|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Lições de cor
OS PINTORES PAULO PASTA E MARINA RHEINGANTZ E A CURADORA SÔNIA SALZSTEIN DESCREVEM SEU APRENDIZADO COM A OBRA DE MATISSE, QUE SOUBE REAFIRMAR A BELEZA E A ALEGRIA NA PINTURA SEM NEGAR AS CONTRADIÇÕES DO MUNDO
PAULO PASTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Afirmar que Matisse foi
um dos maiores pintores do século 20 talvez
seja dizer pouco. Muitos receberam esse epíteto, mas poucos o sustentam com o mesmo
sentido de comemoração jubilosa. Gostar da pintura de Matisse é reforçar a própria noção
do gostar, retomar o desejo,
quase sempre infindável, de vida em harmonia.
E o grande exemplo que ele
deixa é o de dirigir-se a esse objetivo por meio da inclusão das
diferenças, isto é, somando as
contradições. Por isso, também, ele produz um trabalho
que pode nos acompanhar, trazer alento ao cotidiano, sem
que, por isso, negue seus atributos mais comuns: a instabilidade, a dúvida e até mesmo a
dissensão.
Talvez por esses mesmos
motivos a obra de Matisse tenha conseguido, com força
pouco vista na contemporaneidade, repor a possibilidade da
beleza, reinventando-a, deixando-a mais de acordo com as
nossas necessidades. Essa obra
guarda, como poucas, esse sentido de comunhão, de consonância de opostos.
Sua maneira de organizar as
cores pode comprová-lo. Ele as
queria todas em cooperação,
alavancando-se, até formarem
um contínuo, sem diminuição
recíproca. Incluía o preto na
categoria de cor, a despeito dos
mandamentos da teoria das cores, que ensinava ser esse a ausência de luz.
Aspirava também à superação do conflito entre desenho e
cor, assim como gostava do tema das janelas justamente pelo
seu poder de sugerir a unidade
de interior e exterior, dentro e
fora. Toda a alegria das suas
pinturas parece vir também da
operação paradoxal pela qual a
máxima complexidade deveria
resultar em simplicidade, espontaneidade.
Tornar o outro alegre, de alegria genuína, consolando-o das
penas de existir, pode parecer
muito pouco para justificar esse trabalho. No entanto, é das
coisas mais difíceis de se obter,
no duro mundo que Matisse
via formar-se. De lá para cá, essa brutalidade não fez senão
crescer.
PAULO PASTA é a rtista plástico.
MARINA RHEINGANTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Cada vez que observo suas
pinturas, de todas as surpresas, a que mais me
comove é a forma como ele relaciona as cores -elas são infinitas. Matisse transparece
muita liberdade com as cores.
"O Ateliê Vermelho" (1911) é
uma pintura corajosa. Ela me
impressiona demais, principalmente por ele usar uma cor tão
intensa, o vermelho -cor que
tenho dificuldade de colocar no
meu trabalho-, de maneira
simples.
No trabalho de Matisse, junto com a cor está sempre a forma. Muitas vezes, a cor determina a forma. O arabesco, por
exemplo, pode ser o ornamento do parapeito de um terraço,
a estampa de uma toalha ou de
um papel de parede e até mesmo o caule de uma árvore. Tudo isso acontece apenas com a
variação da cor.
Deixando de lado a questão
formal da pintura, me admira
ainda a maneira como Matisse
lida com o trabalho.
Em uma passagem de seus
escritos, ele revela a relação
passional que teve com a própria obra: "Às vezes digo a mim
mesmo: que belo dia! Como seria agradável fazer um pequeno
passeio: ir aqui perto ver
[Georges] Rouault ou [Pierre]
Bonnard! Mas penso na tinta
que secaria na tela, estou preso
à obra, e se me afasto fico cheio
de remorsos. Da mesma forma,
à noite só consigo dormir depois de preparar o trabalho para o dia seguinte. Eu me agarro
à pintura, como um animal
àquilo que ama".
Essa paixão, tão visível nos
trabalhos dele, me emociona e
dá vontade de ir para o ateliê.
MARINA RHEINGANTZ é pintora.
SÔNIA SALZSTEIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Falta pouco para a inauguração, na Pinacoteca do
Estado de São Paulo, da
primeira grande exposição brasileira de Henri Matisse, e um
pouco mais para que se completem 140 anos de seu nascimento, em dezembro.
Trata-se de oportunidade
inestimável de reexame de
uma obra crucial do modernismo, sobretudo porque, contrastada, de um lado, com as
peripécias picassianas de desmontagem e remontagem das
formas e, de outro, com o silêncio provocador de Marcel Duchamp [1887-1968], a muitos
ela pareceu "conservadora"
-reputação que ainda seria reforçada pela célebre declaração
do artista, de que sonhava com
uma pintura que servisse de lenitivo ao "homem de negócios", "algo como uma boa poltrona" onde este poderia "relaxar o cansaço físico".
Num século 20 atribulado
por visões escatológicas, de assombro e destruição, sua obra
nos oferecia, surpreendentemente, uma imaginação de
bem-estar, conforto e felicidade amena, divisada, além do
mais, através de soberbos padrões decorativos.
É admirável que essa pintura
continue a provocar o presente, justo porque se confirma,
hoje como nunca, a improbabilidade desses mundos a cuja
exploração o pintor se entregou de modo tão pleno, mesmo
que recolhido a um sóbrio ceticismo. Essa imaginação do impossível o perseguiu por cinco
décadas, da tela "Luxo, Calma e
Volúpia", de 1904-05, até as
derradeiras colagens que o artista realizou em idade avançada e já bastante enfermo.
De tudo resultam verdadeiras epifanias às inesgotáveis dimensões eróticas da arte, frutos de trabalho árduo e disciplinado, a condensar no suprassumo da experiência o
apelo múltiplo e fragmentário
das sensações e o ramerrão da
vida prática.
A despeito do que se disse do
pintor, seu percurso foi de radical experimentalidade -silencioso, feito de revisões e autorrecapitulações compenetradas. Em todo caso, acabou por
valer quase sempre a Picasso,
cuja verve mercurial era contraposta ao "classicismo" do
amigo/rival, o posto do artista
emblemático da arte moderna.
A sensação de que a Arcádia,
um mundo deleitável, por certo diferente deste, poderia estar logo ali, a um passo ou a um
abismo de nós -tal é o aspecto
que não cansamos de aprender
com Matisse.
SÔNIA SALZSTEIN é professora de artes plásticas na USP e curadora.
Texto Anterior: Mostra é a 1ª individual do pintor no Brasil Próximo Texto: Celebração numa época fraturada Índice
|