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+Sociedade
Comunidades falsificadas
Filósofo espanhol diz que a utopia de democracia direta
e igualdade total na internet
é mentirosa e ameaça
minar as práticas de representação
e participação políticas reais
RENATO ESSENFELDER
DA REDAÇÃO
Com a emergência de
gigantescas redes sociais virtuais, como o
Facebook, a internet
configura a sua utopia máxima: todos somos
iguais. E, se somos todos iguais,
não precisamos mais de eleições, pois não precisamos ser
representados. Todos nos representamos no espaço democrático da internet.
O raciocínio é tentador, mas,
para o filósofo espanhol Jesús
Martín-Barbero, é mentiroso
-e temerário. "Nunca fomos
nem seremos iguais", ele diz, e
na vida cotidiana continuaremos dependendo de mediações
para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação
de partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet
como um dos fatores de desestabilização do mundo hoje, que
não pode ser pensado por disciplinas estanques. Mundo, aliás,
tomado pela incerteza e pelo
medo, que nos faz sonhar com
a relação não mediada das comunidades pré-modernas.
O filósofo conversou com a
Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.
FOLHA - Desde 1987, quando o sr.
lançou sua obra de maior repercussão ["Dos Meios às Mediações", ed.
UFRJ], até hoje, o que mudou na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO - Estamos
em um momento de pensar o
conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza intelectual dos modernos
se vê hoje atravessada por outra sensação: o medo.
A sociedade vive uma espécie
de volta ao medo dos pré-modernos, que era o medo da natureza, da insegurança, de uma
tormenta, um terremoto. Agora vivemos em uma espécie de
mundo que nos atemoriza e
desconcerta.
O medo vem, por
exemplo, da ecologia: o que vai
acontecer com o planeta, o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema
hoje, como aos pré-modernos.
Depois vem o tema da violência urbana, a insegurança urbana. Por toda cidade que passo,
de 20 mil a 20 milhões de habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança,
que nos afeta cada vez mais,
aparece a vida laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande
instituição moderna que deu
segurança às pessoas, vamos
para um mundo em que o sistema necessita cada vez menos
de mão de obra. O mundo do
trabalho se desconfigurou como mundo de produção do sentido da vida.
FOLHA - Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de
comunidade? Como ela aparece em
redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO - Acho que ainda não temos palavras para nomear esse fenômeno. Falamos
em rede social, mas o que significa social aí? Apenas uma rede
de muita gente. Não necessariamente em sociedade.
Há diferenças entre o que foi
a comunidade pré-moderna e o
que foi o conceito de sociedade
moderna.
A comunidade era
orgânica, havia muitas ligações
entre os seus membros, religiosas, laborais.
Renato Ortiz [sociólogo e
professor na Universidade Estadual de Campinas] faz uma
crítica muito bem feita a um livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é
como uma comunidade imaginada ["Comunidades Imaginadas", ed. Companhia das Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais
para a criação da ideia de nação.
Mas Renato Ortiz diz que há
muito de verdade e muito de
mentira nisso. O que acontece é
que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a comunidade. Era uma comunidade
imaginada no sentido de querer
ter algo de comunidade, e não
só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se romperam todos os laços da comunidade
pré-moderna. Eu diria que há aí
um ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial. Essa é um pouco a utopia da internet.
FOLHA - Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO - A utopia da
internet é que já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos
iguais. E portanto a democracia
de todos é mentira. Seguimos
necessitando de mediações de
representação das diferentes
dimensões da vida. Precisamos
de partidos políticos ou de uma
associação de pais em um colégio, por exemplo.
FOLHA - As comunidades virtuais
da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO - Quando começamos a falar de comunidades de leitores, de espectadores
de novela, estamos falando de
algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que
gosta do mesmo em um mesmo
momento. Se a energia elétrica
acaba, toda essa gente cai.
É
uma comunidade invisível, mas
é real, tão real que é sondável,
podemos pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade.
Nesse sentido é muito difícil
proibir o uso da expressão "comunidade" para o Facebook.
Mas o que me ocorre ao usarmos o termo "comunidade" para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que eram uma
forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade
moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do
outro. Outra chave: o parentesco. A família extensa sumiu.
Hoje, uma família é um casal. O
que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos
numa situação em que o velho
morreu e o novo não tem figura
ainda, que é a ideia de crise de
[Antonio] Gramsci.
FOLHA - A proposta de sites como o
Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO - Creio que há
pessoas no Facebook que, pela
primeira vez em suas vidas, se
sentem em sociedade. É uma
questão importante, mas não
podemos esquecer da maneira
como nos relacionamos com o
Facebook.
Um inglês que passa
boa parte de sua vida só, em um
pub, com sua grande cerveja,
desfruta muito desse modo de
vida. Nós, latinos, desfrutamos
mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real,
mas a maneira como nos relacionamos, como o usamos, é
muito distinta. O Facebook não
nos iguala. Nos põe em contato,
mas nada mais.
FOLHA - De que maneira essas
questões devem transformar os
meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO - Não sei para
onde vamos, mas em muito
poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos
hoje. A televisão por programação horária é herdeira do rádio,
que foi o primeiro meio que começou a nos organizar a vida
cotidiana. Na Idade Média, o
campanário era que dizia qual
era a hora de levantar, de comer, de trabalhar, de dormir. A
rádio foi isso.
A rádio nos foi
pautando a vida cotidiana. O
noticiário, a radionovela, os espaços de publicidade...
Essa relação que os meios tiveram com a vida cotidiana, organizada em função do tempo,
a manhã, a tarde, a noite, o fim
de semana, as férias, isso vai
acabar. Teremos uma oferta de
conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da
rádio, a rádio imitadora da imprensa escrita... Creio que vamos para uma mudança muito
profunda, porque o que entra
em crise é o papel de organização da temporalidade.
FOLHA - A ascensão da internet e
da oferta de informação por conteúdos suscita outra questão, ligada à
formação do cidadão. Não corremos
o risco de que um fã de séries de TV,
por exemplo, só busque notícias sobre o tema, alienando-se do que
acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO - Antigamente,
todos líamos, escutávamos e
víamos o mesmo. Isso para
mim era muito importante. De
certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres -sempre defendi isso como um aspecto de
formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me que isso era
uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um
entorno comunicativo, as mudanças não são pontuais como
antes. A questão não é se eu
abro ou não abro o correio. Não
quero ser catastrofista, mas o
tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto
que sou visto. Em quanto mais
páginas entro, mais gente me
vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas
e tantas línguas que já não sabemos o que queremos. Hoje
há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o problema para
mim não é o que vão fazer os
meios, mas o que fará o sistema
educacional para formar pessoas com capacidade de serem
interlocutoras desse entorno;
não de um jornal, uma rádio,
uma TV, mas desse entorno de
informação em que tudo está
mesclado. Há muitas coisas a
repensar radicalmente.
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