítica. Por outro lado, nos anos 50, 60, 70 e 80, o
conflito se dava num contexto
de um mundo bipolar, se encaixando de alguma forma na política da Guerra Fria entre os
EUA e a União Soviética.
Hoje o conflito evidencia claramente a multipolaridade do
mundo, no qual os EUA não podem decidir tudo sozinhos. Se
olharmos a diplomacia desse
conflito, não apenas a Europa
mas a Rússia e a China estão
sendo quase tão importantes
quanto os EUA.
FOLHA - Em seu livro mais recente,
"Free World - America, Europe, and
the Surprising Future of the West"
[Mundo Livre - América, Europa e o
Surpreendente Futuro do Ocidente],
o sr. arrisca previsões sobre o futuro
do mundo ocidental. Qual o futuro
do Oriente Médio?
GARTON ASH - Muitas das questões na região são ligadas à
idéia de modernização. Se pudermos encontrar a forma de
pensar uma "nova modernização", em vez de impor a modernização ocidental em ao menos
algumas dessas sociedades, poderíamos obter a única solução
de longa duração para o problema. A solução diplomática e
territorial entre Israel e a Palestina já se sabe que pode
acontecer se os dois lados cederem um pouco.
Uma vez resolvida a questão
territorial, a chave para a pacificação estará na modernização
de alguns países árabes. Essa é a
chave para o futuro na região.
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