São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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LITERATURA
Leia entrevista com o escritor moçambicano Mia Couto, que toma posse na Academia Brasileira de Letras quinta-feira
Escrita desarrumada

OMAR RIBEIRO THOMAZ
e RITA CHAVES
especial para a Folha

Mia Couto, 42 anos, é hoje um dos nomes mais conhecidos e prestigiados da ficção africana de língua portuguesa. Nascido na região central de Moçambique, filho de pais portugueses, tinha 20 anos quando seu país foi libertado, em 1975. Viveu ainda o drama da guerra de agressão movida pelos então regimes racistas da antiga Rodésia (atual Zimbábue) e África do Sul e a guerra civil que, até 1992, devastou Moçambique.
O autor tem livros traduzidos em dez línguas. Dois deles já foram lançados no Brasil pela Nova Fronteira: "Terra Sonâmbula" (romance) e "Histórias Abensonhadas" (contos).
Na quinta-feira, Mia Couto toma posse de uma cadeira do quadro de sócios correspondentes da Academia Brasileira de Letras.

Folha - Seus textos refletem muito bem a mesclagem cultural que caracteriza Moçambique. Esse fato, porém, surpreende o leitor que, por desconhecer a África, não imagina que, sendo branco, você possa representar tão bem um pedaço do continente. Como explicaria a incorporação daquilo que podemos reconhecer como um universo marcadamente africano?
Mia Couto -
A explicação tem que recorrer à política de assimilação portuguesa: ao contrário do esperado, ela funcionou nos dois sentidos. Funcionou no sentido de assimilar um pequeno segmento dos negros (nas zonas urbanas e litorâneas) a uma cultura portuguesa, e, no sentido inverso, filhos de portugueses também foram assimilados. Essa política foi, assim, também dirigida pela própria vida. Sobretudo nas zonas de fronteira, como era a cidade onde nasci: as fronteiras estavam na minha rua, na porta da minha casa. Eu nasci e cresci na Beira, junto a bairros negros, brinquei com miúdos negros, aprendi a falar muito novo a língua local, escutei histórias. Sou marcado por essa dualidade, casa e rua, que me fez viver dois universos. Em outras cidades moçambicanas, as coisas eram diferentes. Na então Lourenço Marques, agora Maputo, as fronteiras eram muito mais delimitadas, o espaço urbano estava rigidamente hierarquizado.
Folha - Na sua obra, a fronteira entre campo e cidade é especialmente trabalhada: o campo aparece como fonte de equilíbrio, e a cidade, como espaço de degradação. O campo como matriz cultural é um legado da sua experiência?
Couto -
A fronteira entre o urbano e o rural, num país como o meu, é sentida dentro das pessoas: não há ninguém completamente urbano ou completamente rural. As pessoas que me marcaram, que me contaram histórias, portavam um imaginário atravessado por valores rurais. E tais valores eram, em momentos de crise como os que vivíamos, convocados. Todo esse percurso da minha vida foi marcado por grandes convulsões, pró-revolução, luta armada, revolução... Sei que isso é um pouco ilusório: a noção de que a verdade e a pureza estão no lado rural é uma idéia romântica, mas, de fato, correspondeu a essa procura de certezas: é preciso ter um chão... como se, nos momentos de crise, as pessoas migrassem internamente para o seu lado rural.
Folha - Foi essa percepção que o levou à biologia, ou o contrário?
Couto -
A biologia foi uma opção muito antiga. Dentro da idéia romântica de que o lado rural... bem, aqui não se pode dizer que é rural no sentido de que a agricultura seria a atividade ordenadora. A maior parte do rural, que eu conhecia desde criança, era muito pouco "ruralizada"; era outra lógica do mundo que eu reconhecia. E a biologia, como opção de viver esse "outro lado do mundo", me fascinava. A biologia dá muito poucas certezas, é uma "indisciplina", mais que uma disciplina, que nos faz perder um pouco o pé, que nos faz procurar outras linguagens.
Folha - E na sua formação como escritor, como atuaram a biologia e o jornalismo?
Couto -
Eu comecei no jornalismo um mês antes do 25 de abril em Portugal. Comecei no "Tribuna", que era um jornal com tradição revolucionária. Eu fui jornalista até 1985. Por meio do jornalismo conheci muito desse país. Mas depois senti falta do lado mais fascinante da viagem, que é olhar dentro das pessoas: o jornalismo não dá tempo, não permite essa profundidade no estar com os outros. O jornalismo deu-me uma certa disciplina, ensinou-me o uso da escrita como meio de chegar aos outros. A biologia permite capturar outras linguagens: percebi que existe uma linguagem de comunicação. Tanto a biologia quanto o jornalismo são meios de viajar.
Folha - Quando você, como jornalista, fez essas viagens pelo país, as lembranças da guerra colonial eram ainda muito fortes. No entanto, a guerra colonial, um tema recorrente na literatura africana, não é uma presença marcante na sua literatura. Por quê?
Couto -
A guerra colonial era politicamente dirigida, tinha alvo, e tinha um caráter épico, "a luta da nossa libertação". A guerra de libertação não nos desarticulou tanto como esta última, que foi tão profunda que nos obrigou a buscas dentro de nós, que nos fazia perguntar continuamente "por quê?". A guerra de libertação tinha um programa político... Eu acho que esta segunda guerra desarticulou mais profundamente este mundo.


Em um país como o meu, não há ninguém totalmente urbano ou rural


Folha - ... por isso que ele aparece sob o signo da incompreensão?
Couto -
Hoje, mesmo como jornalista, continuo sem entender, a guerra é qualquer coisa que foge da compreensão... estamos a chamar a paz sem perceber exatamente o que fez aquela guerra. O que é grave, pois não sabemos se o que vivemos agora é paz, ou se devemos chamar o momento atual de "trégua".
Folha - Há, no país, uma disposição das pessoas em não tocar nesse assunto, como se a guerra não tivesse acontecido...
Couto -
Esta memória está guardada com muito cuidado, como se fosse uma caixa de demônios que as pessoas não querem reabrir. Mas a memória está lá... há uma certa sabedoria: como o conflito que esteve na base da guerra não foi completamente resolvido, há um grande receio de que ressentimentos possam dar origens a um conflito, novamente incontrolável e incompreensível. Trata-se de uma espécie de "gestão" do esquecimento, um esquecimento deliberado, administrativo, com uma certa sabedoria de quem sabe que não vale a pena ajustar contas, procurar "verbetes".
Folha - Como você vê a relação entre literatura e memória?
Couto -
O que eu faço dentro de mim é uma espécie de reconciliação com a situação e tenho muita dificuldade em ver isso como uma missão, algo assim como "a literatura deve fazer". Nunca me vi como tendo uma missão. Se a literatura pode ajudar em alguma coisa, é tranquilizar... a via da literatura oferece caminhos menos penosos, que nos façam assegurar, "podes recuperar aquele tempo". Nós temos que poder regressar ao passado... eu não creio, mas, se calhar, a literatura pode ajudar.
Folha - Em geral, os escritores de países periféricos se queixam de ter pouco tempo para escrever, uma vez que precisam cumprir outras tarefas. Como você vê isto?
Couto -
Se tivesse só que escrever, eu deixaria de escrever. Acho que tenho que estar no meio da confusão, ter todas estas solicitações do cotidiano -o que é complicado- para poder escrever exatamente sobre ele. Mesmo que pudesse viver só da literatura, eu nunca faria isto.
Folha- Qual o lugar da literatura hoje em Moçambique?
Couto -
Eu acho que hoje estamos fazendo coisas para amanhã serem retomadas. Hoje são mais urgentes ações de intervenção social, como o jornalismo. Houve um tempo em que o livro praticamente deixou de existir, nós não produzíamos livros, não importávamos livros. O livro passou a ser o instrumento de uma pequenina elite. Essa elite é bem importante, não a desprezo, mas em termos de impacto, daquilo que pode mexer com as pessoas, considero o jornalismo mais importante do que a literatura.
Vejo a literatura como um conjunto de coisas que funcionam: é preciso haver crítica literária, leitores, debate, produção de livros, escolas... Como um conjunto de elementos articulados, isso não existe em Moçambique hoje. Muita gente pensa que, por haver meia dúzia de escritores produzindo obras razoáveis, já temos literatura: eu creio que não. Temos gente trabalhando naquilo que será o chão de um edifício qualquer no futuro.
E o problema não é só aquele mais óbvio: a falta de hábito de leitura, falta de fundos para trazer livros, apoios financeiros. O problema está dentro de nós: não deixamos que a oralidade nos invada, nos terrenos da literatura e do jornalismo. Temos que repensar a nossa própria forma de trabalhar. A estrutura narrativa e a linguagem que procuramos estão muito pouco atravessadas pela oralidade. Não nos deixamos enamorar por ela. Infelizmente há pouca fecundação entre aquilo que são as lógicas da oralidade e a nossa escrita.
Folha - No entanto um dos traços de maior vitalidade em sua obra vem justamente do fato de você incorporar de forma extremamente dinâmica a oralidade...
Couto -
Eu sempre abro as portas para que esta oralidade me invada e desarrume a escrita em tudo até o limite. Até o limite que deixe de ser literatura, não me importo que isto aconteça... Inevitável que a invasão do mundo da oralidade ocorra, e vem ocorrendo comigo e com outros escritores de Moçambique.
Folha - Você considera que nessa "invasão", possivelmente uma base da comunhão entre o narrador e aquelas personagens que poderíamos situar no terreno da exclusão, como os pobres, os velhos, as crianças, estaria a raiz dessa linguagem pontuada por desvios linguísticos?
Couto -
Bom, não se trata de algo que tenha construído com alguma intenção: eu não sei fazer de outra maneira. O desvio linguístico com relação à norma portuguesa faz parte deste país, da oralidade, onde eu bebo, onde eu vivo... e como eu tenho um pé em cada mundo, me apercebo destes desvios como qualquer coisa que pode introduzir beleza, que pode funcionar do ponto de vista estético ou, mais importante, pode funcionar como qualquer coisa que interrogue aquilo que é familiar.
Outra função é mostrar o que está a operar neste nível real, onde pessoas estão expressando, e uma história é relatada numa língua, que não é a língua própria das pessoas. Esta fratura tem que ser descoberta, tem que ser revelada, e os desvios linguísticos são sinais que podem mostrar isto. Fico muito triste quando fazem a interpretação só em nível estético do desvio linguístico, quando eu gostaria que se evidenciasse este retrato de dois mundos.


Existe em Moçambique um tipo de administração, de "gestão" do esquecimento


Folha - Esta linguagem "despedaçada" espelha a dificuldade que as pessoas têm de compreender...
Couto -
... a dificuldade que as pessoas têm, no português padrão, "sem desvio", de encontrar a expressão para traduzir aquilo que é o seu mundo. Elas estão lidando com uma língua que é de outro mundo, com outra lógica, e elas têm que despedaçá-la para que a língua possa ser sua.
Folha - Em mais de uma ocasião você relatou a descoberta de Luandino Vieira, que também o leva a Guimarães Rosa, além de citar João Cabral e Drummond. Como entram as literaturas angolana e brasileira em sua obra?
Couto -
Devo me referir a outro escritor, o moçambicano José Craveirinha, que, na altura, eu via como um poeta militante, alguém que trabalhava para despertar a consciência nacional. Hoje me dou conta de que, do ponto de vista da estética literária, a sua influência foi grande. Depois foi, naturalmente, o Luandino, o primeiro escritor que me mostrou que, desarrumando a língua, estaremos fazendo uma coisa que é nossa, e é natural que Angola tivesse um processo muito parecido com o nosso. Eu fiquei logo cheio de inveja do Luandino. Depois li uma entrevista na qual ele citava Guimarães Rosa como alguém que tinha operado nele aquilo que ele tinha operado em mim.
Eu já havia publicado o "Vozes Anoitecidas" e consegui, por intermédio de um amigo, o "Primeiras Histórias". Aquilo foi muito importante: completava um processo que havia começado com o Luandino, agora autorizado por alguém que fazia isso num sentido mais político. Todo o resto eu devo à poesia: vim pela poesia, caminhei pela poesia, acho que ainda estou na poesia e leio muito mais poesia do que prosa. Ler no sentido daquilo que mexe comigo.
As outras referências são João Cabral, alguém que tem uma engenharia na linguagem que é inatingível. Em língua portuguesa não creio que haja hoje alguém que saiba manejar tão bem o texto. E agora esta última descoberta que é o Manoel de Barros. Tenho mais dívidas com o Brasil do que com Portugal.
Folha - Isso confirma a existência de um "sistema ampliado" de que o Brasil é parte importante?
Couto -
Sim. Impressionante como gerações de moçambicanos e angolanos foram marcadas por Jorge Amado, Graciliano Ramos, provavelmente de uma maneira muito mais determinante do que a leitura que vinha de Portugal. Há qualquer coisa de "sistêmico" por baixo disso tudo.
Folha - E os outros escritores africanos fora do mundo de língua portuguesa?
Couto -
Nós tínhamos e ainda temos poucas trocas com outros escritores africanos. O "Bebedor de Vinho de Palma", do congolês Amos Tutuola, me tocou muito, e, quando fiz o "Terra Sonâmbula", recordei-me desse livro e da capacidade do autor de incorporar o mundo da ruralidade no seu texto.
Folha - Como sujeito de experiências tão diversificadas, como se situa no processo de construção de uma nação moçambicana?
Couto -
Eu faço parte do mundo do litoral, uma zona humana do litoral de Moçambique, que, menos "moçambicana" do ponto de vista folclórico, é aquela que está fabricando a "moçambicanidade". Qualquer indivíduo, aparentemente mais "originário" do que eu, aqui em Maputo, ou em outros lugares, vive um mundo muito semelhante ao meu, com um percurso, com preocupações, com referências muito semelhantes. Eu não preciso, assim, apresentar "provas de identidade".
"Terra Sonâmbula" é um livro de procura de identidade..., mas está ali a idéia de que a identidade não existe, é uma procura infinita.


Omar Ribeiro Thomaz é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e Rita Chaves é professora do departamento de letras clássicas e vernáculas da USP. Colaborou Cris Bierrenbach.


O escritor Mia Couto fará uma palestra na quarta-feira na Escola Superior de Propaganda e Marketing (r. do Rosário, 90, 11º andar, RJ), às 16h. Em seguida, o autor autografa seu livro "Cada Homem É Uma Raça", que está sendo lançado pela Ed. Nova Fronteira.



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