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Rembrandt em 24 quadros
Nos 400 anos
de nascimento
do pintor holandês,
o cineasta
Peter Greenaway fala da
instalação que
criou a partir
de sua tela
mais famosa
PETER ASPDEN
Encontro-me com Peter Greenaway na sala
Rembrandt do Rijksmuseum, em Amsterdã, onde há uma fila
bastante caótica esperando para ver o que o polêmico diretor
de cinema britânico fez com
um dos quadros mais famosos
do mundo. O quarto quadro
mais famoso, especifica Greenaway com sua precisão característica, depois da "Mona Lisa", do forro da capela Sistina e
de "A Última Ceia".
Ele está falando sobre "A
Ronda Noturna" de Rembrandt, a cena obscura, cheia
de mistérios não-solucionados
e efeitos de iluminação milagrosos que parecem ter sido
criados para atrair a sensibilidade refinada e intrigante do
cineasta indômito.
Greenaway criou uma instalação teatral que ousa jogar
com a superfície da própria
pintura. As luzes baixam, os visitantes sentam-se num miniteatro e o quadro ganha vida: os
cachorros latem, os observadores conversam, a chuva fustiga:
tudo isso é sugerido por uma
vívida trilha sonora e o jogo de
luzes sobre a pintura. A peça
dura apenas alguns minutos,
mas é cativante, e, no final, há
aplausos.
"Não é um quadro, é teatro
-as pessoas aplaudem!", diz
Greenaway com uma rara alegria, quando nos sentamos depois para tomar um café. Eu digo que é uma maneira totalmente nova de ver obras de arte conhecidas. Essa foi a intenção, ele responde. "O que disse
Picasso? A pior coisa que se pode fazer a uma pintura é pendurá-la na parede, porque em
três dias todos a terão esquecido. Talvez parte da intenção seja fazer as pessoas olharem para a maldita coisa." Mas seria
atípico do cerebral Greenaway
contentar-se com produzir um
"son et lumière" requintado
para turistas de verão.
Segredo
Parte do apelo de "A Ronda
Noturna" é seu ar de segredo. O
que está acontecendo, exatamente? Quem é a misteriosa
criança, iluminada com destaque ao lado dos protagonistas
do quadro? E o tiro de mosquete, cuja chama quase não se vê
atrás do chapéu amarelo à direita: de que se trata?
Greenaway tem uma teoria.
É inevitavelmente complicada,
girando em torno da visita à
Holanda de Maria Stuart
[1542-1587] para negociar as
jóias da coroa em nome de seu
pai, Carlos 1º, e uma disputa entre os milicianos encarregados
de receber a jovem princesa.
A disputa se resolveu num
acidente militar forjado, planejado por Frans Banning Cocq, a
figura central do quadro de
Rembrandt. O próprio artista já
estava em disputa com o cunhado de Banning Cocq, que se
recusara a pagar por um retrato
não-lisonjeiro.
"A Ronda Noturna" é o comentário codificado do pintor
sobre o incidente, cheio de referências visuais obscuras, que,
para Greenaway, devem significar alguma coisa: por que a
sombra da mão de Banning
Cocq agarra a barriga e os genitais de seu companheiro? Trata-se de um caso sexual clandestino? E por que ele segura
uma luva de mão direita, quando é sua mão esquerda que está
sem luva? É algum tipo de desafio para um duelo? E a garota,
Mareike -seria uma referência
diminuta a Velázquez e, por extensão, à Espanha, o inimigo?
Pergunto a Greenaway o que
o atraiu no projeto, e ele parte
numa narrativa fluente e erudita que se resume basicamente a
uma admiração permanente
pelo pintor e seu conhecido
amor pelos mistérios.
"Rembrandt se encaixa em
tudo o que pensamos que deveríamos pensar: é profundamente humanista, republicano,
democrático, pró-proletário,
muito irônico e pós-modernista. O chamado homem da rua
tem uma compreensão do que
ele significa: ele pinta velhos,
bebês de fraldas, a vizinha feia.
É um romântico pós-pós-pós-pia da cozinha." Pergunto-me o
que isso significa, mas não há
tempo para pensar, muito menos para perguntar.
"E a maneira como ele parte
do escuro e se move para a luz,
como faz cinema. Se, como diz
Godard, o cinema é a verdade a
24 quadros por segundo, isso é
um nanossegundo. Parece um
quadro congelado de um filme.
Rembrandt e outros mestres
do barroco estavam inventando a linguagem do cinema."
Pintor "manqué"
Foi o cinema que levou Greenaway a se destacar, na década
de 1980, com uma série de sucessos artísticos como "O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e
o Amante", mas ele nunca escondeu sua paixão mais exaltada pela pintura. Hoje seu desencanto é total: ele declara o
cinema morto, enquanto afirma com vigor a permanente
importância da pintura.
"Você sabe que [Jacques]
Derrida disse que a imagem
sempre tem a última palavra, o
que é muito interessante, mas
não vai longe o suficiente, porque o próprio mundo é uma
imagem. Uma pintura é para
sempre. O cinema existe há 111
anos, o que não é muito, e sinto
que se esgotou. Quando você vê
um filme hoje, em 15 minutos já
sabe o que vai acontecer, como
ele vai se desenrolar: você entende o gênero." Isso pode ser
verdade sobre a corrente dominante em Hollywood, eu digo,
mas o que dizer, por exemplo,
do cinema iraniano?
"Mas ele ainda segue os discursos e os paradigmas", diz,
resignado. "Essa coisa nova:
oriental, Antonioni exótico, o
homem interior, basicamente
nada acontecendo, mas tudo
acontecendo, Deus agindo nas
pequenas coisas -já vimos tudo isso antes, não é? Não é?"
Há quase um toque de desespero. Mas ele não pensava assim quando iniciou sua carreira
cinematográfica?
"Quando comecei havia cerca de uma dúzia de grandes diretores fazendo filmes de tipos
completamente diferentes. O
cinema italiano estava vivo e
florescente. A "nouvelle vague"
e Godard, que foi uma enorme
influência para todos nós."
Mas Godard já proclamava a
morte do cinema nos anos 60.
"Ele jogou tudo fora. Se você é
europeu, Eisenstein inventa o
cinema, Fellini o consolida, Godard joga tudo fora. Mas isso
está certo. Existem novas formas de tecnologia, novas maneiras de fazer as coisas."
Eu lembro a Greenaway, como se ele precisasse, de que esse tipo de discurso -desavergonhadamente orientado por
idéias complexas, de alcance
épico, cheio de citações- não
cai muito bem nos círculos britânicos, e não posso deixar de
notar que ele vive em Amsterdã
há 12 anos. "Eles são tão protestantes, tão puritanos", diz, ligeiramente compadecido de
seus compatriotas. "Mas não
quero que isso pareça um gesto
político", diz sobre sua mudança. "Foi uma atração, mais que
uma retração."
O ouro do Holocausto
Falamos um pouco sobre seu
atual projeto de filme, "The
Tulse Luper Suitcases" [As Malas de Tulse Luper], que descreve como "92 histórias sobre o
ouro do Holocausto".
Dura sete horas, diz Greenaway, que está trabalhando na
versão em DVD. Descreve sua
abordagem como enciclopédica e diz que não gosta de "procurar conclusões".
Isso pareceu muito distante
da corrente dominante do cinema. Nunca sente a tentação de
voltar ao seu confortável redil?
Ele balança a cabeça negativamente. "Tive a sorte de conhecer um produtor holandês que
disse que, desde que eu não empregasse Elizabeth Taylor ou
uma companhia aérea americana, ele ficaria feliz em patrocinar minha futura carreira cinematográfica. Fizemos 12 longas-metragens e 50 outros filmes. Mas não estamos ricos. Eu
não dirijo carros potentes nem
vivo em iates em Cannes."
Seus filmes são muitas vezes
descritos como frios e sem sentimento. "Sim." Por quê? "Pense nos temas dominantes." São
todos sobre sexo e morte, eu digo. "São peças selvagens, de extremo humor negro. Venho do
mesmo lugar que o Monty
Python. Quando Michael Gambon viu pela primeira vez sua
atuação em "O Cozinheiro, o
Ladrão, Sua Mulher e o Amante", riu o tempo todo. Eu pensei:
"Você conseguiu!"."
Eu digo que a cena desse filme em que um personagem é
sufocado por ser obrigado a comer papel me deixou fisicamente enjoado. "Você é um escritor -é uma boa idéia ser
morto por seu próprio texto.
Não é uma boa idéia?"
Eu passo. "[Quentin] Tarantino comete atrocidades enormes de sexo e violência, por que
não é bombardeado? Por que
eu sou alvo do tiroteio? Acho
que sei a resposta. Ele faz isso
para brincar. Para causar "frisson". Ele deixa você escapar do
anzol. Mas é preciso ter esse
senso de responsabilidade. Se
você vai fazer sexo e violência,
opa, cuidado. Porque há grandes recriminações."
A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Veja o site especial (em inglês) do
Rijksmuseum sobre os 400 anos de
nascimento de Rembrandt
www.rijksmuseum.nl/tentoonstellingen/rembrandt-400?lang=en
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