São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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Rembrandt em 24 quadros

Nos 400 anos de nascimento do pintor holandês, o cineasta Peter Greenaway fala da instalação que criou a partir de sua tela mais famosa

PETER ASPDEN

Encontro-me com Peter Greenaway na sala Rembrandt do Rijksmuseum, em Amsterdã, onde há uma fila bastante caótica esperando para ver o que o polêmico diretor de cinema britânico fez com um dos quadros mais famosos do mundo. O quarto quadro mais famoso, especifica Greenaway com sua precisão característica, depois da "Mona Lisa", do forro da capela Sistina e de "A Última Ceia".
Ele está falando sobre "A Ronda Noturna" de Rembrandt, a cena obscura, cheia de mistérios não-solucionados e efeitos de iluminação milagrosos que parecem ter sido criados para atrair a sensibilidade refinada e intrigante do cineasta indômito.
Greenaway criou uma instalação teatral que ousa jogar com a superfície da própria pintura. As luzes baixam, os visitantes sentam-se num miniteatro e o quadro ganha vida: os cachorros latem, os observadores conversam, a chuva fustiga: tudo isso é sugerido por uma vívida trilha sonora e o jogo de luzes sobre a pintura. A peça dura apenas alguns minutos, mas é cativante, e, no final, há aplausos.
"Não é um quadro, é teatro -as pessoas aplaudem!", diz Greenaway com uma rara alegria, quando nos sentamos depois para tomar um café. Eu digo que é uma maneira totalmente nova de ver obras de arte conhecidas. Essa foi a intenção, ele responde. "O que disse Picasso? A pior coisa que se pode fazer a uma pintura é pendurá-la na parede, porque em três dias todos a terão esquecido. Talvez parte da intenção seja fazer as pessoas olharem para a maldita coisa." Mas seria atípico do cerebral Greenaway contentar-se com produzir um "son et lumière" requintado para turistas de verão.

Segredo
Parte do apelo de "A Ronda Noturna" é seu ar de segredo. O que está acontecendo, exatamente? Quem é a misteriosa criança, iluminada com destaque ao lado dos protagonistas do quadro? E o tiro de mosquete, cuja chama quase não se vê atrás do chapéu amarelo à direita: de que se trata?
Greenaway tem uma teoria. É inevitavelmente complicada, girando em torno da visita à Holanda de Maria Stuart [1542-1587] para negociar as jóias da coroa em nome de seu pai, Carlos 1º, e uma disputa entre os milicianos encarregados de receber a jovem princesa.
A disputa se resolveu num acidente militar forjado, planejado por Frans Banning Cocq, a figura central do quadro de Rembrandt. O próprio artista já estava em disputa com o cunhado de Banning Cocq, que se recusara a pagar por um retrato não-lisonjeiro.
"A Ronda Noturna" é o comentário codificado do pintor sobre o incidente, cheio de referências visuais obscuras, que, para Greenaway, devem significar alguma coisa: por que a sombra da mão de Banning Cocq agarra a barriga e os genitais de seu companheiro? Trata-se de um caso sexual clandestino? E por que ele segura uma luva de mão direita, quando é sua mão esquerda que está sem luva? É algum tipo de desafio para um duelo? E a garota, Mareike -seria uma referência diminuta a Velázquez e, por extensão, à Espanha, o inimigo?
Pergunto a Greenaway o que o atraiu no projeto, e ele parte numa narrativa fluente e erudita que se resume basicamente a uma admiração permanente pelo pintor e seu conhecido amor pelos mistérios.
"Rembrandt se encaixa em tudo o que pensamos que deveríamos pensar: é profundamente humanista, republicano, democrático, pró-proletário, muito irônico e pós-modernista. O chamado homem da rua tem uma compreensão do que ele significa: ele pinta velhos, bebês de fraldas, a vizinha feia. É um romântico pós-pós-pós-pia da cozinha." Pergunto-me o que isso significa, mas não há tempo para pensar, muito menos para perguntar.
"E a maneira como ele parte do escuro e se move para a luz, como faz cinema. Se, como diz Godard, o cinema é a verdade a 24 quadros por segundo, isso é um nanossegundo. Parece um quadro congelado de um filme. Rembrandt e outros mestres do barroco estavam inventando a linguagem do cinema."

Pintor "manqué"
Foi o cinema que levou Greenaway a se destacar, na década de 1980, com uma série de sucessos artísticos como "O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante", mas ele nunca escondeu sua paixão mais exaltada pela pintura. Hoje seu desencanto é total: ele declara o cinema morto, enquanto afirma com vigor a permanente importância da pintura.
"Você sabe que [Jacques] Derrida disse que a imagem sempre tem a última palavra, o que é muito interessante, mas não vai longe o suficiente, porque o próprio mundo é uma imagem. Uma pintura é para sempre. O cinema existe há 111 anos, o que não é muito, e sinto que se esgotou. Quando você vê um filme hoje, em 15 minutos já sabe o que vai acontecer, como ele vai se desenrolar: você entende o gênero." Isso pode ser verdade sobre a corrente dominante em Hollywood, eu digo, mas o que dizer, por exemplo, do cinema iraniano?
"Mas ele ainda segue os discursos e os paradigmas", diz, resignado. "Essa coisa nova: oriental, Antonioni exótico, o homem interior, basicamente nada acontecendo, mas tudo acontecendo, Deus agindo nas pequenas coisas -já vimos tudo isso antes, não é? Não é?"
Há quase um toque de desespero. Mas ele não pensava assim quando iniciou sua carreira cinematográfica?
"Quando comecei havia cerca de uma dúzia de grandes diretores fazendo filmes de tipos completamente diferentes. O cinema italiano estava vivo e florescente. A "nouvelle vague" e Godard, que foi uma enorme influência para todos nós."
Mas Godard já proclamava a morte do cinema nos anos 60. "Ele jogou tudo fora. Se você é europeu, Eisenstein inventa o cinema, Fellini o consolida, Godard joga tudo fora. Mas isso está certo. Existem novas formas de tecnologia, novas maneiras de fazer as coisas."
Eu lembro a Greenaway, como se ele precisasse, de que esse tipo de discurso -desavergonhadamente orientado por idéias complexas, de alcance épico, cheio de citações- não cai muito bem nos círculos britânicos, e não posso deixar de notar que ele vive em Amsterdã há 12 anos. "Eles são tão protestantes, tão puritanos", diz, ligeiramente compadecido de seus compatriotas. "Mas não quero que isso pareça um gesto político", diz sobre sua mudança. "Foi uma atração, mais que uma retração."

O ouro do Holocausto
Falamos um pouco sobre seu atual projeto de filme, "The Tulse Luper Suitcases" [As Malas de Tulse Luper], que descreve como "92 histórias sobre o ouro do Holocausto".
Dura sete horas, diz Greenaway, que está trabalhando na versão em DVD. Descreve sua abordagem como enciclopédica e diz que não gosta de "procurar conclusões".
Isso pareceu muito distante da corrente dominante do cinema. Nunca sente a tentação de voltar ao seu confortável redil? Ele balança a cabeça negativamente. "Tive a sorte de conhecer um produtor holandês que disse que, desde que eu não empregasse Elizabeth Taylor ou uma companhia aérea americana, ele ficaria feliz em patrocinar minha futura carreira cinematográfica. Fizemos 12 longas-metragens e 50 outros filmes. Mas não estamos ricos. Eu não dirijo carros potentes nem vivo em iates em Cannes."
Seus filmes são muitas vezes descritos como frios e sem sentimento. "Sim." Por quê? "Pense nos temas dominantes." São todos sobre sexo e morte, eu digo. "São peças selvagens, de extremo humor negro. Venho do mesmo lugar que o Monty Python. Quando Michael Gambon viu pela primeira vez sua atuação em "O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante", riu o tempo todo. Eu pensei: "Você conseguiu!"."
Eu digo que a cena desse filme em que um personagem é sufocado por ser obrigado a comer papel me deixou fisicamente enjoado. "Você é um escritor -é uma boa idéia ser morto por seu próprio texto. Não é uma boa idéia?"
Eu passo. "[Quentin] Tarantino comete atrocidades enormes de sexo e violência, por que não é bombardeado? Por que eu sou alvo do tiroteio? Acho que sei a resposta. Ele faz isso para brincar. Para causar "frisson". Ele deixa você escapar do anzol. Mas é preciso ter esse senso de responsabilidade. Se você vai fazer sexo e violência, opa, cuidado. Porque há grandes recriminações."


A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Veja o site especial (em inglês) do Rijksmuseum sobre os 400 anos de nascimento de Rembrandt www.rijksmuseum.nl/tentoonstellingen/rembrandt-400?lang=en


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