São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009

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Ponto de Fuga

Velhos fantasmas


"Arraste-me para o Inferno" se volta para o passado do horror na cultura visual e popular: vômitos de "O Exorcista", o gato agressivo de "Sangue de Pantera", bruxas horrendas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos seguintes, as revistas em quadrinhos alcançaram formidável sucesso. Tornaram-se a leitura popular favorita, disseminando-se entre jovens e crianças.
Ao mesmo tempo, os moralistas de plantão, pais conservadores, professores, padres e pastores, passaram a atribuir os piores malefícios à influência dos gibis. Entre eles estavam alguns psiquiatras, dos quais o mais célebre foi Fredric Wertham [1895-1981], autor de um estudo intitulado "A Psicopatologia dos Quadrinhos" e de um livro cuja autoridade se impôs: "Sedução dos Inocentes".
A juventude transviada, pesadelo das boas famílias, os drogados, alcoólicos, homossexuais, bandidos, promíscuos e perversos de todo tipo eram decerto o fruto dessas más leituras.
O Senado norte-americano se comoveu diante do grande perigo e criou uma comissão persecutória; em 1954 instalava-se uma censura ativa, a Comics Code Authority, que provocou a morte de vários periódicos. Entre elas estavam as revistas de terror editadas pela EC Comics, maravilhosas de invenção e inteligência. Nelas, as histórias eram breves, pequenos contos visuais, irônicos, carregados de humor negro, mas assustadores também.
Uma, "The Haunt of Fear" [O Assombro do Medo], publicou em seu número 21, outubro de 1954, a historieta intitulada "Corker!" de Jack Kamen e Will Elder. Havia sempre trocadilhos ou duplos sentidos nos títulos, o que torna a tradução difícil.

Ectoplasma
A trama de "Corker!" põe em cena a jovem noiva de um psiquiatra incrédulo. Ela vai consultar um guru de turbante. O guru descobre que uma lâmia, demônio ou espírito terrível, a atormenta, provocando incontroláveis desejos eróticos. A história se termina nos trilhos de um trem.
Quem foi ver "Arraste-me para o Inferno", de Sam Raimi, reconheceu fortes coincidências entre a narração dos quadrinhos e o filme, embora o final divirja levemente em uma e em outro.
Essa retomada por Sam Raimi entra no nexo de seu filme, que se volta para o passado, por vezes bem antigo, do horror na cultura visual e popular. A lista parece não ter fim: vômitos de "O Exorcista"; o gato agressivo de "Sangue de Pantera"; bruxas horrendas (as histórias de "The Haunt of Fear" eram apresentadas por uma delas); cavadores de sepultura, como em "O Túmulo Vazio", com Boris Karloff e Bela Lugosi; sessão de espiritismo como... em tantos filmes, desde pelo menos o primeiro "Mabuse", de Fritz Lang; a bigorna dependurada, como nos desenhos animados.
Sam Raimi consegue juntar tudo isso sem o peso das "homenagens", nutrindo-se sinceramente de suas referências. Cria também uma mistura entre humor e horror, num milagre de equilíbrio. Seus poderes em captar as forças dos cenários, dos objetos, permanecem prodigiosos: cada ambiente, no filme, exala seus eflúvios perturbadores.

Vintém
Raimi mostrou sua obsessão pelo dinheiro como instrumento do mal em "Um Plano Simples" (1998), em que a pureza, branca como a neve, é maculada por um achado corruptor. Essa questão reaparece, tangencial, em alguns de seus outros filmes, como "O Dom da Premonição" (2000) ou "Homem-Aranha" (2002). "Arraste-me para o Inferno" centra-se nesse ponto, ao contrário de "Corker!", nos quadrinhos, onde o mal são o prazer e o sexo.

Fonte
Quem descobriu a relação entre "Corker!" e "Arraste-me para o Inferno" foi o desenhista Brian Cronin, na página "Comic Book Legends Revealed", nº 220. Cronin, porém, vê nessa semelhança uma coincidência: bem implausível.

jorgecoli@uol.com.br


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