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matissismo
O HISTORIADOR JORGE COLI INSERE A OBRA DE HENRI MATISSE, QUE GANHA EXPOSIÇÃO
NO BRASIL NO INÍCIO DE SETEMBRO,
NA TRADIÇÃO
DOS "ARTISTAS
DA DECORAÇÃO",
DA QUAL FAZEM PARTE VAN GOGH E GAUGUIN
-E QUE INFLUENCIA TAMBÉM
O CINEASTA
WONG KAR-WAI
Dmitri Kessel/Time Life Pictures/Getty Images
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O pintor francês Henri Matisse (1869-1954) desenha modelo, em 1950 |
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Uma tela de Matisse
oferece sempre a
impressão de que
as angústias, os desesperos, as pulsões afetivas são sentimentos
de mau gosto e devem ser excluídos. Matisse é o antirromântico, o antiexpressionista e
também o anti-intelectual, o
antiteórico.
Pintor da felicidade plena,
que é aristocrática, na sua maneira de ignorar, desdenhosa,
toda e qualquer miséria, incluindo nelas as do próprio artista. Pintor da luz sem sombra.
No início de sua carreira, ligou-se a um grupo, do qual ele
teria sido mesmo o instigador:
os "fauve", as feras, que reunia
artistas muito diversos, sem
doutrina nem unidade estilística, mas que faziam explodir
cores por meio de traços vívidos, habitados por acordes ao
mesmo tempo selvagens e requintados.
Depois do episódio "fauve",
Matisse prosseguiu seu caminho bastante indiferente aos
movimentos de vanguarda que
surgiam. É possível aqui e ali
encontrar, em suas telas, leves
ecos de um ou outro contemporâneo, mas eles são insignificantes.
Talvez seja superficial querer ordenar sua produção em
"fases". Sem dúvida essa organização permite classificar as
obras em períodos e segundo
algumas características comuns. É importante, porém,
que essas divisões não escondam a unidade evidente que
preside a todo o conjunto, unidade infinitamente mais poderosa do que as diferenças, bem
secundárias: Matisse não é Picasso.
As preocupações, tanto teóricas quanto históricas, sempre
convocadas para se compreenderem as artes do século 20
não servem para ele: nem a
abstração, nem as forças do
imaginário surrealista, nem o
gesto voluntariamente crítico,
nem a desconstrução como objetivo, nada disso permite de
fato apreender esse artista que
dizia, com falsa candura, que
seu único desejo era agradar.
Palavra-chave
Um caminho, não muito
usual, pode conduzir à compreensão de alguns aspectos
importantes de sua arte. Ele se
inicia com o aprendizado no
ateliê de Gustave Moreau
[1826-98]. O mundo precioso
desse mestre, cheio de ouros
que se associam a tons e brilhos
de esmeraldas, safiras ou rubis;
o espírito de crueldade decadentista, perversamente sexuada, nada disso parece avizinhar-se da arte que seu discípulo desenvolveria.
Contudo, muitos quadros de
Gustave Moreau criaram imagens nas quais personagens e
cenário, altamente decorativos, se fundem. Este é o ponto.
O próprio Matisse lançou a palavra-chave numa frase: "A
composição é a arte de organizar, de maneira decorativa, os
diversos elementos de que o
pintor dispõe para exprimir
seus sentimentos".
Decorativo, decoração, termos odiados pelos pintores
abstratos que surgiriam no século 20, temerosos de serem
acusados de superficialidade
frívola e agradável.
Mas a decoração significou,
para vários artistas, o lugar em
que a pintura podia se dar. Nesse sentido, Matisse não é um
solitário.
Os padrões de papel de parede, as estampas de tecido, os
desenhos de estofados, os arabescos orientais, o torneado de
uma cadeira, o aveludado de
uma almofada, tudo isso era
tratado não como acessório,
mas como o lugar da visualidade (pensar em "O Convite à
Viagem", de Baudelaire: "Móveis lustrosos/ Polidos pelos
anos/ Decorariam nosso quarto./ As flores mais raras/ Fundindo seus odores/ Aos vagos
eflúvios do âmbar,/ Os tetos
suntuosos/ Os espelhos profundos/ O esplendor oriental/
Tudo lá falaria/ À alma em segredo...").
Paraíso artificial
Ali, nessa visualidade em que
as superfícies determinam o
mundo, surgia uma lírica própria à pintura, sem que esse
"próprio à" signifique abstração, que tantos pensaram ser a
quintessência pictural.
Todos esses motivos que
completam o conforto quotidiano pelo embelezamento dos
objetos concebidos para o prazer dos olhos, ao serem levados
a sério, constituíram, portanto,
um "lugar". Nele, a natureza é
transfigurada, graças ao universo decorativo, num paraíso
artificial. Basta ver "As Musas",
de Maurice Denis [1870-1943],
ou um jardim pintado por Vuillard [1868-1940], para perceber do que se trata.
Matisse intitulou uma de
suas obras "Luxe, Calme et Volupté" (Luxo, Calma e Volúpia).
É um estribilho no poema "O
Convite à Viagem", de Charles
Baudelaire [1821-67], escritor
que inventou e celebrou os paraísos artificiais, embriagadores, irreais.
O Baudelaire de Matisse vem
despido de angústias e perversões: o pintor instalou-se naquela utopia sem falhas. As telas são convites à viagem no
sentido exato do poema: criam
uma Pasárgada de atmosfera
imóvel e de prazer perfeito.
Avesso a qualquer espírito de
sistema, Matisse inventa sempre soluções, recusa a aplicação
de fórmulas ou receitas. Assim,
por vezes, dispõe o espaço, como no caso do "Torso Grego
com Flores" (1919), do Masp,
em que a escultura repousa sobre uma mesinha meio cézanniana. Ao contrário, em "O
Quarto Vermelho (Harmonia
Vermelha)", do Hermitage
(1908), os motivos da toalha e
da tapeçaria se unem para neutralizar o volume do móvel.
Em 1935, o "Grande Nu Deitado (Nu Rosa)", do museu de
Baltimore, recorta uma ampla
forma feminina num talho
achatado, que adere aos desenhos geométricos do fundo: essa obra, que faz lembrar Tom
Wesselman [1931-2004], sugere o quanto certos criadores
da pop art foram próximos de
Matisse.
Maurice Denis, Vuillard são
vizinhos, porém distintos de
Matisse, irmanados nesse
mundo de estofos e tapetes.
Mas seria preciso pensar também em Klimt [1862-1918]. Tudo o opõe a Matisse: sua poética
simbolista, sua aspiração a um
horizonte filosófico, a finura
nítida de seus contornos, seus
ouros raros.
No entanto, Klimt também
ajusta suas figuras, seus tecidos, seus fundos, na mesma intensidade presente, recortando
superfícies, justapondo-as,
exaltando magníficos padrões
de estamparia. Como Matisse,
é fascinado pela ambiguidade
entre a figuração e os poderes
decorativos.
Esplêndida família
Seria necessário agrupar e
classificar alguns "artistas da
decoração" (sem que -mas é
preciso dizer?- essa palavra
tenha aqui a menor sombra de
menosprezo) para melhor perceber o universo ao qual Matisse pertence.
Gustave Moreau é o pai de todos. Seu espírito decadentista e
cintilante, à maneira de Huysmans na literatura, se prolonga
em Klimt. Seu artificialismo, a
elegância de seu desenho permanecem também entre os nabis (artistas espiritualizados e
marcados por Gauguin), sobretudo Maurice Denis, e se metamorfoseiam então numa serenidade de tapeçaria. Vuillard,
por sua vez, não assume a calma elevada de Denis e torna-se
o "tapeceiro" de um quotidiano
aconchegante.
Surgiram também, nessas
mesmas décadas, os cenários
dos balés russos, criados por
Bakst e por Benois, feitos de
imaterialidade, como escreveu
Proust, graças a seus ornamentos lineares, suas manchas coloridas, que a iluminação estratégica fazia viver.
Essa esplêndida família que
confere ao visível o destino de
seduzir os olhos, que o transfigura para ordená-lo em harmonia sem peso, tem os seus referentes mais antigos, os seus
avós, por assim dizer.
Van Gogh [1853-90], em particular o do período de Arles, o
mais clássico, menos atingido
pelas tensões torturantes, que
não ilumina os objetos e pinta
diretamente a luz, como manchas de ouro.
Mas ainda o Van Gogh da
"Noite Estrelada" de Saint-Rémy, na qual as estrelas explodem metamorfoseadas em
fogos de artifício. Gauguin também, com seus recortes achatados de soberbas sinuosidades,
coloridos com os tons mais ricos, que Matisse homenageia,
confessando a grande dívida
que tem para com ele.
Matisse
elimina qualquer preciosismo, qualquer veleidade
de afetação
ou de dandismo
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Veludos
Antes de todos, está Ingres
[1780-1867], pintor que abole a
atmosfera para fazer melhor
luzir as superfícies, que trata
um rosto feminino e o bordado
de um vestido com a mesma
exata importância. Artista do
desenho soberano, dos magníficos e longos percursos lineares que ondulam. As odaliscas
de Matisse e as de Ingres
unem-se num parentesco muito próximo.
Seria injusto também não
evocar Delacroix [1798-1863]:
de suas "Mulheres de Argel"
brotam outras odaliscas nos
quadros de Matisse.
Dentre os seus descendentes
atuais, está o cineasta Wong
Kar-wai, que dispõe personagens diante de paredes ricas de
motivos e de cores ou em meio
a uma saturação de sedas e veludos caros.
Matisse, nessa galáxia, elimina qualquer preciosismo, qualquer veleidade de afetação ou
de dandismo. Sultão voluptuoso, é o hedonista que ama o luxo
das cores generosas e a fluência
das curvas femininas.
Em suas telas, toma posse do
visível graças às harmonias cromáticas as mais audaciosas em
que, muitas vezes, irrompe o
tom negro e franco, herdado de
Manet, portador de uma luz paradoxal.
Essas harmonias se dispõem
no equilíbrio das formas, sem
que nunca adquiram a espessura ou o peso de um volume material que as sustente. Possuem
a leveza abreviada dos motivos
estampados, que flutuam graças aos seus próprios ritmos.
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