São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009

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Lições de cor

OS PINTORES PAULO PASTA E MARINA RHEINGANTZ E A CURADORA SÔNIA SALZSTEIN DESCREVEM SEU APRENDIZADO COM A OBRA DE MATISSE, QUE SOUBE REAFIRMAR A BELEZA E A ALEGRIA NA PINTURA SEM NEGAR AS CONTRADIÇÕES DO MUNDO

PAULO PASTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Afirmar que Matisse foi um dos maiores pintores do século 20 talvez seja dizer pouco. Muitos receberam esse epíteto, mas poucos o sustentam com o mesmo sentido de comemoração jubilosa. Gostar da pintura de Matisse é reforçar a própria noção do gostar, retomar o desejo, quase sempre infindável, de vida em harmonia.
E o grande exemplo que ele deixa é o de dirigir-se a esse objetivo por meio da inclusão das diferenças, isto é, somando as contradições. Por isso, também, ele produz um trabalho que pode nos acompanhar, trazer alento ao cotidiano, sem que, por isso, negue seus atributos mais comuns: a instabilidade, a dúvida e até mesmo a dissensão.
Talvez por esses mesmos motivos a obra de Matisse tenha conseguido, com força pouco vista na contemporaneidade, repor a possibilidade da beleza, reinventando-a, deixando-a mais de acordo com as nossas necessidades. Essa obra guarda, como poucas, esse sentido de comunhão, de consonância de opostos.
Sua maneira de organizar as cores pode comprová-lo. Ele as queria todas em cooperação, alavancando-se, até formarem um contínuo, sem diminuição recíproca. Incluía o preto na categoria de cor, a despeito dos mandamentos da teoria das cores, que ensinava ser esse a ausência de luz.
Aspirava também à superação do conflito entre desenho e cor, assim como gostava do tema das janelas justamente pelo seu poder de sugerir a unidade de interior e exterior, dentro e fora. Toda a alegria das suas pinturas parece vir também da operação paradoxal pela qual a máxima complexidade deveria resultar em simplicidade, espontaneidade. Tornar o outro alegre, de alegria genuína, consolando-o das penas de existir, pode parecer muito pouco para justificar esse trabalho. No entanto, é das coisas mais difíceis de se obter, no duro mundo que Matisse via formar-se. De lá para cá, essa brutalidade não fez senão crescer.


PAULO PASTA é a rtista plástico.

MARINA RHEINGANTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cada vez que observo suas pinturas, de todas as surpresas, a que mais me comove é a forma como ele relaciona as cores -elas são infinitas. Matisse transparece muita liberdade com as cores. "O Ateliê Vermelho" (1911) é uma pintura corajosa. Ela me impressiona demais, principalmente por ele usar uma cor tão intensa, o vermelho -cor que tenho dificuldade de colocar no meu trabalho-, de maneira simples.
No trabalho de Matisse, junto com a cor está sempre a forma. Muitas vezes, a cor determina a forma. O arabesco, por exemplo, pode ser o ornamento do parapeito de um terraço, a estampa de uma toalha ou de um papel de parede e até mesmo o caule de uma árvore. Tudo isso acontece apenas com a variação da cor.
Deixando de lado a questão formal da pintura, me admira ainda a maneira como Matisse lida com o trabalho.
Em uma passagem de seus escritos, ele revela a relação passional que teve com a própria obra: "Às vezes digo a mim mesmo: que belo dia! Como seria agradável fazer um pequeno passeio: ir aqui perto ver [Georges] Rouault ou [Pierre] Bonnard! Mas penso na tinta que secaria na tela, estou preso à obra, e se me afasto fico cheio de remorsos. Da mesma forma, à noite só consigo dormir depois de preparar o trabalho para o dia seguinte. Eu me agarro à pintura, como um animal àquilo que ama".
Essa paixão, tão visível nos trabalhos dele, me emociona e dá vontade de ir para o ateliê.


MARINA RHEINGANTZ é pintora.

SÔNIA SALZSTEIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Falta pouco para a inauguração, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, da primeira grande exposição brasileira de Henri Matisse, e um pouco mais para que se completem 140 anos de seu nascimento, em dezembro. Trata-se de oportunidade inestimável de reexame de uma obra crucial do modernismo, sobretudo porque, contrastada, de um lado, com as peripécias picassianas de desmontagem e remontagem das formas e, de outro, com o silêncio provocador de Marcel Duchamp [1887-1968], a muitos ela pareceu "conservadora" -reputação que ainda seria reforçada pela célebre declaração do artista, de que sonhava com uma pintura que servisse de lenitivo ao "homem de negócios", "algo como uma boa poltrona" onde este poderia "relaxar o cansaço físico".
Num século 20 atribulado por visões escatológicas, de assombro e destruição, sua obra nos oferecia, surpreendentemente, uma imaginação de bem-estar, conforto e felicidade amena, divisada, além do mais, através de soberbos padrões decorativos. É admirável que essa pintura continue a provocar o presente, justo porque se confirma, hoje como nunca, a improbabilidade desses mundos a cuja exploração o pintor se entregou de modo tão pleno, mesmo que recolhido a um sóbrio ceticismo. Essa imaginação do impossível o perseguiu por cinco décadas, da tela "Luxo, Calma e Volúpia", de 1904-05, até as derradeiras colagens que o artista realizou em idade avançada e já bastante enfermo. De tudo resultam verdadeiras epifanias às inesgotáveis dimensões eróticas da arte, frutos de trabalho árduo e disciplinado, a condensar no suprassumo da experiência o apelo múltiplo e fragmentário das sensações e o ramerrão da vida prática.
A despeito do que se disse do pintor, seu percurso foi de radical experimentalidade -silencioso, feito de revisões e autorrecapitulações compenetradas. Em todo caso, acabou por valer quase sempre a Picasso, cuja verve mercurial era contraposta ao "classicismo" do amigo/rival, o posto do artista emblemático da arte moderna.
A sensação de que a Arcádia, um mundo deleitável, por certo diferente deste, poderia estar logo ali, a um passo ou a um abismo de nós -tal é o aspecto que não cansamos de aprender com Matisse.


SÔNIA SALZSTEIN é professora de artes plásticas na USP e curadora.



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