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Ponto de Fuga
Velhos fantasmas
"Arraste-me para o Inferno" se volta para o passado do horror na cultura visual e popular: vômitos de "O Exorcista", o gato agressivo de "Sangue de Pantera", bruxas horrendas
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos
seguintes, as revistas
em quadrinhos alcançaram
formidável sucesso. Tornaram-se a leitura popular favorita,
disseminando-se entre jovens
e crianças.
Ao mesmo tempo, os moralistas de plantão, pais conservadores, professores, padres e
pastores, passaram a atribuir
os piores malefícios à influência dos gibis. Entre eles estavam alguns psiquiatras, dos
quais o mais célebre foi Fredric
Wertham [1895-1981], autor de
um estudo intitulado "A Psicopatologia dos Quadrinhos" e de
um livro cuja autoridade se impôs: "Sedução dos Inocentes".
A juventude transviada, pesadelo das boas famílias, os
drogados, alcoólicos, homossexuais, bandidos, promíscuos e
perversos de todo tipo eram
decerto o fruto dessas más leituras.
O Senado norte-americano
se comoveu diante do grande
perigo e criou uma comissão
persecutória; em 1954 instalava-se uma censura ativa, a Comics Code Authority, que provocou a morte de vários periódicos.
Entre elas estavam as revistas de terror editadas pela EC
Comics, maravilhosas de invenção e inteligência. Nelas, as
histórias eram breves, pequenos contos visuais, irônicos,
carregados de humor negro,
mas assustadores também.
Uma, "The Haunt of Fear" [O
Assombro do Medo], publicou
em seu número 21, outubro de
1954, a historieta intitulada
"Corker!" de Jack Kamen e
Will Elder. Havia sempre trocadilhos ou duplos sentidos
nos títulos, o que torna a tradução difícil.
Ectoplasma
A trama de "Corker!" põe em
cena a jovem noiva de um psiquiatra incrédulo. Ela vai consultar um guru de turbante. O
guru descobre que uma lâmia,
demônio ou espírito terrível, a
atormenta, provocando incontroláveis desejos eróticos. A
história se termina nos trilhos
de um trem.
Quem foi ver "Arraste-me
para o Inferno", de Sam Raimi,
reconheceu fortes coincidências entre a narração dos quadrinhos e o filme, embora o final divirja levemente em uma e
em outro.
Essa retomada por Sam Raimi entra no nexo de seu filme,
que se volta para o passado, por
vezes bem antigo, do horror na
cultura visual e popular. A lista
parece não ter fim: vômitos de
"O Exorcista"; o gato agressivo
de "Sangue de Pantera"; bruxas
horrendas (as histórias de "The
Haunt of Fear" eram apresentadas por uma delas); cavadores de sepultura, como em "O
Túmulo Vazio", com Boris Karloff e Bela Lugosi; sessão de espiritismo como... em tantos filmes, desde pelo menos o primeiro "Mabuse", de Fritz Lang;
a bigorna dependurada, como
nos desenhos animados.
Sam Raimi consegue juntar
tudo isso sem o peso das "homenagens", nutrindo-se sinceramente de suas referências.
Cria também uma mistura entre humor e horror, num milagre de equilíbrio. Seus poderes
em captar as forças dos cenários, dos objetos, permanecem
prodigiosos: cada ambiente, no
filme, exala seus eflúvios perturbadores.
Vintém
Raimi mostrou sua obsessão
pelo dinheiro como instrumento do mal em "Um Plano Simples" (1998), em que a pureza,
branca como a neve, é maculada por um achado corruptor.
Essa questão reaparece, tangencial, em alguns de seus outros filmes, como "O Dom da
Premonição" (2000) ou "Homem-Aranha" (2002). "Arraste-me para o Inferno" centra-se nesse ponto, ao contrário de
"Corker!", nos quadrinhos, onde o mal são o prazer e o sexo.
Fonte
Quem descobriu a relação
entre "Corker!" e "Arraste-me
para o Inferno" foi o desenhista
Brian Cronin, na página "Comic Book Legends Revealed",
nº 220. Cronin, porém, vê nessa semelhança uma coincidência: bem implausível.
jorgecoli@uol.com.br
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