São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009

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Celebração numa época fraturada

EM TRECHOS DE ENSAIO INÉDITO, RONALDO BRITO RELACIONA AS FORMAS DE MATISSE AOS CONFLITOS MODERNOS

RONALDO BRITO

M atisse é o grande disponibilizador de mundo da arte moderna. Nenhuma essência trava a livre desenvoltura das aparências em seus quadros. Brilha aí a única verdade definitiva ao alcance do eu moderno: o mundo é inacabado, nunca terminamos de vê-lo e, com isso, provisoriamente completá-lo. E, como a tarefa é infinita, dispomos de uma razão sensível, sempre renovada, para viver.
O que era em Cézanne [1839-1906] ânsia de construção, angústia diante da multiplicidade do real, sublima-se em seu discípulo em perene abertura para o mundo. Claro, há que conquistá-la, longo e custoso esforço de depuração: tudo reduzir à matéria da luz. Quando todo o trabalho infatigável transmuda-se em graça. O que, de certo modo, arremata o projeto iluminista ao tornar absoluta a graça secular.
Esta dispensa sumariamente outro mundo. É simples: ele não poderia ser tão bonito quanto esses quadros. A própria ideia de Deus parece uma extravagância, falta de consideração com a realidade. A cor, a luz da cor, assegura agora a estrutura volátil do real, sua atualidade sem substância, sem fundamento, inteiramente plástica. O princípio do espaço é a feliz ambiguidade. Tudo é viável, plausível para essa vontade voraz de espacialização, sempre a promover acordos entre nós e coisas outra vez reanimadas.
Mundo em gerúndio, prodigiosa arquitetura do instante, a sustentar um presente estético que redime nossa finitude pela ação palpável do amor. E amor pagão, espontâneo, autossuficiente. Coincidem fruição do tempo e sedução do espaço -o que mais pode esperar um mortal?
Harmonia aqui é verbo, capacidade de provocar, prodigalizar dilemas, desafios e contradições para resolvê-los em seus próprios termos. Problemas que a história da arte, como o próprio artista, costuma atribuir ao eterno conflito entre desenho e cor. Pelo visto, nem a célebre divisa cézanniana -desenhar com a cor- veio a suprimi-lo. Acho apenas que a severa exigência de harmonia -o superego de Matisse- impõe a lei da contradição a todos os seus meios.
As cores extrapolam, buscam extremos e opostos, até brilharem, justas e inequívocas, como se acabassem de ser descobertas; os arabescos decorativos, seguindo as pegadas de Cézanne, empenham-se em uma reflexividade ininterrupta até se determinarem como forças construtivas.
E tantas vezes, de propósito, a carnalidade escultórica das figuras deve integrar-se a um puro ambiente de luz. Um admirador, Clement Greenberg, via nesses quadros lendários um impasse: a tentativa de conciliar o inconciliável.
Cordialmente, discordo. Penso que eles pretendem expor de maneira ostensiva o conflito, não dar trégua ao senso moderno do paradoxo. A tela assimila e suporta, em precário equilíbrio, seus conflitos e, assim, mente um pouco menos ao curso incerto da vida.

 


Os temas por excelência da modernidade -o estar no mundo, a transcendência na imanência, enfim, a via-crúcis do eu moderno- encontram uma solução natural, despretensiosa e, por isso mesmo, inigualável. Nem sequer formulada, muito menos alardeada, a solução apresenta-se com a força irresistível da pura evidência.

 


Daí a sensação quase inevitável de que a pintura de Henri Matisse resume a lírica da sintaxe visual moderna. E que a tela guarde um pouco da "physis", um resto de "mímesis", que essa pioneira empresa de transformação siga em parte sob os auspícios da tradição antropomórfica ocidental, no limite de coerência da morfologia, isso acaba de algum modo desimportante.
Nas últimas colagens, em "O Caracol" (L'Escargot, 1953), em particular, Matisse parecia de fato na iminência de emancipar-se por completo da continuidade morfológica, prestes a dispor da liberdade do signo plástico abstrato. Até o último instante, próximo ao desenlace, ele deixa no ar uma interrogação e cumpre assim o mandamento moderno do inacabado, mandamento que levou, acima de qualquer outro artista de seu tempo, à sua máxima -celebrar a forma aberta da vida moderna. Outro céu não espere, nem outro inferno.

RONALDO BRITO é professor de história da arte na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Este texto é parte do livro "Matisse - Imaginação, Erotismo, Visão Decorativa", a ser lançado pela Cosac Naify.



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