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Celebração numa época fraturada
EM TRECHOS DE ENSAIO INÉDITO, RONALDO BRITO RELACIONA
AS FORMAS DE MATISSE
AOS CONFLITOS MODERNOS
RONALDO BRITO
M
atisse é o grande disponibilizador de mundo da arte moderna. Nenhuma essência trava a livre desenvoltura das aparências em seus
quadros. Brilha aí a única verdade definitiva ao alcance do
eu moderno: o mundo é inacabado, nunca terminamos de
vê-lo e, com isso, provisoriamente completá-lo. E, como a
tarefa é infinita, dispomos de
uma razão sensível, sempre renovada, para viver.
O que era em Cézanne [1839-1906] ânsia de construção, angústia diante da multiplicidade
do real, sublima-se em seu discípulo em perene abertura para o mundo. Claro, há que conquistá-la, longo e custoso esforço de depuração: tudo reduzir à matéria da luz. Quando todo o trabalho infatigável transmuda-se em graça. O que, de
certo modo, arremata o projeto
iluminista ao tornar absoluta a
graça secular.
Esta dispensa sumariamente
outro mundo. É simples: ele
não poderia ser tão bonito
quanto esses quadros. A própria ideia de Deus parece uma
extravagância, falta de consideração com a realidade.
A cor, a luz da cor, assegura
agora a estrutura volátil do
real, sua atualidade sem substância, sem fundamento, inteiramente plástica. O princípio
do espaço é a feliz ambiguidade. Tudo é viável, plausível para essa vontade voraz de espacialização, sempre a promover
acordos entre nós e coisas outra vez reanimadas.
Mundo em gerúndio, prodigiosa arquitetura do instante, a
sustentar um presente estético
que redime nossa finitude pela
ação palpável do amor. E amor
pagão, espontâneo, autossuficiente. Coincidem fruição do
tempo e sedução do espaço -o
que mais pode esperar um
mortal?
Harmonia aqui é verbo, capacidade de provocar, prodigalizar dilemas, desafios e contradições para resolvê-los em
seus próprios termos. Problemas que a história da arte, como o próprio artista, costuma
atribuir ao eterno conflito entre desenho e cor. Pelo visto,
nem a célebre divisa cézanniana -desenhar com a cor- veio
a suprimi-lo. Acho apenas que
a severa exigência de harmonia
-o superego de Matisse- impõe a lei da contradição a todos
os seus meios.
As cores extrapolam, buscam
extremos e opostos, até brilharem, justas e inequívocas, como se acabassem de ser descobertas; os arabescos decorativos, seguindo as pegadas de Cézanne, empenham-se em uma
reflexividade ininterrupta até
se determinarem como forças
construtivas.
E tantas vezes, de propósito,
a carnalidade escultórica das
figuras deve integrar-se a um
puro ambiente de luz.
Um admirador, Clement
Greenberg, via nesses quadros
lendários um impasse: a tentativa de conciliar o inconciliável.
Cordialmente, discordo. Penso
que eles pretendem expor de
maneira ostensiva o conflito,
não dar trégua ao senso moderno do paradoxo. A tela assimila
e suporta, em precário equilíbrio, seus conflitos e, assim,
mente um pouco menos ao
curso incerto da vida.
Os temas por excelência da
modernidade -o estar no
mundo, a transcendência na
imanência, enfim, a via-crúcis
do eu moderno- encontram
uma solução natural, despretensiosa e, por isso mesmo, inigualável. Nem sequer formulada, muito menos alardeada, a
solução apresenta-se com a
força irresistível da pura evidência.
Daí a sensação quase inevitável de que a pintura de Henri
Matisse resume a lírica da sintaxe visual moderna.
E que a tela guarde um pouco
da "physis", um resto de "mímesis", que essa pioneira empresa de transformação siga
em parte sob os auspícios da
tradição antropomórfica ocidental, no limite de coerência
da morfologia, isso acaba de algum modo desimportante.
Nas últimas colagens, em "O
Caracol" (L'Escargot, 1953),
em particular, Matisse parecia
de fato na iminência de emancipar-se por completo da continuidade morfológica, prestes a
dispor da liberdade do signo
plástico abstrato. Até o último
instante, próximo ao desenlace, ele deixa no ar uma interrogação e cumpre assim o mandamento moderno do inacabado, mandamento que levou,
acima de qualquer outro artista
de seu tempo, à sua máxima
-celebrar a forma aberta da vida moderna. Outro céu não espere, nem outro inferno.
RONALDO BRITO é professor de história da arte
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Este texto é parte do livro "Matisse - Imaginação, Erotismo, Visão Decorativa", a ser lançado pela Cosac Naify.
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